quinta-feira, 16 de abril de 2020

Esquizofrenias actuais do FMI

Foto  tirada da página do jornal Público de hoje

O Jornal Público entrevistou o vice-director do departamento de investigação do FMI, Gian Maria Milesi-Ferretti. A entrevista é bastante sensata e ponderada, própria de quem parece sinceramente preocupado com o que irá acontecer à economia em consequência da eclosão do vírus Covid19.

Mas revela aqueles sintomas de esquizofrenia à la FMI.

Critica-se o excesso de concentração da actividade económica no sector do turismo, mas todas as opções de política económica seguidas desde os anos 90 empurraram Portugal para uma estratégia centrada nos serviços e de deslocalização industrial, em prol de uma globalização comandada pelas firmas transnacionais, em que o desarme alfandegário pós-2000, a livre circulação de capitais e a cobertura institucional dos paraísos fiscais foi arquitectada em seu favor e para sapar os alicerces da intervenção dos Estados.

Critica-se o excesso de trabalho temporário, mas todas as ajudas concedidas pelo FMI foram condicionadas a medidas no mercado laboral, em prol de uma flexibilização da mão-de-obra, que facilita e embaratece o desemprego, desarma os dispositivos de protecção do emprego, como forma de reduzir os famosos custos unitários. 

Mostra-se convicto de que o edifício institucional comunitário irá compreender a actual fase. Mas no artigo ao lado, o seu colega do Departamento dos Assuntos Orçamentais do FMI, o nosso famoso ministro pró-troica Vítor Gaspar - que fugiu para o FMI quando, em 2012/13, o desemprego escalou mais do que o esperado, após a aplicação das políticas de austeridade - sublinha todo o lastro orçamental a que os países como Portugal terão de fazer frente depois de tudo. Repare-se na conotação negativa das palavras sublinhadas e no que fazem antever do que se irá passar: resultado muito negativo, contas públicas afectadas, défices a subir, dívida pública a crescer.  Já na newsletter do Jornal de Negócios, com base nas previsões do FMI, se fazia sentir ontem que "a pandemia do Covid19 vai atirar as contas públicas portuguesas outra vez para o vermelho".   

Nada de novo, portanto. É sabido que o FMI é aquela instituição que reúne vários níveis de percepção e de jogo de forças. Parafraseando as palavras felizes do João Cravinho para o documentário A Mão Invisível - uma história do neoliberalismo em Portugal:

Há dois FMI. Essa é uma coisa importante, nessa altura [anos 70] já havia e agora há mais, muito mais acentuadamente. Há o FMI da esquadra de polícia. Ali, de Campo de Ourique ou do Bairro da Boavista. Que são os operacionais. Aqueles que a gente conhece, que estão no terreno. O grupo operacional do FMI. Que é gente muito ortodoxa, gente com políticas fundamentalmente, sempre foram, recessivas, por efeito da austeridade. Políticas que foram causadoras de grande acréscimo de desequilíbrios sociais – cortes de investimento público, mesmo pensões. Isso é o FMI esquadra de polícia. E depois há o FMI departamento de investigação. E às vezes mesmo o FMI economista-chefe. O FMI departamento de investigação, hoje muito mais, mas na altura já com gente a destacar-se, gente que pensa, gente que tem uma noção da realidade da política de austeridade, e que diz: Não, temos de encontrar outras soluções. Simplesmente, de um modo geral,  (...) quando chegam à acção concreta são sempre sempre a favor da esquadra de polícia. A Lagarte é um caso típico disso.

Portanto, aconselha-se a alguma moderação na forma como assimilamos esta simpatia compreensiva do FMI.

9 comentários:

Paulo Marques disse...

Tudo se perde, nada se transforma. Não aprendem nada. Recuperação em 2021? A vender o quê para quem? Só se for recuperação das rendas garantidas, com mais uns subsídiozinhos e privatizações. Siga a sequela.

Jose disse...

« desde os anos 90 empurraram Portugal para uma estratégia centrada nos serviços»

Desde 1986 que Portugal está na CEE à qual se candidatou em 1977.
Sem grossos capitais e acesso a mercados externos sempre as indústrias produtivas serão em Portugal mesquinhas. As grandes empresas de produtos transaccionáveis (química, construção naval,…) todas se perderam antes da adesão à CEE
Acumular capital em empresas nacionais é um permanente risco de perturbação e saque. Capital estrangeiro e lucros condicionados por preços de transferência é o modelo em que é viável haver grandes produções em Portugal,

Geringonço disse...

Porque razão o FMI ainda existe se sempre falhou?

