terça-feira, 21 de abril de 2020

Nem papão, nem modelo


Vítor Dias teve toda a razão: “Esta capa podia ter sido feita por Trump”. Tudo isto já tem algumas semanas, mas permanece obviamente actual. E de resto não é nada que surpreenda, dado o lixo editorial que se tem encontrado regularmente no Expresso em tantas áreas.

Nesta imprensa, a abordagem dominante às relações internacionais faz o debate económico parecer pura sensibilidade e bom senso. Os neo-conservadores rondam por aí, em busca de inimigos para justificarem a anacrónica OTAN, os estatocídios ou o apetrechamento militar da Alemanha, perdão, da UE.

Para os que falam como se estivessem em Washington ou em Bruxelas, a sinofobia é uma das versões hoje possível de um mal disfarçado racismo nas relações internacionais, na tradição do ainda hoje incensado Wilson e dos seus aliados ocidentais, os que, por exemplo, recusaram a proposta japonesa para que Conferência de Paris de 1919 e a futura Sociedade das Nações reconhecessem a igualdade entre os povos.

Para os que pugnam por um mundo multipolar, onde a China não é papão, nem modelo, esta república é responsável por uma igualização nas relações internacionais que é bem-vinda. Tem de terminar o tempo da arrogância ocidental. Afinal de contas, estamos a viver o que alguns historiadores globais, dados a grandes narrativas, já chamaram o fim da época de Colombo.

Para este rectângulo no apêndice ocidental da grande massa euro-asiática, a China permite uma saudável diversificação de relações, base potencial de uma maior autonomia, sendo que nada justifica que não nos comportemos como os chineses no controlo dos nossos recursos estratégicos. E recusar firmemente modelos não quer dizer que não se aprendam duas ou três coisas com um país que sempre recusou o Consenso de Washington na política económica (e este Consenso está vivo-morto em Bruxelas).

Em primeiro lugar, aprende-se a necessidade de controlar sectores estratégicos, veículos do planeamento necessário e possível. Em segundo lugar, a necessidade de controlar a entrada e a saída de capitais, por forma a controlar a instabilidade financeira e a manter uma taxa de câmbio adequada ao desenvolvimento, entendido como expansão das potencialidades produtivas. Em terceiro lugar, a necessidade de controlar o sistema financeiro nacional, através de uma participação pública decisiva, com um Banco Central capaz no pináculo, financiando o investimento necessário.

A esquerda comete portanto um erro se reduzir a China ao autoritarismo político ou aos efeitos concorrenciais negativos, sentidos por cá, da chamada expansão da força de trabalho global. Estes efeitos foram exponenciados pela ausência de instrumentos de política, trancados que fomos numa moeda demasiado forte e num mercado único que impediu a política industrial.

Seja como for, recusemos primeiramente ser envolvidos em novas guerras frias.

Adenda. Para contrariar a versão trumpista dos recentes acontecimentos, vale a pena ler a série de três artigos, que creio compatíveis com a OMS, que Vijay Prashad escreveu em co-autoria sobre a resposta chinesa ao Covid-19. Prashad é um historiador indiano, tendo escrito a melhor história que conheço sobre o projecto político do Terceiro Mundo, infelizmente ainda por traduzir, como de resto grande parte do que contraria um certa versão dos acontecimentos do século passado.

11 comentários:

PauloRodrigues disse...

O número de milionários militantes no partido comunista chinês aumenta de dia para dia, pelo que ninguém poderá prever o que será a China daqui a 20 anos, quando essa gente tomar as rédeas do destino do país.

Anónimo disse...

Só para indicar que a excelente série de três artigos referida na adenda, cada um da coautoria de Vijay Prashad, Du Xiaojun e Weiyan Zhu, que repõem a verdade dos factos e esclarecem cabalmente como a China lidou de modo exemplar com a comunidade internacional nesta crise do coronavírus, já está disponível em português do Brasil.

O papel da China diante da crise do coronavírus

Como a China descobriu o novo coronavírus semanas antes da pandemia global

Como a China quebrou a corrente de transmissão do coronavírus

Os respetivos links:

https://www.brasildefato.com.br/2020/04/04/artigo-o-papel-da-china-diante-do-corona-shock

https://www.brasildefato.com.br/2020/04/08/como-a-china-descobriu-o-novo-coronavirus-semanas-antes-da-pandemia-global

https://www.brasildefato.com.br/2020/04/16/como-a-china-quebrou-a-corrente-de-transmissao

Anónimo disse...

