domingo, 5 de abril de 2020

Tornar todos mais pobres e mais precários para combater a crise

Era uma questão de tempo até alguém começar com isto.

O guião é sempre o mesmo: virar funcionários públicos contra os do privado (porque os primeiros têm emprego seguro); trabalhadores com contrato sem termo contra precários (porque os primeiros são sempre mais protegidos que os segundos); os mais velhos contra os mais novos (porque aqueles gozaram e gozam de "privilégios" que estes pagam e não sabem se os irão ter no futuro); e a lista continua. Como se a origem das desigualdades profundas na nossa sociedade estivesse em quem vive do seu trabalho. Como se a solução fosse tornar todos mais pobres e mais precários.

Não vamos esquecer as prioridades. Primeiro, manter sob controlo a propagação do vírus e proteger os mais vulneráveis. Segundo, garantir que os serviços de saúde têm os meios de que necessitam para prestar assistência a quem precisa e para proteger os profissionais mais expostos a riscos. Terceiro, garantir que ninguém fica sem acesso a bens e serviços essenciais devido à paralisação da vida económica. Quarto, preservar tanto quanto possível as capacidades produtivas, para continuar a providenciar o que é necessário ao conjunto da população e permitir uma retoma mais rápida assim que a situação o permitir. Quinto, distribuir da forma mais justa possível os custos disto tudo.

Distribuir os esforços significa começar por quem poderia contribuir muito mais – e não por aqueles que estão menos mal do que outros. Funcionários públicos, trabalhadores com contratos sem termo e pensionistas continuam a pagar os seus impostos em função do que recebem. Numa sociedade decente, este tem de continuar a ser o princípio.

O principal instrumento à nossa disposição para fazermos justiça na distribuição dos esforços é o sistema fiscal. É aí que deverá focar-se o debate quando as outras prioridades estiverem acauteladas.

Outros instrumentos mais poderosos – como a emissão de moeda, o nível das taxas de juro ou as transferências entre países – não podemos neste momento controlar. Quanto a estes, temos de continuar a exigir que as autoridades europeias assumam as suas responsabilidades, para que o combate à emergência de saúde pública não sirva de desculpa para mais uma década de austeridade e de perda de direitos. Se não o fizerem, temos de preparar-nos para mudar de vida.

10 comentários:

PauloRodrigues disse...

A única piada disto tudo vai ser a reação dos euro-fofinhos, quando a austeridade lhes bater à porta.

Anónimo disse...

A solução fiscal é para quem tem margem, não para cigarras que gostam de surfar a crista de tsunamis de dívida.

Vem aí dinheiro da Europa, como sempre, seja qual for a modalidade. E já se ouve o salivar das "elites".

Com toda a economia dependente desses apoios o que veremos é uma ainda maior dependência do partido do governo em todos os sectores. O crescimento da corrupção, compadrio e enriquecimentos ilicitos vários vai ser de tal forma exponencial que ofusca qualquer virus.
Cumps,
Buiça

Álvaro disse...

pois é, o sistema fiscal... quatro anos de geringonça e mais uns meses de PS não geringonciado não conseguiram produzir nem sequer um regresso aos escalões do IRS pré-Passos/Gaspar.

Jose disse...

A definição de crise é a de situação não normal.

Que a crise seja definidora da normalidade tem neste país uma tradição bem estabelecida que vem levando um país com as finanças públicas em falência a ser estimulado a comportar-se como se de uma situação de normalidade se tratasse - 'Não à austeridade'.

E é nesse sentido que os esclarecidos socialistas mantêm o discurso.
Agora, entusiasmados pela óbvia relevância da acção do Estado na crise, apelam a que esta acção se prolongues para além dela; que as medidas de acudir aos economicamente mais afectados se prolongue por modo que a diferenciação económica se atenue em limites que prudentemente não definem; que empresas necessitadas de apoios para o seu relançamento em ambiente económico desfavorecido, sejam tuteladas por uma ainda não identificada parafernália de regulamentos; que o Estado busque a sua solvência, não por acréscimos de eficiência e moderação de intrusão em tudo que mexe, mas por impostos que abranjam não só mais rendimentos mas o capital acumulado em mãos privada; em geral, nada têm a opor a que essa intrusão seja potenciada, desde que ao serviço da sua ideologia, e do lugar que esperam vir a alcançar no processo.

