quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Democracia limitada para um mercado sem fim


A decisão, tomada pelo PS, de não convocar um referendo sobre o Tratado Constitucional reciclado, assim violando mais uma vez os seus compromissos eleitorais, fez-me lembrar uma frase de F. Hayek, o Papa de todas as utopias liberais: «Duvido que um novo mercado alguma vez tenha emergido numa democracia ilimitada e parece-me provável que a democracia ilimitada terá tendência para o destruir onde quer que ele tenha emergido». De facto, poucas decisões dizem tanto sobre as derivas do projecto de integração europeia. E são estes vaguardismos neoliberais anti-democráticos que estão a corroer as suas imensas potencialidades. O sonho de Hayek realiza-se pela mão da social-democracia: uma democracia de fraco alcance protege um poder apostado na expansão do mercado.

28 comentários:

F. Penim Redondo disse...

Toda esta guerra acerca da ratificação do Tratado de Lisboa por referendo é simplesmente deplorável.
O Sócrates, como se viu hoje no Parlamento, recebe uma oportunidade para brilhar.
Os portugueses em geral estão-se nas tintas para o assunto, e Sócrates sabe-o, por várias razões:
- têm mais que fazer do que participar em votações pró-forma cujo resultado já se conhece antecipadamente.
- não acreditam que a campanha de tal referendo os viesse a esclarecer já que seria apenas mais um pretexto para dirimir as querelas partidárias habituais.

O que seria realmente interessante era fazer um referendo para consultar os portugueses sobre as várias medidas concretas que são apresentadas como de "inspiração europeia", a saber:

- a lei do tabaco tal como existe
- a fiscalização dos produtos alimentares pela ASAE da forma como é feita
- a proposta de limitar a 30 km/h a velocidade nas povoações e de encher o país de lombas e radares

Esse sim, seria um referendo interessante e talvez muito frequentado...
Não cairão daí abaixo.

F. Penim Redondo disse...

Mais uma achega.

O valor dos referendos fica bem demonstrado com a experiência francesa.

Em referendo votaram contra o Tratado Constitucional mas, pouco tempo depois, votaram Sarkozy para Presidente dispensando-o de fazer novo referendo.

O resultado ods referendos acaba por reflectir a guerra dos partidos num dado momento.

Depois queixam-se do povo...

Miguel Noronha disse...

Não me parece muito correcta a interpretação que o João Rofrigues dá às palavras de Hayek.

Por "democracia ilimitada" Hayek entende um regime onde todos os aspectos da vida pessoal são decididos por via eleitoral ou pelos seus representantes eleitos. Isto é, onde não sobre qualquer espaço de autonomia aos individuos.

João Rodrigues disse...

Caro Fernando,

O referendo em França serviu, como nunca, para discutir a fundo o projecto europeu. Em Portugal isto poderia ser feito. A eleição de Sarkozy deve-se, para falar rápido, à inépcia da esquerda francesa.

Caro Miguel Noronha,

Esta frase é retirada do volume três da Law, Legislation and Liberty onde Hayek discute as relações tensas entre a «rule of law», necessária para o seu projecto de ordem de mercado liberal, e a democracia como governo da maioria. Relações tão tensas que Hayek propõe um modelo bizarro para limitar fortemente o alcance da segunda. Esta lição foi percebida pela UE. Se bem que os mecanismos adoptados sejam diferentes.

Já agora aproveito para recomendar a leitura deste livro a todos os liberais. Para que nunca mais digam que o «mercado é uma ordem espontânea» que surge naturalmente. Como disse um conservador, Michael Oakeshott, sobre Hayek: «um plano para terminar com o plano não deixa de ser um plano».

Miguel Noronha disse...

Caro João Rodrigues,

Já li o LLL e continuo a dizer que está a imputar um sentido espúrio às palavras de Hayek. No mesmo sentido recomedo-lhe o "Da Democracia na América" de Tocqueville.

Não me parece que a UE seja uma organização hayekiana. Pelo menos enquanto durar a inflação de regulamentos que pretende controlar tudo e todos. Precisamento o contrário do que era advogado por Hayek.

Tendo em conta forma como foi aprovado o presente Tratado Reformador e o seu alcance não o tornam um "projecto hayekiano" de forma alguma. Não comprêendo a associação que pretende fazer.

Anónimo disse...

Para além de eu ter que adquirir os livros acima mencionados, espero que a troca de opiniões sobre o assunto continue.
Parabéns pelo blogue.