O FMI tem que ser desmantelado, os seus responsáveis têm que ser levados à Justiça e responder por crimes económicos.
A Lagarde e outros responsáveis sabem perfeitamente que as receitas do FMI não funcionam a favor do trabalhador e da larga maioria da população, muito pelo contrário.

A população tem que se inteirar do mal que é feito de propósito!
Se isto não acontecer o mal repete-se, e repete-se, e repete-se....

PauloRodrigues disse...

Reagan queria acabar com o fmi.
Depois da bancarrota do México em 1982 (provocada pelo aumento das taxas de juro nos states), o fmi rescuscitou das cinzas como instrumento do neoliberalismo, para obrigar os países desesperados a desregular, a privatizar, a eliminar serviços públicos.

Óscar Pereira disse...

Caro Jose,

«Sem grossos capitais e acesso a mercados externos sempre as indústrias produtivas serão em Portugal mesquinhas.»

Certo, mas isso não é uma lei natural, existem razões para Portugal estar nesse estado. O mui em voga credo neoliberal oferece os salmos do costume, viz. demasiado estado, demasiados impostos, demasiadas protecções laborais, etc.

A história contudo, parece afinar-se por um diapasão diferente. Num perspicaz livro intitulado "Kicking away the ladder", e baseado em extensa análise histórica, o economista Ha Joon Chang oferece uma hipótese alternativa. Secção 1.2 (parafraseado):

«Friedrich List, commonly known as the father of the infant industry argument, namely, the view that in the presence of more developed countries, backward countries cannot develop new industries without state intervention, especially tariff protection.

[...]

List argues that Britain was actually the first country to perfect the art of infant industry promotion, which in his view is the principle behind most coutries' journey to prosperity.»

Podia valer a pena informar-se, em vez de simplesmente resmungar que Portugal nunca poderá fazer melhor do que imolar salários (e direitos laborais) ad aeternum, de modo a ficar atractivo para o dito capital estrangeiro. (Até porque se gente suficiente começa a pensar assim, a coisa vira self-fulfilling prophecy... )

Jose disse...

Caro Oscar

Reveja os Planos de Fomento do Estado Novo e vai lá encontrar tudo o que refere, em tempo que um Império dava poder negocial e sustentava grandes ambições .

Perdido o Império e muitos desses frutos, sobrou um retângulo, ora perturbado ora delirante, que passados 46 anos ainda se pergunta se pode ter Planos de Fomento Industrial.

Óscar Pereira disse...

Caro Jose,

«Perdido o Império e muitos desses frutos, sobrou um retângulo [sic], ora perturbado ora delirante, que passados 46 anos ainda se pergunta se pode ter Planos de Fomento Industrial.»

Por uma vez, acho que está a ser demasiado optimista... tirando espaços como este (LdB), quase ninguém se "pergunta" coisa alguma; simplesmente assume-se que não é possível (e aqui incluo o Jose).

As alternativas constroem-se; não caem do céu. E durante esse processo de construção, não é sempre possível ter a respostas todas. Agora assumir que lá porque não há solução simples ou óbvia (o que é o caso), então não há solução de todo, é, como eu disse, uma self-fulfilling prophecy...

E se realmente acha que o problema de Portugal é já não ter um império, recomendo-lhe a leitura do capítulo 2 do livro de Chang, onde se narra como a Inglaterra começou a sua industrialização barrando ou restringindo a importação de bens oriundos de manufacturas mais desenvolvidas (nomeadamente, na altura, os Países Baixos) -- numa altura em que o seu (Inglaterra) império era pouco mais de embrionário. É certo que foi um processo que demorou mais de uma geração, mas não consta que alguém agora olhe para esses monarcas como delirantes ou perturbados (ou pelo menos, não por causa dessas políticas...)

Jose disse...

Caro Óscar
Houve um tempo em que os impérios requeriam fronteiras e as armadas garantiam o seu poder.
Nós não estamos aí desde há muito. Manter o império foi quase milagre enquanto durou, e não é essa a questão que me interessa

Obviamente há meios a usar na organização industrial do país, sendo as ajudas europeias a sua manifestação mãos recente e ainda activa.

Interessam-me coisa simples: formação de profissionais competentes, rigor, organização, responsabilidade, eficiência jurisdicional.

Fazer planos com lixo, dá lixo (shit in, shit out- princípio base de gestão)

João Pimentel Ferreira disse...

Caro PauloRodrigues, espero sinceramente que durante a próxima crise - e haverá porque são periodicamente sistémicas ao capitalismo - que o país não tenha apoios de qualquer instituição supranacional. Dar-me-á um enorme gozo mesquinho ver serem aplicadas medidas de austeridade "à bruta", com o país sem ninguém para lhe oferecer crédito. Nesse dia é que as contas públicas se equilibram, a bem ou a mal.