Durante o governo de Durão e Bagão (2001-2003) assistiu-se a um ataque a alguns dos principais instrumentos do Estado Social em Portugal, nomeadamente na atribuição do subsídio de desemprego e do rendimento mínimo garantido. Ora, segundo os dados que o Hugo fornece a despesa social durante este governo aumentou. Quer isto dizer que o Estado Social português foi robustecido? Não, o que aconteceu é que devido à estagnação económica a que nos condenou uma política orçamental desastrosa imposta pela U.E., o número de portugueses desempregados e/ou em situação de necessidade aumentou, resultando num aumento da despesa.
O breve exemplo português pode ser generalizado ao contexto europeu das últimas décadas. De facto, o programa neoliberal de liberalização dos mercados, privatização da economia e contenção orçamental resultou num novo de regime de crescimento medíocre, onde só determinados sectores, como o financeiro, e os muito ricos parecem prosperar. O outro lado da moeda foi o desemprego estrutural e o aumento das desigualdades sociais. Ora, com um crescimento medíocre e um número crescente de cidadãos a recorrem aos apoios públicos, é natural que a despesa social se tenha mantido num nível aparentemente estável, muito embora alguns dos arranjos do Estado Social tenham sido progressivamente desmantelados.
11 comentários:
Nuno,
Sem dúvida que o critério quantitativo [os números sobem, podemos discutir isso com série mais longas; este tema é bem tratado pelo Francis Castles que tem estatísticas a rodos: "The Future of the Welfare State: Crisis Myths and Crisis Realities", 2004, Oxford University Press] não é o único, nem o mais importante (aliás refiro-o nos comentários a esse mesmo post que citas, e dou precisamente o exemplo do desemprego, mas tambem há o da saúde; mas atenção: o subsídio de desemprego nao é particularmente caro no total dos gastos sociais: para a Europa a 25, em 2004, representava apens 6,3% do total). No entanto, a dimensão quantitativa é importante porque um dos argumentos que muito se usa para dizer que o Estado social está a recuar é precisamente quantitativo: que há cortes nos subsídios, que há um desinvestimento claro nisto e naquilo, que há o "desmantelar" de programas, etc. Ora, se há "desmantelamento", então ele tem que aparecer nas estatísticas de alguma forma. Os números mostram que as despesas sociais são uma fatia crescentemente maior dos Estados hoje do que eram, por exemplo, há 20 anos, e isto sem qualquer excepção.
Como tu, imagino, eu valorizo as despesas sociais "activas" e não as "passivas" - e concordo com o teu exemplo do desemprego. Não há nada de mais nisto. Repito apenas o argumento do parágrafo anterior: não basta, como se diz muitas vezes, dizer que o Estado social recua. Por vezes pode recuar e isso ser perfeitamente um sinal de aumento do bem-estar social (o teu exemplo com o sistema de saúde americano também é bom).
"o programa neoliberal de liberalização dos mercados, privatização da economia e contenção orçamental resultou num novo de regime de crescimento medíocre".
Isto é muito - e convenientemente - geral. Há programas que trazem a "liberalização dos mercados, a privatização da economia e contenção orçamental" que não são neo-liberais (mas isto, se quiseres, é uma velha "guerra" que não se resolve, esta das etiquetas :)). Podes ter isto tudo e um aumento/reforço da componente do Estado social. Significa apenas que a protecção social é feita menos pelas tarifas, isto é, pelas barreiras ao comércio, e mais por programas estatais de 'income substitution' e de alargamento de provisão de serviços. Integração na economia internacional e aumento do Estado social não são contraditórios, são antes processos complementares. Há quase 30 anos que a literatura chama a atenção para isto, pelo menos desde o texto de 1978 do David R.Cameron ('The Expansion of the Public Economy: A Comparative Analysis', The American Political Science Review, 72 (4), pp. 1243-1261). E é por isso que a globalização (no sentido da internacionalização das trocas) faz os Estados sociais crescerem (porque aumenta a incerteza dos cidadãos/trabalhadores) e não o inverso, ao contrário do que à esquerda e à direita se diz (dado que concordam na análise - simplesmente a esquerda não gosta e a direita aplaude).
"O outro lado da moeda foi o desemprego estrutural e o aumento das desigualdades sociais. Ora, com um crescimento medíocre e um número crescente de cidadãos a recorrem aos apoios públicos, é natural que a despesa social se tenha mantido num nível aparentemente estável, muito embora alguns dos arranjos do Estado Social tenham sido progressivamente desmantelados."