F. Penim Redondo disse...

Também penso que está na moda chamar ultra-liberal a todo o bicho-careto, sem critério, como que chama "filho da mãe".

Eu até acho que, em Portugal e na Europa, essa raça deve ter muito poucos exemplares.
Não há cão nem gato que não viva de favores, de avenças, de contratos do Governo ou de outra instância oficial qualquer.
A simbiose entre a casta política e o mundo dos negócios não tem nada a ver com o conceito original de liberalismo.

Liberais só de parlapié.

João Rodrigues disse...

Caro Miguel Noronha,

Obrigado pela recomendação. Não li, mas tenciono ler até porque é muitas vezes mencionado por Hayek que estou a estudar a fundo. Acho que se ler o Hayek (sobretudo na Constitution of Liberty e no Road to Serfdom) encontra o reconhecimento de que o capitalismo necessita de muito mais regulações do que muitos ultraliberais gostariam hoje de reconhecer. É Hayek que diz que falar de Laissez-faire não faz mais sentido e que a questão não é intervenção ou não intervenção. O meu ponto é este (inspirado por Perry Anderson): A UE obedece ao espirito de Hayek na medida em que construiu um conjunto de instituições, estou a pensar na Comissão ou no BCE, imunes à pressão democrática e comprometidas com a expansão do mercado (com regras, como poderia ser de outra forma?). Coisa que o Tratado confirma. É só isto. Por enquanto. E depois há o mesmo medo da democracia em expansão e do virus "socialista".
Já agora há aqui uma pista intelectual interessante que é a ligação ao ordo-liberalismo da escola de Freiburgo com quem Hayek mantém estreitas relações e que muito influenciou o processo de integração europeia e a sua focagem na criação de mercados concorrenciais.

João Rodrigues disse...

Já agora e só para continuar o debate. Há uma carta de Keynes a Hayek dos anos quarenta onde ele faz uma pergunta mortal para os liberais e que, na minha opinião, Hayek vai procurar, sem sucesso, responder nos quarenta anos seguintes: onde traçar a linha entre o estado e o mercado? É que Hayek admite tantas funções para o Estado que a certa altura uma pessoa já não se sabe se não se entrou no plano inclinado que nos leva ao «caminho para servidão». Isto também é Keynes: o fantasma que paira sempre sobre Hayek...

Miguel Noronha disse...

"Acho que se ler o Hayek (sobretudo na Constitution of Liberty e no Road to Serfdom) encontra o reconhecimento de que o capitalismo necessita de muito mais regulações do que muitos ultraliberais gostariam hoje de reconhecer"

Estou abismado (sem qualquer ironia). Já li os dois e não encontro nada do que afirma. Talvez me queira indicar capitulos para eu verificar.

Miguel Noronha disse...

"A UE obedece ao espirito de Hayek na medida em que construiu um conjunto de instituições, estou a pensar na Comissão ou no BCE, imunes à pressão democrática e comprometidas com a expansão do mercado (com regras, como poderia ser de outra forma?)"

Relativamente ao BCE concordo. A comissão não me parece.
Já agora. É errado dizer que o BCE está isento de qualquer "controlo democrático". O presidente e restantes membros superiores são nomeados por políticos. Relembro-lhe as circunstâncias que levaram a que Duisemberg tivesse um mandato mais curto e que o actual presidente fosse francês.

Miguel Noronha disse...

" que Hayek admite tantas funções para o Estado que a certa altura uma pessoa já não se sabe se não se entrou no plano inclinado que nos leva ao «caminho para servidão». "

Que me recorde Hayek era minarquista. Exceptuando a "safety net" que alguns tendem (erradamente) a considerar numa óptica maximalista não me recordo que atribuisse mais funções ao estado.

Miguel Noronha disse...

" que Hayek admite tantas funções para o Estado que a certa altura uma pessoa já não se sabe se não se entrou no plano inclinado que nos leva ao «caminho para servidão». "

Que me recorde Hayek era minarquista. Exceptuando a "safety net" que alguns tendem (erradamente) a considerar numa óptica maximalista não me recordo que atribuisse mais funções ao estado.

Miguel Noronha disse...

" Isto também é Keynes: o fantasma que paira sempre sobre Hayek..."

No final da vida Hayek lamentou que a amizade que nutria por Keynes o tivesse impedido de refutar de forma sistemática as suas teorias.

Hugo Mendes disse...

