A conferência Economia com Futuro, que ontem teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, constituiu um momento singular de reflexão e discussão sobre o nosso futuro colectivo. Juntando sensibilidades teóricas e políticas diversas (economistas solidários e insitucionalistas, cientistas sociais de diversas proveniências, académicos e activistas, políticos e jornalistas, reformistas, católicos progressistas e radicais), este fórum fez o que precisa de ser fomentado – a discussão aberta e rigorosa de propostas que sirvam de base à construção de alternativas à falhada, mas persistente, via da austeridade como resposta à crise financeira.
Muito do que lá se passou merece ser ponderado e discutido - e, de uma forma ou de outra, sê-lo-à neste blog. Neste 'post' dedicar-me-ei apenas à contribuição de João Ferreira do Amaral (JFA).
JFA participa no debate sobre o euro na actualidade com a autoridade de alguém que esteve durante muitos anos praticamente isolado no plano académico (sendo acompanhado no plano político pelo PCP e pouco mais) na crítica a uma arquitectura de gestão macroeconómica europeia cujas deficiências são hoje visíveis para todos. Ao contrário das suas intervenções públicas mais recentes, a intervenção de JFA esteve menos centrada na discussão sobre a saída de Portugal do euro (que não deixou de defender), mas antes no que deverá ser o futuro regime monetário da UE.
JFA parte de duas premissas. A primeira constitui um balanço de 12 anos de moeda única e consiste na conclusão de que o euro falhou no seu objectivo central de criar estabilidade financeira na UE. A segunda premissa é a de que os problemas do euro são económicos e não financeiros – os desequilíbrios hoje existentes são indissociáveis da dificuldade que alguns países com estruturas produtivas mais frágeis têm em lidar com uma moeda forte como o euro (tal característica do euro não foi apenas visível na sua apreciação face ao dólar na última década; tudo aponta para que esta tendência se acentue nos próximos anos). Esta dificuldade é uma parte incontornável da explicação para o crescente endividamento externo das economias periféricas.
Segundo JFA, tal regime monetário terá de possuir quatro características: (i) assegurar o financiamento da economia europeia; (ii) permitir ajustamentos cambiais que traduzam as diferentes evoluções competitivas das economias nacionais (dentro de uma banda de flutuação assegurada pelo BCE e pelos bancos nacionais, para evitar grandes oscilações cambiais); (iii) prever instrumentos de gestão macroeconómica para fazer face a choques assimétricos; e (iv) libertar os Estados do jugo dos mercados financeiros (nomeadamente, permitindo o financiamento monetário dos défices em situações de excepção).
Algumas destas características – nomeadamente, a (i) e a (iv) – são ou podem ser asseguradas através de ajustamentos pontuais ao regime monetário existente na UE (o ponto (iv) depende do reforço dos recursos e âmbito de intervenção do Fundo Europeu de Estabilização Financeira). No entanto, os pontos (ii) e (iii) estão ausentes da actual arquitectura de gestão macroeconómica da zona euro, só podendo ser incorporados através de uma profunda alteração dos Tratados. Na sua ausência, a resolução das crises na UE só poderá ser feita através de recessões prolongadas, marcadas pela austeridade e pelos custos sociais associados. Esta é uma via social e politicamente insustentável, que acabará por pôr em causa o projecto de integração europeia.
Não é de esperar que todos concordem com a análise de JFA (a experiência mostra até que é de esperar o contrário...). No entanto, o grande contributo de JFA na conferência Economia com Futuro consistiu em deixar bem explícitas as premissas e relações lógicas do seu raciocínio. Se toda a discussão que se faz neste país sobre o futuro da UE (e da posição de Portugal no seu seio) estivessem ao mesmo nível, o debate seria bem mais útil e consequente.
5 comentários:
Caro Ricardo,
A estas horas, já não penso grandes coisas. No entanto, parece-me existir uma contradição nesta proposta. Passou-se do SME para o euro para se assegurar uma maior articulação das políticas macroeconómicas. Agora, parece querer-se recuar para o SME (embora a configuração possa ser bem distinta da anterior) com o mesmo objectivo, quando foi esta impossibilidade a decretar o seu fim.
Enfim, esta proposta também pode ser uma forma de fugir à discussão da união política.
Um abraço.
Rui Monteiro
Caro Rui,
Um novo SME com um BCE musculado seria, de facto, algo substancialmente distinto do que existiu entre 1979 e 1999. Na sua intervenção, JFA fez, aliás, questão de lembrar que existe a funcionar um mecanismo de taxas de câmbio para lidar com o facto de 10 dos países da UE (alguns deles com economias frágeis) estarem fora do euro.
Dito isto, o mercado interno europeu tem vindo a ser construído numa lógica de reduzir ao mínimo o espaço de intervenção dos Estados na evolução das economias nacionais (como sabemos, sem criar mecanismos de ajustamento alternativos à desvalorização salarial). A reintrodução de um regime de taxas de câmbio flexíveis, ainda que fortemente controladas, representaria também a reintrodução de uma lógica distinta de funcionamento do mercado interno europeu. E, sendo este a coluna vertebral do processo de integração europeia, a proposta de JFA é muito mais do que uma via para ultrapassar a crise actual - trata-se de uma proposta de reconfiguração do projecto de construção europeia. Tudo somado, já estive mais longe de acreditar que estas discussões são meramente académicas.
Um abraço,
Ricardo
Realmente o Prof. Ferreira do Amaral (e o PCP) devem ter sido os únicos a não se entusiasmarem com o Euro e a perceber o que nos poderia acontecer.
Infelizmente continuamos a insistir num caminho que a experiência já mostrou estar errado.
Infelizmente também, não irá acontecer nada do que o Prof. Ferreira do Amaral propõe.
O mais provável é alguns dos países do Euro, nós, a Grécia e talvez a Espanha, Itália, Irlanda e mesmo outros, afundarem-se no caos, arrastando com a sua queda o Euro e a própria União Europeia.
É que os principais inimigos da UE não são os euro-cépticos, os principais inimigos da UE são os euro-entusiastas que se recusam a ver a realidade e insistem em situações insustentáveis que acabarão por a liquidar.
A unica solução para Portugal é produzir e exportar mais e importar menos.
Estar à espera que a UE resolva o problema é um erro que vai sair caro.
Paulo Pereira escreveu:
"A unica solução para Portugal é produzir e exportar mais e importar menos."
Sim, mas para fazer isso seria conveniente livrarmo-nos do Euro.
A experiência de doze anos mostra-nos que não é com o Euro que conseguimos exportar mais e importar menos...
"Estar à espera que a UE resolva o problema é um erro que vai sair caro."
A UE nunca nos poderá resolver o problema! O que é necessário é que não o complique!
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