Em resumo, a crise pode render o que a revolução e as urnas vêm negando, e isso traz obviamente um crescendo de entusiasmo pela crise.

Abraham Chevrolet disse...

Mas qual austeridade,qual cabra manca,qual porco sem rabo?
Então quando o vírus desaparecer não está tudo preparado para arrancar a pleno gás?
Então não haverá,no BCE,dinheiro bastante para abastecer as populações para que o processo continue? As rotativas também tiveram o vírus?
No fim da 2ª Guerra Mundial, a Europa e o Mundo estavam quase completamente arrasados,60 milhões de mortos e ruínas em todo o lado.Nos países onde chegou o plano Marshall e não só,não houve choradeiras,medos da austeridade que reinava ou aí viria. Investiram,progrediram para patamares nunca atingidos.
Salvo um triste país,miserável e pobre,material e mentalmente,encolhido ao canto,que não alinhou em tal plano. Sim,sim,falo de Portugal e da besta salazarenta que,mais uma vez,perdeu o combóio.
Após a pandemia, um novo Marshall virá,desta vez europeu,com dinheiro do BCE e imposto pelos europeus dignos desse nome.
Os defensores da TINA,os amigos da austeridade,os Salazares e os Passos Coelhos sabem que não há ouvidos para os contos do vigário que recomeçam a entoar.
Na primeira quem quer cai,vezes seguidas só por má fé ou obtusidade córnea!!!

A.R.A disse...

Esta pandemia é a prova dos 9 para a sobrevivência de uma UE onde uns sempre foram mais iguais que outros, pois se em 2009 a coisa foi clarificada entre quem serve a quem, agora, mesmo perante uma calamidade que toca a todos por igual, nem assim se consegue vislumbrar uma destrinça na postura entre "parceiros" e o que ficou clarificado no passado, no presente ficou "cristal clear".

Assim sendo, das 2 uma:
- Ou se vai ouvir vozes federalistas para o futuro (caso os coronabonds venham a ser uma realidade ) e então fica preto no branco aquilo que se fala em surdina ... Portugal, um Estado Ibérico com capital económica em Madrid pertença de um cluster mediterranico dentro de uma UE federalista
- Ou o crescente populismo europeu acabará por delinear uma UE seguindo os padrões ideológicos de ALE/NDL/AUT/FIN criando uma cisão suicida que será o fim da UE

Em ambos os cenários, uma dissolução organizada da UE deveria já ter sido pensada como plano B para Portugal ao invés de nos andarmos com as vulgares questiuncúlas de pescadinha de rabo na boca

Anónimo disse...

"Como se a origem das desigualdades profundas na nossa sociedade estivesse em quem vive do seu trabalho."

Esta sua frase é bem menos consensual do que julga, a condição de vida estável atingida por muitos dos nossos concidadãos nas ultimas décadas veio acompanhada com uma crescente falta de moralidade, o legitimar da desigualdade através do poder politico tem sido explicito, a máxima de que o trabalhador sério é sempre impoluto é de uma ingenuidade indisfarçável.

A fragilidade de muitos intelectuais por vezes é exposta de forma absolutamente declarada, mesmo considerando o evidente, que o rendimento do trabalho deve ser o ultimo em qualquer circunstância a ser abalado tem de convir que o argumento "pagar impostos" estabelece uma lógica inaceitável de desigualdade entre pessoas, fica claro que o Ricardo Paes Mamede vê os cidadãos que pagam mais impostos como cidadãos de primeira, cidadãos com maior grau de merecimento, acho absolutamente lamentável que pense desta forma.

PauloRodrigues disse...

Engraçado como o discurso "mulheres e vinho" se está a adpstar.
Já nem falam em Sócrates.
Estou a aguardar pacientemente pelo dia em que a união europeia for ao bolso dos euro-fofinhos.

Jose disse...

À reconstrução da Europa destruída em finais de 40 e 50's, trocando 'dinheiro por trabalho', equiparam alguns a reconstrução da economia por 'dinheiro para consumo', porque se for 'dinheiro para trabalho' é preciso abrir fronteiras e importar quem queira trabalhar.
Parece assim que para além de umas obritas vai ser preciso financiar empresas e parece que vai sendo por aí que as acções se vão desenhando, não vá o 'helicóptero' descarregar as notas na China e arredores..

João Pimentel Ferreira disse...

Não é virar uns contra os outros, é antes lembrar que a riqueza que o país cria é um bem finito.