A esquerda comete um erro igualmente grave se se recusar a ver o autoritarismo político chinês, e deixar para a direita e os trumpistas esse espaço de crítica. Precisamos tão pouco dessa arrogância ocidental, bem identificada no texto, como de anti-imperialismo bacoco. Os artigos recomendados não "repõem a verdade dos factos", simplesmente reproduzem de forma acrítica a versão oficial chinesa dos acontecimentos.

Anónimo disse...

Um excelente post que concita logo ao reflexo pavloviano de Paulorodrigues, uma das centenas de nicks de joão pimentel ferreira

Ele bem tentou disfarçar mas os tiques acabam por vir inexoravelmente ao de cima

Anónimo disse...

Com efeito, os factos estão à vista de todos e falam por si. A partir do momento em que se comprovou que o vírus era transmissível entre humanos, a China tomou imediatamente medidas enérgicas, não hesitou em sacrificar o seu crescimento económico para defender a saúde da sua população e, desde então, teve pouco mais de 4600 mortos. Os Estados Unidos, que beneficiou do conhecimento e da experiência chinesa, com dois meses para se preparar, sacrifica a saúde da sua população para defender os lucros das suas corporações e, com menos de um quarto da população, já tem dez vezes mais mortos (e, infelizmente, ainda terá bastante mais).

Anónimo disse...

Vale a pena ler também os que, em nome dos sacrossantos "valores ocidentais", advogam a guerra fria - ou mesmo quente, se (e quando) se lhes afigurar necessário ir por aí. Há dias, o Observador publicou esta coisa, com base em tomadas de posição recentes da chamada "Henry Jackson Society":

https://observador.pt/especiais/o-que-a-china-nao-fez-para-evitar-a-pandemia-o-resto-do-mundo-pode-pedir-contas-ao-regime/

Diz-nos o Observador que a Henry Jackson Society "é um think tank de pendor liberal", com a Universidade de Cambridge como "incubadora". Diz-nos ainda: "O vice-primeiro-ministro do Reino Unido, o conservador Michael Gove, também tem ligações antigas a este think tank, assim como vários deputados do Partido Trabalhista. “Democracia, Liberdade, Direitos humanos” são os três princípios que, segundo o próprio organismo, norteiam a sua intervenção na sociedade britânica. O nome do grupo é uma homenagem a Henry M. Jackson, um norte-americano que foi senador pelo Partido Democrata dos EUA e cuja carreira política foi pautada pela defesa dos direitos civis e pelo combate ao comunismo". Sugere o Observador que, "incubado" pela respeitável universidade inglesa, o dito "think tank" tem respeitabilidade académica; e que, com gente do Partido Democrático norte-americano e do Partido Trabalhista britânico, até tem credenciais "progressistas".

Consultando a Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Henry_Jackson_Society), podemos saber um pouco mais sobre esta sociedade nascida em 2005, dois anos depois da invasão do Iraque essencialmente para "evitar que Saddam usasse as armas de destruição maciça" de que supostamente dispunha:

a) Ela teve como "International patrons" os "neoconservadores" americanos Richard Perle e William Kristol, bem como o director da CIA R. James Woolsey Jr.

b) Na sua declaração de princípios inicial, a sociedade disse ao que vinha, nestes termos:

"- Supports a 'forward strategy' to assist those countries that are not yet liberal and democratic to become so. This would involve the full spectrum of 'carrot' capacities, be they diplomatic, economic, cultural or political, but also, when necessary, those 'sticks' of the military domain.

- Supports the maintenance of a strong military, by the United States, the countries of the European Union and other democratic powers, armed with expeditionary capabilities with a global reach.

- Believes that only modern liberal democratic states are truly legitimate, and that any international organisation which admits undemocratic states on an equal basis is fundamentally flawed."

Jaime Santos disse...

A primeira medida para nos comportarmos como os Chineses na defesa de recursos estratégicos é não os vendendo a empresas estatais chinesas, sobre isso suponho que estaremos de acordo.

