segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Movimentos na teoria com impactos políticos - a economia como engenharia social

Um desenvolvimento interessante no que podemos designar por estudos económicos - área «pós-disciplinar» que reúne economistas, sociólogos, antropólogos e estudantes da ciência em geral - diz respeito à discussão dos efeitos que a teoria económica pode ter sobre a realidade que supostamente se limita a descrever. Na formulação mais extrema no debate, compilado neste livro, defende-se que a teoria económica dominante, assente no modelo do agente económico racional e na expansão de arranjos mercantis - teria a capacidade para moldar a realidade à imagens dos seus pressupostos teóricos: a teoria económica é «performativa» porque desenvolveu instrumentos capazes de, tal como em qualquer engenharia, construir sistemas e mecanismos que tornariam verdadeiros os seus pressupostos. O homo economicus não existe, mas pode ser construído.

Michel Callon é o proponente desta provocadora e muito problemática tese, segundo a qual o «critério de sucesso teria substituído o de verdade» numa ciência que seria agora «90% engenharia e 10% teoria». Os famosos desenhos de leilões, a definição de regras para novos mercados ou a criação de instituições e mecanismos híbridos seriam exemplos deste processo. A teoria dos jogos e a economia experimental seriam as áreas da ciência económica implicadas. Os economistas envolvidos têm obviamente interesse em acompanhar esta ideia porque a sua «utilidade social» parece sair reforçada aos olhos da «opinião pública», sempre ansiosa por saber «para que é que serve a teoria».

E, no entanto, os estudos de caso realizados parecem dizer que a construção de mercados é um processo bem mais complexo e que a participação da teoria é muito menos importante do que muitos economistas gostariam. Na realidade, a teoria «pura» serve de muito pouco no processo concreto de construção de um mercado. Aqui estamos no reino de todas as «impurezas» políticas, sociais e culturais. O que não quer dizer que a teoria não possa ter efeitos. Destacaria dois: (1) a economia produz discursos que influenciam a forma como as pessoas olham para o mundo; (2) a economia influencia, de formas múltiplas, o desenho de instituições que impõem certos padrões de interacção que nunca são neutros nos valores promovidos.

Uma coisa é certa: com este debate desaparece a ideia de que o mercado é uma instituição de geração espontânea. A economia é, pelo menos, uma ideologia que ajuda a legitimar muitos dos processos que impõem a mercadorização da vida social. Por outro lado, ganha peso a ideia de que o mercado é uma tecnologia de afectação de recursos que pode ser moldada, através do recorte particular dos direitos e obrigações que cada agente enfrenta, para alcançar propósitos socialmente desejáveis. O que não quer dizer que se deixe de poder falar de propriedades «essenciais» desta instituição ou de defender que, em capitalismo, existem assimetrias que fazem com que certos interesses sejam sistematicamente privilegiados.

10 comentários:

o_cao_que_morde disse...

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Pedro Braz Teixeira disse...

Mas esta engenharia pode ter ideologia. Se os eleitores e políticos acreditarem que a economia de mercado liberalizada funciona (gera novos equilíbrios com relativa facilidade), vão criar instituições e legislação que a favorecem e vão assim chegar à conclusão que ela funciona. QED.
Noutro país, que não acredita no liberalismo, vão-se criar inúmeros obstáculos ao livre funcionamento. Então, aí a economia de mercado não vai funcionar, como eles desconfiavam à partida. QED.

João Rodrigues disse...

Esta engenharia é ideologia Pedro Braz Teixeira. Deduzo então que quando estes arranjam falham é porque não houve gente suficiente a acreditar neles? Assim a fé fica bem protegida. Os mercados financeiros liberalizados produzem crises e instabilidade? A culpa é dos que anteciparam estes padrões que espalham a descrença. Que instituições e que legislação é que geram o equilibrio. Estou ansioso por saber.

O que este debate tem de importante é que ele mostra bem como a teoria, retórica à parte, não tem na realidade critérios para definir com clareza os «melhores» arranjos...

Manuel Veiga disse...

a economia como "ideologia"! excelente...

Luís disse...

E se acrescentássemos a isto a perspectiva de Fernand Braudel para quem o mercado se situa no "equador", traçando a linha de separação entre as estruturas materiais elementares e o capitalismo propriamente dito?
O mercado já o era, antes de ser uma tecnologia e uma ideologia.
Tentar postular a "performatividade" da teoria económica é uma coisa curiosa, mas eu prefiro falar dessa teoria como puro engano (deceive). :)
O resto é pura probabilidade: a ponte não cai dentro de um conjunto de parâmetros, também podemos achar que é uma estrutura em equilíbrio; a economia não explode, porque... alguém lhe toma o pulso, isso é que é.

Luís disse...

Ah, e quando eu vou fazer a cobertura jornalística da Assembleia Geral de accionistas, também estou a fazer "economia"? Falar economês estou de certeza. E a teoria da a agência é "económica"? Teoria é de certeza.
E a decisão de construção do novo aeroporto internacional é uma decisão "económica"? Sim, especialmente se se conseguir gastar o maior número de dinheiro possível... E é uma decisão "económica" menor, se é tomada pelo Estado? Não me parece.
E quando vou ao banco pedir um empréstimo e ele me negoceia um "spread" sobre uma taxa de mercado? Aqui é que se percebe o que são assimetrias de informação...
A fechar deixo a pergunta: mas então, de quem são os capitais?

Luís disse...

E respondo: os do Berardo são da CGD, os da CGD são do Estado. Os do BCP são do BPI, os do BPI são do La Caixa. Os do Estado são da Lusoponte, os da Lusoponte são da CGD e do Banco Europeu de Investimento. Os da ANA, sabe-se lá quem serão os da ANA...

Anónimo disse...

Uma entrada muito interessante, actual e bem redigida.

1
Creio que deve ser difícil encontrar um pioneiro dos mercados derivados, dos que construíram tais mercados nos finais dos anos Setenta, que esteja disponível para participar neste debate sociológico. No entanto, penso que seria a única maneira de o tornar útil. Estarei a ser faccioso. Possìvelmente.

2
A produção de discursos económicos não é um processo estático. É sobretudo um processo dinâmico. Que influencia as "leituras" do mundo de formas diferentes.

É neste sentido que achei muito interessante o trabalho de Amando de Miguel Rodríguez sobre "Las ideas económicas de los intelectuales españoles" (Instituto de Estudios Económicos, Madrid: 2003).

Obrigado. F

A. Cabral disse...

F,
por acaso participaram de forma indirecta no debate sociologico, ver o artigo do Don Mackenzie no SOCIAL STUDIES OF SCIENCE, An Equation and its Worlds, 2003, 33(6), que se aconselha melhor que o Callon.

Joao,
Pode um Polanyiano aceitar a performativity? O Polanyi nao diria que o mercado e' uma violencia que nunca pode ser aceite (counter-movement)?

Anónimo disse...

A. Cabral,

Fui ver a sua referência. Falar de Fischer Black, Myron Scholes ou Robert Merton, não é falar dum "pioneiro dos mercados de derivados". É falar dos grandes teóricos, dos génios da teoria. O saudoso Fischer Black quando trabalhava na Goldman Sachs eram mantido bem longe da sala de mercados. Sobre os outros dois, viu-se o que sucedeu quando se chegaram mais próximo da sala de mercados. Por isso, mantenho a minha sugestão.

Obrigado. F