sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Querido diário - "O liberalismo funciona!"

Jornal Público, 7/1/2012
 João Cotrim de Figueiredo, ex-responsável do Turismo do Governo Passos Coelho/Paulo Portas, lugar de escolha do ex-dirigente do CDS Adolfo Mesquita Nunes, repete sempre a mesma frase em cada debate em que participa: "O liberalismo funciona!" 

O golpe de mestre dos liberais é afirmar que as políticas aplicadas não surtiram efeito desejado porque não foram aplicadas na dose eficaz. E se deram maus resultados - como o desemprego a crescer - foi porque não se adoptaram profundas reformas estruturais. Este argumento liberal - não se sabe como - "funciona!"

Nessa altura, Passos Coelho abraçava já o conteúdo do Memorando de Entendimento. Mas recusava-se a reconhecê-lo. António José Seguro, secretário geral do PS, acusava Passos Coelho de "estar apaixonado pela austeridade" e que pretendia aplicar uma agenda que não fora sufragada nas eleições. Passos Coelho respondia elegantemente: "Não tenho tendência para me apaixonar pelos filhos enjeitados de outros". Mas era claro ser esse o seu filho preferido: destruir os direitos laborais, colocar os trabalhadores a mando das empresas, tudo a bem da produtividade (leia-se, menores salários médios para o mesmo produto, maior desigualdade na repartição do rendimento). 

Nessa altura, a ideia era aumentar a jornada de trabalho do sector privado em mais meia hora por dia e sem retribuição salarial. E era o PSD e o CDS que nem queriam que o assunto fosse discutido na Concertação Social. Mas era óbvio que Seguro tinha razão. Passos Coelho já o confessara na Comissão Permanente da Concertação Social (CPCS).

Deixem-me voltar a citar o já citado 3º Relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas, a partir das actas da CPCS:

 

A 22/03/2011 [durante o mandato do Governo Sócrates], é fechado – com a oposição da CGTP – o Acordo Tripartido para a Competitividade e Emprego, contemplando, entre outras disposições, uma redução de 33% nas compensações por despedimento (20 dias de retribuição base por cada ano de contrato), a criação de um limite máximo a essas compensações (12 salários mínimos) e o fim do limite mínimo de três meses de retribuição. É relevante, pelo seu significado e consequências, observar as posições expressas pelas confederações sindicais: enquanto a CGTP frisou “o carácter lesivo dos interesses dos trabalhadores, dos cidadãos em geral e do desenvolvimento económico e social do país” , a UGT elogiou o acordo, colocando o enfoque nas políticas ativas de emprego e na “agenda futura, particularmente na área da negociação colectiva” (...). É de registar que, logo no dia seguinte à aprovação do Acordo Tripartido (23/03/2011), o Parlamento rejeitou o último plano de austeridade (o célebre PEC 4). A 06/04/2011 é apresentado o pedido de assistência financeira pelo governo português e, a 11/04/2011, chega a Portugal a primeira missão técnica da troika. O Memorando de Entendimento é assinado a 03/05/2011. 
Aquilo que o governo socialista aceitou passou a ser plenamente assumido como base de trabalho pelo governo PSD/CDS, entretanto empossado a 21/06/2011, negligenciando posições das confederações que se opunham ou viam riscos nesse rumo. A 27/07/2011, o novo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, referiu na CPCS que era necessário “aproveitar um conjunto de oportunidades que este enquadramento nos proporciona com vista a tornar a estrutura económica nacional mais maleável, mais atrativa para o investimento externo e [capaz de] gerar uma dinâmica de emprego, produção e rendimento sustentável no longo prazo”. Nessa altura, reafirmou ainda o seu compromisso com um cumprimento “ainda mais ambicioso das metas e objetivos do Memorando” e prometeu apresentar, no início de setembro, um documento para alargar e corrigir o Acordo Tripartido para a Competitividade e Emprego, concluído em março desse ano, salientando o “objetivo de revisão da legislação laboral de uma forma mais ambiciosa que a que está patente no Memorando”. (...) A 12/09/2011, o Governo anunciou um “acordo estratégico” – o Compromisso para o Crescimento e o Emprego

Nele se incluíam diversas matérias e - claro! - a revisão da legislação laboral.

