sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Com o capital não se brinca?


A reestruturação da dívida Grega parece estar a ser feita sem que o governo grego meta para aí nem prego nem estopa. Nesse sentido não é uma reestruturação liderada pelos devedores, para utilizar a categoria criada pelo Research on Money and Finance.

Mas também não me parece que seja uma reestruturação tão “voluntária” como isso. Um corte de cabelo de 20% pode ser um bom negócio, mas um outro de 50%, nem tanto. Nesse caso, também não é uma reestruturação liderada pelos credores.

Se eu não estiver enganado é uma reestruturação liderada pela Alemanha no papel de potencial devedor (e consentida pela França, entre outros). Uma espécie de reestruturação que não cabe na dicotomia “liderada por credores / liderada por devedores”.

O que mais me impressiona nesta reestruturação é o que ela revela do poder que um estado (ainda) tem contra os conglomerados financeiros. Tem o poder de fazer desaparecer de um só golpe 50% da dívida Grega aos privados, parece que tem o poder de não desencadear um “evento de crédito” e o accionamento dos Seguros de Crédito (CDSs), tem o poder de modificar o discurso no espaço público, transformando “calote” e “bancarrota” em “perdão”, tem o poder de silenciar uma legião de economistas que na véspera afirmavam que um incumprimento num estado da Euro Zona desecadearia o caos e a desordem.

Posso estar enganado, podem ter dado contrapartidas aos bancos que nós não conhecemos (embora me pareça duvidoso que os requisitos de rácio de capital e a oferta de dinheiros públicos para a capitalização se possam contar como contrapartidas). Mas o que me parece é que estamos perante uma manifestação invulgar do poder dos poderes públicos em resposta a um sentimento de “no bail out” que é muito forte na sociedade alemã e incluiu não só os periféricos pecadores mas também os bancos.

Eu que já ouvi dizer tantas vezes “com o capital não se brinca” sou levado a observar que por vezes com o que não se brinca é com um Soberano em estado de necessidade. O Soberano, independentemente da sua cor política e da intimidade cultivada com a finança ao longo de muitos anos, pode mesmo ser forçado pela pressão popular e pela necessidade, a levar muito mais longe do que gostaria à partida os seus exercícios de força política. Quem sabe ainda veremos a interdição de transacções com offshores, a taxação das transacções financeiras e tantas outras desconsiderações aos capitais que no passado só a esquerda defendeu.

Ainda poderemos assistir a isso e não nos devemos surpreender nem chocar só porque não se ajusta à primeira em alguma categoria conceptual a que estejamos habituados.

Aqui, como em muitas outras eventualidades, a história é boa conselheira. Quando o Soberano espirra, o capital com que nunca se deve “brincar” pode apanhar uma pneumonia. E por vezes o Soberano a espirrar primeiro não é aquele de quem se esperava o espirro.

5 comentários:

Anónimo disse...

Esta europa do urso de peluche é uma falácia colossal! www.portugalnonevoeiro.blogspot.com

jacinto disse...

A vida ultrapassa qualquer pré-formatação de que nos procuremos socorrer.
Mal daqueles que olhando para a história procurem para os problemas actuais as soluções já testadas, como se outras não fossem possíveis.

abraço,
Paulo Jacinto

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Zé Maria,
gostaria que explicasses melhor a tua ideia.
Que se trata de um acto de "grande potência" por parte do governo alemão, reconheço-o de bom grado. Também, e antes disso ainda, reconheço que sem a força ou a "potência" soberana que o garanta, o poder financeiro pode muito pouco, e o próprio poder económico vê coartadas as suas condições de exercício.
Mas - e daí que te peça que explicites melhor o teu pensamento - receio que esta demonstração de soberania do governo alemão se faça reduzindo ainda mais as perspectivas de federação efectiva da UE e seja prenúncio da sua desagregação mais possível do que nunca. Também não me parece que aponte uma saída para o problema do euro ou se encaminhe no sentido da integração orçamental e política, social e fiscal, etc., sem a qual não vejo que a moeda única possa fazer parte da solução (em vez de a afastar cada vez mais).
Forçando um pouco a nota, poderíamos ver até no que se passou um triunfo da política chauvinista e expansionista do governo alemão e dos interesses que veicula: quer dizer, da política que condiciona a não-ruptura da UE à supremacia "nacional" alemã, até ao momento assente no ultimato - ou a UE se mantém sob a supremacia crescente da Alemanha, ou a Alemanha deixará cair a UE para afirmar a sua "política de (grande) potência" por outras vias e noutros quadros.
Bom, se estas dúvidas - algumas das quais podem resultar de uma insuficiente compreensão do que escreves - te parecerem merecer esclarecimento, creio que não serei só eu a beneficiar de uma formulação mais explícita do que dizes neste post.

Abraço para ti

msp

José M. Castro Caldas disse...

Caro Miguel, Não, isto não é nenhuma manifestação de regozijo com as conclusões da cimeira histórica e a supremacia Alemã. O ponto é simples e apenas este. Se é possível em estado de necessidade impor à finança um haircut de 50% da dívida Grega, que mais não será também possível - offshores, taxação das transacções financeiras, BCE como prestamista de última instância - e pode ser possível se houver suficiente pressão popular. Assim se vai descobrindo que afinal se pode “brincar” com o capital e não acontece nada de especial e que os governos não estão tão desarmados assim face à globalização. Quanto aos resultados da cimeira... péssimos, incluindo para a Grécia que agora tem um governo de ocupação. Quanto ao caminho que a UE está a seguir... desagregação perigosa. Mas isso já outros disseram neste blog. Lamento se não fui claro. Abraço JM

João Carlos Graça disse...

Tens razão em sublinhar isto. Na verdade, o discurso "mundialista" ou "globalista" (em todas as suas variantes: "alter-globalismo" formalmente "de esquerda" incluído) releva de um libertarismo instintivo que veicula a típica formatação mental correspondente ao modelo do "agente racional".
Não, as coisas NÃO SÃO assim! E sim, há um saco de coisas que podem ser feitas pela acção política - diria à espera de serem feitas pela acção política - que o discurso "anti-soberanista" desconhece só porque faz questão disso, porque essa é a pala mental que constitui a sua definição mesmo.
Mas daí, quem é que nos manda ser "anti-soberanistas"?...