quarta-feira, 1 de abril de 2020

Porque os austeritários mudaram temporariamente de campo...


Lembram-se de Carmen Reinhart? Foi a co-autora de um dos famosos estudos que serviram para justificar, de forma pretensamente científica, as políticas de austeridade, à boleia da hipótese de que dívidas acima de um certo limiar prejudicam severamente o crescimento. Havia erros grosseiros nesse estudo empírico, detectados por um estudante de doutoramento atento, e havia erros teóricos, com implicações de política, dado que se ignorava as especificidades dos Estados com soberania monetária, endividados numa moeda que controlam, através de um Banco Central articulado com o Tesouro.

Bom, o que diz agora Carmen Reinhart? Diz coisas destas: “Este é claramente um momento de ‘tudo o que for preciso’ para políticas orçamentais e monetárias fora da caixa e em grande escala.”

Para ser justo, Reinhart é co-autora de vários trabalhos de história económica de grande utilidade.

Em primeiro lugar, os seus trabalhos confirmam, ainda que de forma demasiado implícita, que os períodos de maior liberdade de circulação de capitais estão associados a maior instabilidade financeira, com impactos macroeconómicos negativos. Pelo contrário, o período de maior tranquilidade financeira, da Segunda Guerra Mundial aos anos setenta, foi marcado pela existência de controlos nacionais generalizados à circulação internacional de capitais.

Em segundo lugar, e já que os austeritários, como bons oportunistas económicos, estão ao virar da esquina, Reinhart dá-nos indicações sobre as formas como os brutais níveis de endividamento dos países a seguir à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial foram geridos: da reestruturação da dívida à “repressão financeira”, garantindo taxas de juros reais negativas sem que os rentistas tivessem grandes possibilidades de fuga, passando pelo crescimento económico, graças a um papel acrescido dos Estados, num quadro em que o planeamento não estava proscrito e em que a soberania monetária era valorizada. E não se esqueçam de taxas marginais de imposto sobre o rendimento acima dos 90%.

Reparem que países capitalistas, como os EUA ou a Grã-Bretanha, registaram sempre défices superiores a 10% do PIB ao ano durante a guerra, atingindo valores superiores a 20% no seu pico, e depois da guerra tiveram uma política económica com claros objectivos sociais: milhões de soldados norte-americanos puderam estudar com bolsas do governo e os britânicos lançaram-se na construção do Serviço Nacional de Saúde ou de um vasto parque habitacional público. E que dizer do Plano Marshall?

É claro que os tanques soviéticos em Berlim ajudavam a concentrar as mentes das elites nos países capitalistas, ponto de resto cada vez mais sublinhado. A história económica tem mesmo de ser história da economia política.

6 comentários:

Paulo Guerra disse...

"Pelo contrário, o período de maior tranquilidade financeira, da Segunda Guerra Mundial aos anos setenta, foi marcado pela existência de controlos nacionais generalizados à circulação internacional de capitais."

Ao fim e ao cabo só uma das razões para todo o progresso civilizacional registado nesse período. Como por exemplo logo em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhecer a saúde como direito inalienável de toda e qualquer pessoa e como um valor social a ser perseguido por toda a humanidade. E foi a partir daí que progressivamente diversos Estados passaram a incluir este e outros direitos humanos nas suas Constituições, convertendo-os em direitos fundamentais derivados do pacto social estabelecido em cada país. Direitos que nunca se esperou virem a ser alienáveis a tão curto prazo. Porque os direitos humanos pura e simplesmente nunca se deviam alienar. Infelizmente, valores de que viemos a abdicar um por um nas décadas subsequentes e que também nos trouxeram até aos dias de hoje.

Jose disse...

Com rigor teórico e empírico pode o autor do post identificar uma das circunstâncias em que seja boa política a austeridade?

PauloRodrigues disse...

O neoliberalismo tem uma base teórica, que foi construída desde 1947, com Hayek, Friedman e demais comparsas no Mont Pelerin Society, que já de origem vinha com sérias contradições.
Mas a aplicação prática do neoliberalismo veio acentuar umas e acrescentar outras.
Por exemplo, se os mercados devem ser livres, porque razão têm sido criados monopólios privados e oligarquias em países como o nosso?
Os "investidores" num mercado livre devem perder o dinheiro se o investirem mal e os fofinhos do neoliberalismo aplicado não querem perder nada.
Querem sol na eira e chuva no quintal e os americanos conseguiram-no, mas recorrem a instrumentos como o FMI, a CIA e as forças armadas para defender os fofinhos neoliberais ianques.

Jaime Santos disse...

Portanto, vamos lá ver se eu percebo, a ocupação do Leste Europeu pela URSS (que esmagava os nacionalismos e as liberdades locais, a hipocrisia não é realmente um apanágio só da Direita) era uma coisa boa porque obrigava os Países Ocidentais a adoptar políticas sociais e a mandar às malvas a prudência orçamental? É isto, não é?

Existe uma diferença entre os 'austeritários' e os adeptos dos défices orçamentais permanentes, João Rodrigues. É que, justamente para os primeiros, esses défices não devem ser permanentes... A Economia de Guerra é temporária, enquanto dura a Guerra, não é uma Economia de Guerra Permanente.

Claro, ter o mundo à beira de um holocausto nuclear é óptimo porque permite a promoção de políticas sociais... Tá a ver como eu consigo caricaturar a sua posição tão bem como você e outros caricaturam a dos 'austeritários'?

Não há pachorra...

Lowlander disse...

"Portanto, vamos lá ver se eu percebo,"

Enquanto nao largarem o vinho, O Jaime e o Jose perceberao precisamente uma mao cheia de nada.

Os pontos do post sao meridianamente claros:
1 - A economia nao e uma fabula moral.
2 - O facto da intervencao Estatal nas economias ter efeitos na reducao de volatilidade inerente aos regimes economicos capitalistas e evidente no registo historico.
3 - Infelizmente, no registo historico os unicos eventos que levaram a condicoes em que o Estados interviram de forma mais profunda nas economias foram situacoes de guerra.

Anónimo disse...

Para o que não há efectivamente pachorra é para a desonestidade intelectual (ou será psicose?) de Jaime Santos.