terça-feira, 25 de outubro de 2011

Para acabar de vez com os mitos da crise

Se nalguma coisa a narrativa austeritária tem sido singularmente bem sucedida, é a disseminar e explorar o mito de que os países da periferia europeia viveriam acima das suas possibilidades por os seus trabalhadores trabalharem de menos e terem regalias a mais. Esta visão hegemónica foi abundantemente vendida aos eleitorados e opiniões públicas dos países do centro europeu, claro, mas tem também exercido grande influência na própria periferia.

Acontece que é, simplesmente, mentira. Este post publicado no blogue da Real World Economics Review, que tem por base um exercício anterior de Kash Mansori, reúne cinco tabelas que mostram isso muito bem. É um conjunto de indicadores a que nós e outros já nos temos referido, mas que aqui se encontram convenientemente reunidos e resumem a questão de forma cristalina.

As figuras falam por si, mostrando que, de uma forma geral, os trabalhadores da periferia europeia…

1) trabalham mais horas;

2) têm taxas de actividade idênticas ou mais elevadas (especialmente Portugal e Espanha);

3) no caso de Portugal e sobretudo da Grécia, apresentaram níveis de crescimento médio anual da produtividade do trabalho, entre 2000 e 2008, idênticos ou superiores aos do centro europeu;

4) registam níveis de despesas sociais per capita bastante mais reduzidos;

e 5) apresentam um nível de despesas com pensões de reforma em percentagem do PIB (isto é, relativamente à capacidade da economia) idênticos aos do centro europeu;

Ou seja, a narrativa hegemónica é uma rematada mentira de consumo fácil, destinada a persuadir as vítimas da espoliação de que "não há alternativa". Quanto à verdadeira história, resume-se nos seguintes pontos:

1) Uma perda de competitividade dos países da periferia europeia ao longo da última década que não se deveu à evolução da produtividade do trabalho mas sim à pertença a uma zona monetária perversa, com um euro sobrevalorizado face ao exterior e, no interior da zona euro, uma competição cerrada ao nível da compressão salarial promovida acima de tudo pela Alemanha...

2) …perda de competitividade essa que, ao longo da última década, provocou o gradual aumento do défice comercial e constrangeu o nível de actividade económica, com consequente perda de receitas fiscais (aumentando o défice orçamental)...

3) …a que se seguiu uma recessão mundial, de 2008 em diante, que implicou uma contracção dos mercados de exportação, com consequente aumento adicional do défice externo e contracção adicional da actividade económica, implicando uma perda adicional de receitas fiscais e um aumento dos gastos do estado por acção dos estabilizadores automáticos (como o subsídio de desemprego)…

4) …recessão mundial essa que incluiu uma crise bancária que esteve na origem da opção política pelo resgate público de bancos falidos em condições desastrosas (somando défice ao défice), aliás na sequência das gigantescas rendas que os estados vêm há muito, e por diversas vias, assegurando à banca…

5) …somando-se ainda ao desperdício obsceno de fundos públicos decorrente da captura do Estado por interesses rentistas, nomeadamente através das ruinosas “parcerias" público-privadas.

Portanto: uma crise cujos fundamentos residem nas estratégias do capital centro-europeu; que foi despoletada por uma recessão mundial também ela decorrente do funcionamento do capitalismo financeirizado; e que se tornou insustentável devido ao desperdício acumulado do erário público em benefício de interesses rentistas nacionais, com a banca e os grandes grupos económicos à cabeça.

E pela qual são os trabalhadores, pensionistas e classes populares a pagar - de uma forma nunca vista e, se não reagirmos à altura, permanente.

Mais do que uma crise, é um gigantesco roubo. E temos todos a obrigação de lutar contra ele nas ruas, nos locais de trabalho… e nas mentes daqueles com quem falarmos.

11 comentários:

Carlos Albuquerque disse...

A proposta de OE 2012 vai contra muito do que tinham sido até aqui as políticas defendidas pelo PSD e CDS e, mais do que reduzir o défice, visa essencialmente desvalorizar o trabalho.

A partir da apresentação da proposta do OE 2012 fiquei convencido que o combate ao défice deixou de ser a primeira prioridade. Agora o mais prioritário é resistir por todos os meios à aplicação em Portugal da doutrina do choque.

Espero que consigamos todos estar à altura do combate nesta guerra que nos foi imposta por outros.

Uma abstenção do PS significará uma cumplicidade gravíssima com o pior do neoliberalismo.

Anónimo disse...

Lameltavelmente ,são comentários de este género, que enganam as pessoas ,com o único objetivo de criar mal estar e revolta.

Nada do que estão naqueles 5 PONTOS ,CORRESPONDE Á VERDADE!!!

Existem centenas de estudos nacionais e internaciosnais que o comprovam.
Se assim não fosse não estariamos na situaçao em que nos encontramos.