O capital privado chinês é por outro lado bem vindo, digo eu, e aliás verifica-se que alguns capitalistas chineses optaram e bem, pelo filantropismo no contexto da actual pandemia. O João Rodrigues provavelmente discorda, se quiser ser coerente com o que escreveu sobre o Pingo Doce. Como é bem vinda a cooperação com a China em áreas como a Educação, Ciência, Ambiente, etc.

Em terceiro lugar, a diplomacia da máscara é melhor do que a da canhoneira, mas convém não se ser ingénuo. Como qualquer outra grande potência, a China pretende seguramente obter vantagens das suas acções humanitárias, como a Rússia, por exemplo (assim como os capitalistas individualmente, claro).

Tratando-se ainda por cima de regimes pouco transparentes, convém olhar para tais acções com o devido cepticismo...

As pias declarações sobre o internacionalismo são normalmente uma cortina de fumo hipócrita para o controle do forte pelo fraco. Basta olhar para o exemplo da URSS e do antigo Bloco de Leste e do apoio cego concedido à primeira no Ocidente, embrulhado na conversa da luta pela emancipação da classes populares...

Sobre o modelo chinês, infelizmente, não é apenas o seu carácter ditatorial (o termo autoritarismo, João Rodrigues, é um puro eufemismo e eu desconfio que sei a razão porque o usa, mas adiante) que deve merecer a nossa atenção. Devem merecer a nossa atenção aspectos como a dívida pública real da China ou a sua banca sombra, por exemplo.

Claro, um gigante pode endividar-se quanto quiser (é demasiado grande para falhar), já um anão como nós tem que ter cuidado com o que gasta e/ou investe. O simples facto de a China (mesma coisa para os EUA) se poder dar ao luxo de fazer disparates não nos serve de consolo e muito menos deve servir de exemplo.

Por outro lado, verificamos desta crise que o que é opaco mata, ou se se quiser que só os cogumelos crescem no escuro. Regimes como o chinês sofrerão sempre com a falta de transparência, porque nenhum burocrata colocado num lugar qualquer intermédio de província quererá dar más notícias ao grande líder. E quando assim é, mata-se o mensageiro. Com consequências trágicas para a China e para o mundo neste caso. Dessa fama, a China já não se livra.

Rejeitam-se, evidentemente, as teorias da conspiração sobre a natureza artificial do vírus, fosse ela devida a um acidente no laboratório de Wuhan ou à perfídia ianque (para depois o vírus vir infectar a população dos EUA?). Ver: https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9.

Finalmente, vale sempre a pena lembrar que os homens são todos iguais e se o desejo de riqueza e poder se manifesta porventura de forma distinta em culturas distintas, ele é universal.

Olhar desapaixonadamente para o poder na China implica reconhecer isto, como se reconheceria se falássemos dos EUA ou da Alemanha, levando em conta que nestes dois últimos casos, as lideranças estão pelo menos sujeitas ao escrutínio democrático, o que não acontece na China.

O resto é conversa para enganar meninos...

Anónimo disse...

Exactamente isto! "a China permite uma saudável diversificação de relações" e, quem sabe, ensinar Portugal a colocar os seus muçulmanos em campos de re-educação? Esmagar protestos por mais democracia no sei território (Hong Kong)? Não sabia que isto era um blog de tankies...

Anónimo disse...

"Desta fama a China já não se livra"

A forma de manipulação é uma coisa lixada. Uma espécie do salazarento " o que parece é" em estilo hodierno para ver se passa.

Anónimo disse...

Deixando para lá os tankies do Pimentel Ferreira, ancorado nas idiotices das palavras de ordem lá de casa, não deixa de ser notável o regresso do estribilho dos homens serem todos iguais, donde o desejo de riqueza e poder ser universal.

Uma espécie de água-benta aspergida sobre os que desejam mesmo o poder e a riqueza à custa de todos os demais.

Uma espécie de denominador comum entre o carrasco e a vítima. Um não se transforma no outro porque não pode

Já ouvimos isso e foi em antros tenebrosos

Anónimo disse...

O resto é mesmo conversa de Jaime Santos para enganar meninos