O Ministro da Economia e do Emprego – a denominação de Ministério do Trabalho tinha desaparecido e a área do Trabalho fora integrada na Economia – Álvaro Santos Pereira referiu nesta reunião que “a competitividade também passa pelas alterações previstas no Memorando da troika e o Governo pretende debater nesta sede uma concretização rápida das medidas previstas naquele documento, nomeadamente, nos pontos 4.4 a 4.8”. Ou seja, o Governo, sem o mencionar, estava de facto a colocar em debate conteúdos concretos e profundos sobre as relações de trabalho inscritos nesses pontos: despedimentos, redução da compensação por despedimentos, tempos de trabalho e retribuições. 
O acordo, que passou a designar-se Compromisso para o Crescimento, Competitividade e o Emprego (CCCE) foi concluído a 18/01/2012. Os seus conteúdos fundamentais – que diziam respeito à legislação de trabalho – ficaram consagradas na lei n.º 23/2012, que entrou em vigor a 01/08/2012, a saber: redução da TSU patronal, substituída de seguida por um aumento de meia hora no horário de trabalho, que, por sua vez, seria ainda substituída pelo corte de três dias de férias e de quatro feriados; flexibilidade na organização do tempo de trabalho, com a introdução de banco de horas individual e grupal; interrupções de trabalho (intervalos); encerramento para férias em caso de pontes; alterações na lista de feriados e na majoração dos dias férias; redução para metade da retribuição por trabalho suplementar; fim do descanso compensatório por trabalho suplementar, transformando dias de ócio em dias de produção; alargamento do número de renovações dos contratos a prazo; maior flexibilidade no despedimento (regime da cessação do contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho ou inadaptação); retribuição no caso de faltas injustificadas; regime de layoff; redução da proteção social no desemprego; redução das obrigações de comunicação por parte das entidades patronais; esvaziamento dos instrumentos de regulamentação coletiva (Leite et al., 2014). Muitas destas medidas provocaram, de forma direta e indireta, uma redução do poder de intervenção dos sindicatos, a nível das empresas e serviços públicos, no plano sectorial e nacional. Por certo, com estas medidas, as condições para a sindicalização e a capacidade financeiras dos sindicatos também foram afetadas A CGTP não subscreveu o acordo e a UGT a assinou-o conjuntamente com as confederações patronais.

E hoje chora-se que os salários médios tenham descido tanto que já se aproximem dos salários mínimos. Lágrimas de crocodilo. O Governo, na CPCS, era claro:  se o programa tivesse resultados negativos era um mal necessário:

“A austeridade não é uma opção, mas sim uma consequência inevitável do excesso de despesa sobre a capacidade financeira” do país (CPCS de 25/06/2013). Mais: o “aumento do desemprego não é consequência direta do Memorando, mas da situação de crise em que o País está. (...) Não há uma evidência de espiral recessiva, embora haja muita dor” (CPCS, 13/11/2013). A situação do sector financeiro não era inquietante para o governo. O crédito iria fluir pelo reforço de capitais na banca, pelo aumento do capital social do BEI (Banco Europeu de Investimento) e, finalmente, pela criação da União Bancária que, ao colocar as instituições financeiras europeias sob a supervisão do BCE (Banco Central Europeu), retiraria risco às nacionais (reunião da CPCS de 27/06/2012). Quando a taxa de desemprego subiu de forma vertiginosa – e, para o Governo, de forma inesperada – o então ministro de Estado e das Finanças, Vítor Gaspar, justificou-a como fruto de “alguns fatores pontuais” – como o da crise da construção civil, que levou a “uma elevada destruição de postos de trabalho” – e da subida do desemprego estrutural que, disse Gaspar, “leva à necessidade de serem tomadas medidas estruturais de reforma do mercado laboral” (CPCS, 01/06/2012). Esta veemência de convicções, observada entre meados de 2012 e final de 2013, esbarrou quase sempre em posições expressas pelas confederações nas reuniões da CPCS, tanto patronais, como sindicais, embora nem sempre as posições de alguns dos parceiros tenham coincidido com declarações públicas dos seus responsáveis. Analisando as afirmações do lado patronal em sede de CPCS, observa-se que, para os patrões, o maior obstáculo ao investimento e ao emprego não estava nos custos do trabalho, mas noutros problemas tidos como prioritários. Isto ficou patente desde logo em 2010 e foi sendo repetido durante a aplicação do próprio Memorando de Entendimento. Para as confederações patronais, os problemas essenciais incidiam: 1) na falta de financiamento da economia ou das empresas ; 2) na falta de pagamento por parte do Estado ; 3) nos custos de contexto: energia, telecomunicações, justiça, taxas municipais, etc. ; 4) no efeito recessivo das políticas seguidas no mercado nacional ; 5) na falta de eficácia de muitas das medidas anunciadas ; 6) na necessidade de alteração das políticas comunitárias . As confederações sindicais partilhavam com as confederações patronais muitas das preocupações com as consequências do Memorando, mas os posicionamentos entre as confederações patronais e sindicais tornavam-se distintos ou opostos na abordagem às condições laborais. As confederações sindicais – apesar de nuances importantes entre elas – foram sublinhando que as políticas seguidas visavam apenas uma redução salarial e não reduziam outros custos que pesavam às empresas; que essas políticas eram contrárias à defesa ou criação do emprego; que aprofundavam o desemprego; e que nunca atingiriam os objetivos anunciados pelo Governo, acabando por criar mais precariedade, injustiça e desigualdade, e empobrecimento generalizado . 
Contudo, todos os alertas e posições das confederações patronais e sindicais foram em vão, pois, como disse o primeiro-ministro na reunião da CPCS de 12/10/2012: “O Governo respeita e ouve os parceiros, mas não tem que concordar com tudo”. 

Eram assim os tempos. O mesmo tempo em que Miguel Relvas no Governo já ia fazendo das suas, estando nas boas graças daquele que agora - veja-se lá o que o tempo faz! - é o novo presidente da Câmara Municial de Lisboa.


E era o tempo em que o Governo estava nas boas graças do banqueiro Ricardo Salgado. E vice-versa. As emissões de dívida do BES recebiam garantia do Estado...


 Viu-se, pois, como ao fim de dez anos, o "liberalismo" funcionou...! 

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