João, à parte da discussão em curso sobre Hayek: os políticos que conceberam e assinaram o Tratado têm ou não legitimidade democrática? Esta é a questão-chave. Eles não cairam do céu: foram eleitos democraticamente pelos países da UE. Ou não aceitas a sua legitimidade neste contexto? E se não o aceitas, por que motivo? E mesmo que não o aceites, tens que reconhecer que há uma justificação absolutamente plausível para aceitar a legitimidade de não haver referendo. É que democracia de baixa intensidade é uma coisa - é o preço da democracia representativa que é a nossa -, "vanguardismos anti-democráticos" é outra bem diferente.
Ao mesmo tempo, não consigo perceber onde está o mercado 'ilimitado' na UE - seja lá o que isso quer dizer. E enquanto se usa esta retórica, continua-se a demonizar o mercado - quase com letra maiúscula -, sem perceber as suas vantagens e utilidades. Para a esquerda, o mercado é uma tecnologia, nao é uma ideologia. Onde funciona bem, em particular na produção de riqueza, deve ser utilizado (e inteligentemente regulado, e o que não falta na UE são regulações, nem todas inteligentes, aliás), sem medos de supostos bichos papões, que é o que infelizmente este tipo de argumentação cria.

abraço
Hugo

João Rodrigues disse...

Caro Miguel Noronha,

Não vou estar a citar porque é muito fastidioso e eu tenho como hábito traduzir tudo (é aliás uma regra do blogue). Não tenho o road to serfdom à mão, mas tenho a Constitution. Na parte 3 encontra o essencial do que eu digo. Mas para poupar trabalho aconselho este texto de Walter Block, um libertário de direita que resume bem o argumento que eu quero fazer, com profusas citações.
http://www.mises.org/journals/jls/12_2/12_2_6.pdf
Aconselho a leitura. Acho que é completamente errado descrever o Hayek como um miniarquista à Nozick. Bens públicos, reconhecimento de externalidades, problemas de acção colectiva na SS, regulação laboral com limitação das horas de trabalho, planeamento urbano, financiamento público da educação, etc, etc, etc. Há um exercício engraçado que eu estou a fazer e que consiste em comparar o Mill (Mises diz que é um «socialista») e o Hayek sobre as funções do Estado: encontro poucas diferenças. Prometo desenvolver isto em posta em breve. Sempre achei errado ver o neoliberalismo como laissez-faire. É outra coisa.

E há o conceito elástico de service state em Hayek. E, claro, safety net que assegurasse, fora do mercado, um nível mínimo de vida, de acordo com a riqueza criada. Veja também o discurso de fundação da Mont Pelerin Society que eu interpreto como uma agenda para os liberais sobre as funções do Estado e que vai muito para além do safety net. A questão da repartição dos direitos e obrigações que regem a propriedade e os contratos.

Caro Hugo,

Só para atalhar: eu acho que decisões como esta, que implicam reconfigurações institucionais com perdas de soberania, devem ser referendadas. CEE, Maastricht, Tratado de Lisboa. Como sabes eu não tenho nada contra o mercado em si, desde que limitado e regulado e circunscrito a certas esferas da vida social. Acho que a UE nos está a levar para um plano inclinado que promove a privatização de esferas crescentes e a sua mercadorização. Agora são os «monopólios naturais». Prometo discutir em breve a questão do mercado como tecnologia.

Miguel Noronha disse...

Caro João

Acerca do artigo de Walter Block. Em primeiro lugar é preciso comprêender que este é anarco-capitalista (ancap). Estes recusam a existência (ou a necessidade) de qualquer forma de Estado seja ele mínimo ou máximo. (aliás são até capazes de criticar mais duramente os minarquistas que os socialistas). É natural que critiquem Hayek (ou Nozick).

Não encontro nas citações que WB faz de Hayek senão o reafirmar dos limites da sua ideia de Estado Mínimo. É claro que WB se esquece (convenientemente) que para Hayek bens públicos não significam necessariamente serviços fornecidos pelo estado e que este apenas deve actuar numa óptica de subsidariedade relativamente ao sector privado.

João Rodrigues disse...

Caro Miguel,

Tem evidentemente toda a razão quanto ao Block e é importante o seu ponto sobre os bens públicos em Hayek. Mas o conceito está lá. E os problemas levantados também. Pigou anda por lá. E a justificação utilitária para a sua correcção também.