O desemprego tem muitas causas, Nuno, sabes bem, e não vale a pena atribuir a nenhum papão neo-liberal (e tantas vezes o neo-liberalismo, quando surge, é o resultado da crise, não a sua causa: o Reino Unido já estava em crise séria antes da Thatcher chegar ao poder, ou não? Se é a solução para sair dela é outra coisa). A fragilidade estrutural da nossa economia, a baixa produtividade, a incapacidade de inovação, a ausencia de coordenação entre capital e trabalho, a pequena propriedade, a dificuldade da internacionalização das empresas, o rendimento decrescente dos factores, etc. etc., torna-nos tremendamente frágeis perante mudanças tecnológicas e comerciais (que obviamente estão sempre a acontecer). E a nossa economia é extremamente pouco integrada na economia internacional; o nosso défice é de integração comercial com os outros países, não o oposto. Comportamo-nos como se tivéssemos um mercado interno do tamanho dos EUA ou do Japão, quando países da nossa dimensão mas muito mais ricos e generosos na protecção social estão muito mais fortemente integrados na economia internacional. Aliás, foi por aqui que enriqueceram, não pelo fechamento das suas fronteiras.
Para terminar, a despesa social nem sequer se manteve "estável" em Portugal, como referes; ela duplicou efectivamente desde que entrámos na CEE em 1986 até aos dias de hoje. E, já agora, quais foram os arranjos do nosso Estado social que foram "desmantelados" (uma palavra-fetiche), ele que, se hoje é frágil e incompleto em várias áreas, era ainda mais limitado há 10/15/20 ou mais anos? É que se alguma coisa se passou nas últimas décadas em Portugal foi o seu alargamento...Senão tens que me explicar como é que de 1983 gastávamos 11,6% do PIB (de longe o mais baixo da Europa desenvolvida) em áreas sociais e em 2004 gastamos 24,9%, já quase ao nivel da Finlândia (26,7%), da Noruega (26,3%), ou do Reino Unido (26,3%) (e por favor nao argumentes com o subsídio de desemprego, que é um domínio quase irrelevante: representava 5,7% dos gastos sociais, ou 1,3 do PIB em 2004).
abraço,
Hugo
Nuno, coloquei aqui: http://veu-da-ignorancia2.blogspot.com/2008/01/ainda-o-estado-social-nvel.html
um quadro que mede os níveis de desmercadorização em vários países por áreas diferentes, o que tem a dupla vantagem de vermos 3 sectores diferentes (para além do valor agregado) e de medirmos o nível de protecção e não o valor dos gastos sociais/PIB. O cenário é de estabilidade. Dado que os gastos sociais/PIB subiram em todos os paises nas duas décadas em análise, a conclusão é que ficou vez mais caro garantir sensivelmente os mesmos níveis de desmercadorização/protecção vis-à-vis o mercado.
Bom debate,
Mas mais do que saber se as despesas sociais estão a diminuir ou estão relativamente estáveis (que é importante saber), não acham que a questão central a debater é a eficácia dessas políticas na dimuição e atenauação no nível das desdigualdes sociais. Se de facto, o cenário é de estabilização (ou até de crescimento) como refere o Hugo, como se poderá compreender que em alguns países, nomeadamente em Portugal, esse incremento nas políticas sociais não se reflicta numa maior igualização social?
"como se poderá compreender que em alguns países, nomeadamente em Portugal, esse incremento nas políticas sociais não se reflicta numa maior igualização social".
É uma excelente pergunta para a qual não tenho resposta inequívoca, mas posso avançar umas hipóteses:
(1) as desigualdades salariais têm uma dimensão que escapa em larga medida ao Estado, e que se funda na perquena propriedade, nos baixos níveis de organização do capital e do trabalho, na fraca capacidade de coordenação do sistema de relações laborais, e no sistema descentralizado de negociação e fixação de salários. Aqui Portugal segue o que a literatura prevê: países onde os salários são fixados de forma descentralizada são países com largas desigualdades salariais.
(2) Os gastos do Estado são muitas vezes mal orientados, indo parar a grupos de pessoas que precisam de muito menos apoio público do que os mais pobres, para quem depois não há dinheiro - para além de que o facto de muitos trabalharem na economia informal os coloca fora do alcance do Estado social, limitando a redução das desigualdades que este poderia provocar. É uma coisa que eu já tenho escrito várias vezes e que as pessoas à esquerda tendem a ignorar o alcance: muitos gastos sociais são desequilibrados e orientados para garantir a segurança económica para pessoas que precisam menos, em comparaçao com os que têm menos recursos; por exemplo, as pensões, que consomem uma fatia particularmente grande dos nossos gastos sociais, terão um 'bias' histórico que beneficia os mais ricos. Por outro lado, as transferências para as famílias, que têm um importante poder redistributivo e de combate simultâneo à pobreza e às desigualdades são bastante baixas em Portugal: correspondem em 2004 apenas a 1,2% do PIB, quando atingem valores de 3,9% na Dinamarca ou 3% na Finlândia, Suécia, na Alemanha e na Aústria.