NÃO ENGANEM AS PESSOAS!!!

Alexandre Abreu disse...

Caro anónimo,

Mais do que fazer comentários maiúsculos sob anonimato, sugiro que aponte os estudos nacionais e internacionais a que se refere, ou os dados que lhes subjazem.
Os dados com base nos quais foram criadas as tabelas são da OCDE, já agora.

Dias disse...

Ou seja, muito antes de 2008, Portugal e outros periféricos vinham já talhados para o “sacrifício”.
Hoje, no estertor da queda do Muro - versão Stiglitz, o desespero está a levar ao atropelo de tudo e de todos. Por cá, isto já nem precisa de revisão da Constituição, pois não há tempo a perder. Razão tem o Prof. João Ferreira do Amaral…O controlo do défice, coisa nenhuma!

Luis disse...

Até já mesmo a Troika assumiu o erro no caso da Grécia.

Vejam aqui um relatório confidencial que saltou cá para fora:

http://www.creditwritedowns.com/2011/10/greece-expansionary-fiscal-consolidation-failure.html#.TqQeiL4W3Lo.gmail

SFF disse...

"aliás na sequência das gigantescas rendas que os estados vêm há muito, e por diversas vias, assegurando à banca…"
Se não for pedir muito, que diversas vias?

JBarbosa disse...

Boa noite.

Tenho lido por aqui, que o nosso crescimento anémico nos ultimos dez anos se deve fundamentalmente à entrada no euro, uma moeda extremamente valorizada, que fez cair as nossas exportações, levando assim a um défice na balança de pagamentos, que levou também a um endividamento do país.

Sempre tomei este facto como verdadeiro. No entanto outro dia reparei que o défice da balança comercial não se alterou muito nos últimos dez anos, em relação aos anos anteriores.

Está aqui uma não correspondência dos argumentos com a realidade, ou uma (mais provavel) falta de formação económica da minha parte, que me leva a interpretar mal um destes dois factos?

Alexandre Abreu disse...

Obrigado pelos comentários.

Caro SFF;
Assim de repente,
i) não sujeição a impostos equiparáveis aos que incidem sobre os rendimentos do trabalho, ou sequer sobre os lucros das empresas não financeiras;
ii) comissões sobre operações financeiras realizadas pelo estado, nomeadamente no contexto das PPPs e privatizações;
iii) ausência de política de habitação digna desse nome, empurrando a população para a aquisição de casa própria a crédito;
iv) bonificação dos juros dos empréstimos à habitação, tornando mais baratos esses empréstimos, ou seja, subsidiando a concessão de crédito;
v) juros sobre a dívida pública num contexto em que os estados não se podem financiar directamente junto do banco central mas a banca pode fazê-lo em condições privilegiadas, funcionando na prática como um intermediário principescamente pago que para todos os efeitos seria desnecessário.

Caro J. Barbosa,
O Euro entrou em circulação em 2002, mas os critérios de Maastricht, que impuseram a convergência nominal, foram aprovados em 1992 e entraram em vigor em 1993. Desde aí, a imposição dos critérios de convergência ao nível das taxas de câmbio, inflação e juros impôs na prática a ancoragem do escudo ao marco, funcionando desde logo como se se tratasse de uma moeda só (ou antes, com limites muito apertados em termos de possibilidade de flutuação). E é precisamente a partir dessa altura que o défice da balança de transacções correntes começa consistentemente a deteriorar-se. Mas tem toda a razão - eu poderia ter tido mais cuidado na exposição desta questão e sobretudo na indicação do horizonte temporal em causa.

Cumprimentos.

Alexandre Abreu disse...

Caro Carlos Albuquerque,
Seja muito bem-vindo - todos somos poucos para lutar contra a barbárie.
Não que as suas chamadas de atenção anteriores acerca da importância de evitar o desperdício no sector público ou os elefantes brancos sejam descabidas. Pelo contrário: a exigência, o rigor e a boa utilização dos recursos públicos têm de ser preocupações fundamentais da esquerda. O problema é que é muitas vezes esse o pretexto sob o qual se procede a coisas muito mais sinistras, como a privatização das funções sociais do estado ou a espoliação dos trabalhadores e pensionistas.
Cumprimentos e obrigado.

ruddrudd disse...

Caro Alexandre - proponho-lhe um exercício, dado o tempo livre que manifestamente tem para recolher, tratar e apresentar informação.

Gostaria de saber, e julgo que muitos mais gostariam, qual é a nossa dívida discriminada. Pode apresentar apenas os top 50.

Seguramente seria um estudo digno de publicação.

Obrigado,
Rodolfo Cristóvão aka Velho enraizemado.

João Carlos Graça disse...

Obrigado pelo post, caro Alexandre! Nunca é demais sublinhar este género de coisas.
(Os meus pedidos de desculpa pelo atraso deste comentário...)