A não ser que se alargue de forma insustentável o conceito de estado mínimo, não me parece que ele sirva para Hayek. São demasiadas tarefas

Acho que não se pode confundir Hayek com Nozick e descrever os dois como miniarquistas. O campo de actuação do Estado em Hayek é muito mais vasto. Eu diria que um miniarquista é alguém para quem o estado se «limita» a assegurar as regras que permitem «actos capitalistas voluntários entre adultos». Hayek e os neoliberais vão mais longe. Por isso são os adversários predilectos de todos os economistas políticos socialistas...

Miguel Noronha disse...

"Eu diria que um miniarquista é alguém para quem o estado se «limita» a assegurar as regras que permitem «actos capitalistas voluntários entre adultos»."

Bem, nesse caso nem Nozick seria um minarquista. Onde é que a defesa externa cabe nessa definição?

Miguel Noronha disse...

"E a justificação utilitária para a sua correcção também."

É importante notar que Hayek (nem Mises, já agora) eram jusnaturalistas mas consequêncialistas.

Miguel Noronha disse...

"que Hayek (nem Mises, já agora)"

correcção:

"nem Hayek (nem Mises, já agora)"

João Rodrigues disse...

Esta discussão interessa-me porque estes são, em parte, os meus objectos de estudo actuais. Hayek e Mises recusam o jusnaturalismo. Mas eu não poria Hayek e Mises no mesmo saco. Mises é, em matéria de «intervenção» (ao colocar entre aspas estou a ser hayekiano porque como Hayek diz a questão que interessa não é essa), aparentemente mais intransigente do que Hayek. Quanto ao consequencialismo esta é uma discussão com barbas na literatura. A palavra é vaga. Resumindo o que apanhei de uma discussão longa sobre utilitarismo: Mises é utilitarista (qual das várias versões não sei e há discussão sobre isto até porque ele é muito, mas mesmo muito, pouco rigoroso nesta área). Hayek acha que aqui Mises é vitima de racionalismo excessivo (ver prefácio ao «Socialismo» de Mises publicado depois da morte deste; antes Hayek era muito cuidadoso porque Mises não gostava de ser contrariado pelos seus «discípulos», embora Hayek tenha rompido discretamente com o apriorismo, ideia aberrante que consiste em dizer que a teoria não tem um momento «empírico»). Quanto ao último se é verdade que se pode dizer que em certas passagens flirta com uma versão do utilitarismo (utilitarismo das regras e nunca o dos actos), a sua crítica aos limites da razão (muito importante) torna difícil qualquer avaliação em termos de utilidade. Como avalia Hayek as regras e as instituições? Haverá vários Hayek aqui? Diz que sim. Acho que é preciso mais unhas filosóficas para tocar esta guitarra...

Boa questão sobre a defesa. Respondo com uma pergunta: será possível que um minianarquista possa achar, de forma consistente, que a defesa se enquadra na criação de condições gerais para a existência de relações capitalistas entre adultos (as crianças para as várias versões destas correntes são um belo problema...)? Se sim isto abre a porta a mais coisas. São inúmeros os problemas para quem aceita a ideia utópica do «Estado guarda nocturno» sempre definido em termos demasiado gerais. Mas problemas a este nível temos todos e ainda bem…

A. Cabral disse...

O autor esta' morto. No sentido geral e neste caso no sentido literal. O que o homem quis dizer ha' 50 anos ou mais e' preocupacao dele. Talvez nunca o venhamos a saber, certamente nunca iremos concordar.

Exercicios taxonomicos para mim valem pouco como historia. As caixinhas onde se enfiam os autores sao construcoes do tempo presente, mas poucos admitem as consequencias desse facto. A historia nao e' um ponto fixo, um autor que se transplanta de la' para ca'. Muito mais relevante historicamente e' como o Hayek PODE ser lido, e FOI lido, como circulou ate aqui.

Anónimo disse...

Continuas com as tuas graçolas.

Pedro Sá disse...

Por essa ordem de ideias tudo tem que ser referendado...

João Rodrigues disse...

Concordo em geral contigo a. cabral. Agora as «caixinhas» são mais ou menos inevitáveis. Mais vale assumirmos isso do que ter as categorias a entrarem por portas travessas. Já agora os exercícios de taxonomia podem ser úteis sobretudo quando os autores são reivindicados por várias tradições. E não compreendemos o tempo presente se não olharmos bem para a reciclagem das ideias do passado.

A. Cabral disse...

O debate sao as "caixinhas".

A. Cabral disse...

...ou posto de outra forma, a historia das ideias, destes debates entre "tradicoes" ou melhor entre "usos" e' tambem a historia da criacao destas "caixinhas".