Isto mostra que o Estado social em Portugal tem traços conservadores, de manutenção de estatuto de grupos sociais - o que mantém as desigualdades -, na linha dos Estados sociais francês ou alemão. Não admira: a sua consolidação foi levada a cabo por um governo de centro-direita (ao longo de 10 anos,com Cavaco Silva), tal como a direita construiu ao longo da história grande parte dos sistemas de protecção social alemão e francês (porque, claro, a esquerda não estava no poder). Como já escrevi várias vezes, o nosso problema é o corporatismo estatutário e a exclusão de muitos do sistema 'by default', nao é o neo-liberalismo.
O problema é que a suposta re-estruturação das políticas sociais que está em curso não contempla a diferenciação que tu estabeleceste. Veja-se o caso da redução das despesas, não há qualquer definição/avaliação nos cortes, ou seja, corta-se a eito, independentemente de estes atingirem os mais ou os menos desfavorecidos. É claro que estes últimos ficarão sempre numa situação mais periclitante na medida em que não têm qualquer almofada social e económica. Para estes o neo-liberalismo será sem dúvida uma consequência e uma realidade brutal.
"O problema é que a suposta re-estruturação das políticas sociais que está em curso não contempla a diferenciação que tu estabeleceste."
Contempla sim, vê o caso da reforma da segurança social (que reequilibra um pouco o desequilíbrio geracional que existia), ou do complemento de reforma para quem nunca tinha descontado, ou o aumento nos subsídios para as famílias carenciadas.
"Veja-se o caso da redução das despesas, não há qualquer definição/avaliação nos cortes, ou seja, corta-se a eito, independentemente de estes atingirem os mais ou os menos desfavorecidos".
Não vamos lá com um discurso geral, precisamos de avaliar quem perdeu benefícios e quem ganhou, e quem perdeu e ganhou ao mesmo tempo; e quem perdeu mais hoje para poder ter vir a ter oportunidades de ganhar mais amanhã, etc. Essa avaliação exige ser feita para além da imagem impressionista de os desfavorecidos ficarem sempre a perder. Por outro lado, não sei se os cortes foram feitos "a eito". Tens que me dar não apenas alguns exemplos a vulso, mas uma análise um pouco mais sistemática para provar essa tese - que, caso contrário, não passa de um slogan, não é?
E convém não esquecer que há um imperativo político de reduzir o défice público, entretanto alcançado. Agora é preciso pensar de forma estratégica no futuro das políticas sociais (e das outras).
Hugo
Caro Hugo, os exemplos que falas também deverão ser avaliados. Mas o mais sintomático diz respeito à saúde. Neste caso, são as zonas mais periféricas e periurbanas que perdem claramente. O enceramento não assenta em nenhuma perspectiva de ordenamento territorial e adminstrativo. O mesmo se poderá dizer do encerramento de algumas escolas. Já debatemos isto muitas vezes, mas exigir uma planificação mínima das políticas públicas não significa necessariamente uma posição conservadora.
Renato,
"os exemplos que falas também deverão ser avaliados."
Pois devem, mas são a demonstração inequívoca do que argumentei no comentário anterior (foi essa a tua observação). E podia ter dado mais exemplos - são exemplos do trabalho que está a ser feito, e a estratégia que o orienta.
E estás enganado quanto à educação e quanto à saude. Esta não conheço bem e por isso não vou entrar em pormenores. Quanto às escolas é efectivamente errado que não assente em "nenhuma perspectiva de ordenamento territorial e adminstrativo". O que está em curso é precisamente a reordenação da rede escolar do 1.º ciclo,
com a entrada em funcionamento de 61 centros escolares e a inclusão de um instrumento financeiro para apoio à requalificação
no QREN. Foram fechadas 2200 escolas 2006/07 e 2007/08 e, em contrapartida, 61 novos centros escolares abertos este ano lectivo, e estão em construção mais 40 centros. Tudo isto é um investimento de 407 milhões de euros. Mas alguém fala dos centros escolares que abriram (e da dinamização da vida local e comercial que a provisão de bens públicos traz)? Algúem fala das 216 cartas educativas homologadas pelo Ministério da Educação e pelas autarquias, que têm precisamente a função de reorganizar e redinamizar as dinâmicas territoriais, envolvendo - como deve ser - directamente o poder local? Alguém fala das responsabilidades crescentes que as autarquias terão na educação, de forma a poderem articulá-la com o desenvolvimento local?
