quarta-feira, 25 de março de 2020

Em defesa do alívio quantitativo para o povo

Como outros neste blogue, tenho defendido o financiamento monetário à economia. Aqui, por exemplo, defendi uma medida específica de financiamento monetário, a injeção de dinheiro diretamente no bolso das pessoas, por assim dizer, ou alívio quantitativo para o povo (people’s quantitative easing), como outros preferem.


Muitas vezes para desqualificar esta política monetária, há também quem a designe de dinheiro atirado de um helicóptero (helicopter money), relevando assim a associação com Milton Friedman, o conhecido monetarista a quem a paternidade desta última expressão é geralmente atribuída.

Acerca deste assunto, duas notas.

Primeiro, as ideias a quem as produziu. A proposta política de dar diretamente dinheiro às famílias foi primeiramente formulada por Silvio Gesell em 1906 como explica Keynes no capítulo 23 da Teoria Geral.

Vale a pena ler com atenção porque, entre outras razões, a enunciação da proposta aborda também os mecanismos propostos por Gesell para lidar com a possibilidade de a injeção monetária ser aforrada, ao invés de gasta, possibilidade sempre assinalada pelos detratores desta abordagem no seu afã de mostrar que a mesma não funciona. Pelos vistos, lê-se menos Keynes do que se apregoa.

Segundo, as ideias como elas são. É verdade que Friedman apoia a ideia de atirar dinheiro às pessoas de um helicóptero? Não, não é. Esta é uma ideia progressista e Friedman é o decano das políticas monetaristas.

Dito isto, é verdade que, hipóteses delirantes (como, entre outras, a da oferta monetária exógena) e uma escrita tortuosa e obscura (que, esconde uma agenda política regressiva sob um foguetório de desnecessária formalização matemática), tornam difícil discernir qual é, de facto, a posição de Friedman acerca deste assunto.

Ainda assim, meu ver, não pode haver dúvidas. Como pode alguém, que afirma que uma “política razoavelmente próxima do ótimo provavelmente seria manter constante a quantidade absoluta de dinheiro” (página 46), advogar que se dê dinheiro, criado do nada, às pessoas? Como também explica uma das destacadas vozes da Teoria Monetária Moderna, William Mitchell, não pode.

Em suma, a ideia do helicopter money, na sua forma de dinheiro dado diretamente às pessoas, não é – originalmente - de Friedman que, de resto, não a defende e, pelo contrário, se lhe opõe.

No presente contexto histórico de uma adversidade económica potencial praticamente sem rival na História, quando a economia pode entrar em colapso, porque os rendimentos de quem trabalha, pura e simplesmente, se eclipsam, chamemos-lhe o que quisermos. Esta é uma boa ideia.

Não precisamos de dívida, mas de financiamento. Financiamento para as famílias e para os Estados: é tão simples que a mente bloqueia. Até os economistas convencionais começam a percebê-lo. Cada vez em maior número.

2 comentários:

Anónimo disse...

Nouriel Roubini,também conhecido como Dr. Doom, acaba de fazer uma emissão video live no Twitter em que advoga de forma peremptória a mesma solução defendida neste post.
Ora Nouriel Roubini não é própriamente um esquerdalho, como um troll que faz parte da mobília deste blog repetidamente chama a quem nestas caixas de comentário tem apoiado esta solução.

Talvez com a intervenção muito dura e explícita de Nouriel Roubini os direitolas percebam que a gravidade da situação impõe medidas radicais que não podem ser retardadas sob pena de prejuízos tanto maiores quanto maior fôr o atraso. O tempo, quando se trata de suprimir uma pandemia e enfrentar uma crise económica de uma dimensão sem precedentes é um bem escasso.

https://twitter.com/Nouriel/status/1242798510086311941?s=20

PauloRodrigues disse...

Bill Mitchel tem, de facto defendido a criação de dinheiro "out of thin air", como está no cerne da teoria monetária moderna (MMT).
No entanto, a MMT não diz para pegar no dinheiro e dá-lo às pessoas (até porque muitas correriam a gastá-lo em bens supérfluos, como televisores, play-station ou até férias).
A MMT foi estabelecida depois de analisar o que se passou nos EUA na década de 60 do século passado: um país em guerra, com ambiciosos programas de investimento público (o maior dos quais o programa espacial) e pleno emprego, pagou quase tudo com recurso à impressão de dinheiro.
Bill Mitchel não diz que os estados devam imprimir dinheiro: ele defende que é tudo uma questão de manipulação informática: no fundo, é como editar o saldo bancário e colocar lá mais um zero (ou 2, ou 3...).
E isso não pode estar acessível ao cidadão comum, claro.
Porque se estivesse, a inflação ia por aí acima.
Muito ao contrário do que trump pretende fazer - que não é mais que uma manobra de propaganda eleitoral, agora que a reeleição parece mais que comprometida - esse dinheiro criado "out of thin air" terá de ser empregue de forma a criar os pilares para o futuro tecido económico.
É pensar em portos, estradas, aeroportos, pontes, etc.
Mas, em 2020, o caminho está traçado e não o seguir será condenar o mundo a uma nova idade média: se não investir-mos na transição energética e na descarbonização; se continuarmos a investir nas contas bancárias dos oligarcas, então está tudo perdido.