Não, claro, por sistema, só se dá uma imagem parcial e negativa. Fecham-se escolas; o resto do trabalho que é feito (e que só pode ser feito precisamente porque se fecharam as escolas, dado que este é um requisito para qualquer reordenamento da rede) é como se não existisse.
A decisão de encerramento de serviços e organizações deveria ser uma consequência de um plano de ordenamento em vez de o anteceder, como foi o caso. O teu exemplo reforça a minha crítica, não a desmente: não houve um plano mínimo que sutentasse o encerramento, o critério utilizado foi uniforme para o país (nº de alunos), e não teve em conta as diferenciações que aludias num comentário anterior.
Folgo em saber que também estou enganado no caso da saúde, fiquei convencido :)
Renato, no que toca a isto:
"não houve um plano mínimo que sutentasse o encerramento, o critério utilizado foi uniforme para o país (nº de alunos), e não teve em conta as diferenciações que aludias num comentário anterior."
Duas coisas: não só o critério faz todo o sentido - as escolas que foram encerradas tinham valores anormais de insucesso escolar, por isso algo de "errado" se passava nelas -, como todo o processo seguinte foi discutidas com as autarquias, e não houve nenhum fecho cego, como sempre afirmas. O critério do número de alunos foi indicativo e permitiu tão só a sinalização das escolas. O resto foi decidido caso a caso, consoante a existência ou não de alternativas, e que alternativas eram essas. Isto não me parece muito difícil de compreender, e anos depois e tantas explicaçações dadas eu acho que só não compreende quem não quer mesmo perceber. Quanto ao "resto" - a reorganização dos serviços, o investimento público realizado, os ganhos ao nível das infraestruturas e do que isso permite em termos de aprendizagem - claro, nem uma palavra. É sempre assim.
Quanto às diferenciações que aludia anteriormente, elas foram feitas em relação ao um ponto bem diferente, dado que estávamos a falar de políticas sociais num sentido geral, e aqui estamos a discutir política educativa (que, aliás, como já reparaste, nem sequer entrava na discussao anterior, dado que os números relativos aos gastos sociais deixam por definição a educação de fora). Convém por isso não misturar alhos com bugalhos. Dito isto, a verdade é que a reorganização da rede visa o que em cima referia como os excluídos do sistema, os que, estando em escolas de +/- 10 alunos, não passavam do 5º ou 6º ano de escolaridade e iriam depois trabalhar para a economia informal, sem qualificações, sem hipótese de ter/construir/subir na "carreira", sem contrato, sem descontos para a segurança social, etc. etc.. Estamos a falar de crianças, no futuro adultos, que iriam reproduzir o Portugal profundo que representa o pior em termos de pobreza e exclusão. É sobre esses, caso não tenhas reparado, que a acção prioritária, mesmo na educação, tem incidido.
E olha, não falo no caso da saúde porque não o domino com profundidade. Eu gosto de falar do que sei. E confesso-te que há uma coisa que cada vez me incomoda mais, em particular em pessoas "that should know better", por motivos que me excuso de apresentar em público: é que as pessoas falem - e não só falam, mas criticam, e gostam de passar atestados de incompetência técnica, política e por vezes moral - sem saber e sem se procurar informar sobre elementos básicos do que se faz. É isso produz a crítica preguiçosa e fácil que se vê para aí (e que vejo infelizmente de forma sistemática no teu discurso: os cortes são por definição sempre a 'eito'; o fecho de serviços é por definição sempre 'cego'; o que é feito é sempre sem 'estratégia', etc.). Não me leves a mal, mas eu sou um bocadinho mais exigente e espero que os outros, para serem levados a sério na discussão intelectual, política e pública, também o sejam.
Hugo
Sim, não falas do caso da saúde por que não tens dados suficientes, mas isso não invalidou afirmares que eu estava enganado.
Hugo volto à minha questão, afinal, se tudo está correr bem nas políticas sociais governativas, porque é que as desigualdades teimam em não diminuir como seria de supôr?
Alguma capacidade de auto-crítica também é refrescante, nem que seja para refrear um certo autismo.
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