No final do ano passado, a evolução dos preços começou a fazer soar alarmes: de acordo com as estimativas do Eurostat, a taxa de inflação homóloga terá chegado aos 5% na Zona Euro em dezembro. Por outras palavras, o nível geral de preços aumentou 5% face ao mesmo mês do ano anterior. O principal contributo para este aumento da inflação tem sido dado pela energia, cujos preços dispararam em 2021. E isso tem levado vários economistas a alertar para os perigos de uma subida incessante dos preços, defendendo a necessidade de se aumentar a taxa de juro para os conter.
Há bons motivos para pôr alguma água na fervura. Convém ter em conta que, em termos históricos, os valores que hoje observamos não representam nada de extraordinário. Na segunda metade do século XX, quando a Europa e os EUA registavam taxas de crescimento significativas e os salários acompanhavam esse ritmo, uma inflação homóloga de 5% era encarada com naturalidade. Mesmo apesar de, nas últimas duas décadas, a inflação ter sido muito contida na Zona Euro, temos boas razões para acreditar que este aumento é meramente temporário. Mas já lá vamos.
Primeiro, importa perceber de onde vem a preocupação que hoje se manifesta. Há várias formas de compreender a inflação, como explicou o economista Jo Mitchell na Tribune Magazine. Tradicionalmente, a maioria dos economistas costumava associar a inflação à evolução dos salários numa economia – ao serem confrontadas com exigências de aumentos salariais, as empresas poderiam aumentar os preços de forma a tentar manter as margens de lucro, o que poderia desencadear uma espiral inflacionista. No entanto, esta lógica parece ter pouco sentido nos dias de hoje, em que a precariedade e a queda das taxas de sindicalização erodiram o poder negocial dos trabalhadores.
Por outro lado, desde a revolução monetarista liderada por Milton Friedman, os economistas mainstream têm olhado para a inflação como o resultado do excesso de dinheiro em circulação. Friedman resumiu, numa frase célebre, que "a inflação é, sempre e em toda a parte, um fenómeno monetário". De acordo com esta teoria, a abundância de crédito barato (resultante de baixas taxas de juro) tenderia a estimular a procura por bens e serviços a um ritmo superior ao da evolução da oferta, o que levaria ao aumento dos preços. Só que a experiência dos últimos dez anos parece desmenti-la: a enorme injeção de liquidez no sistema financeiro e as taxas de juro próximas de 0% não desencadearam um aumento significativo dos preços (o que, aliás, surpreendeu os próprios dirigentes dos bancos centrais).
Mason conclui o que outros economistas heterodoxos, como James Galbraith, têm apontado: a inflação atual deve-se à reabertura gradual das economias e ao aumento da procura por bens cuja produção ainda não recuperou totalmente. O atraso na produção e distribuição de determinados produtos (como semicondutores utilizados na produção de carros e produtos eletrónicos) tem pressionado os preços. No caso da energia, alguns fatores climatéricos também ajudam a explicar os constrangimentos que se verificaram. E noutros casos, trata-se apenas de uma recuperação dos preços face à queda abrupta que tinham registado no início da pandemia. Por isso, há boas razões para pensar que o seu impacto deverá ser temporário.
No entanto, não deixa de ser verdade que este aumento temporário dos preços se tem refletido em custos acrescidos na alimentação ou nos transportes, o que prejudica sobretudo famílias mais vulneráveis. O problema é que aumentar as taxas de juro não o vai resolver. O aumento das taxas de juro tem um objetivo fundamental: limitar a procura agregada e, em particular, o investimento, ao aumentar o custo do crédito. Contudo, se as raízes da inflação estão no lado da oferta, faz pouco sentido tentar resolvê-los através de medidas que restrinjam a procura. Na verdade, aumentar as taxas de juro não só não resolve o problema como acentua a crise, uma vez que impede a recuperação da atividade económica e do emprego, como argumentam dois autores deste blog (Paulo Coimbra e João Rodrigues) na última edição do Le Monde Diplomatique - ed. portuguesa. Nos anos 80, o aumento da taxa de juro nos EUA, que ficou conhecido como “choque de Volcker”, foi eficaz a conter a inflação mas desencadeou uma profunda recessão cujos custos foram suportados pelos mais vulneráveis.
Nesse caso, o que é que podemos fazer? Há pelo menos duas respostas complementares. No curto prazo, o foco deve estar em garantir que os preços não se tornam incomportáveis para as famílias mais vulneráveis. Isso pode ser garantido pelo Estado, através de aumentos salariais na função pública e reforço de apoios sociais, possivelmente financiados pela tributação dos mais ricos, como sugere o economista holandês Servaas Storm. Mas também há quem defenda que serão necessários controlos estratégicos de preços. Isabella Weber, professora de Economia em Massachusetts (EUA), lançou a discussão sobre o assunto, notando que a situação atual se assemelha ao que aconteceu após a II Guerra Mundial, quando a escassez de determinados bens levou a um aumento dos preços e dos lucros de empresas com poder de mercado.
Na altura, economistas de diferentes orientações políticas (incluindo Paul Samuelson, Irving Fischer ou Frank Knight) concordavam que o controlo dos preços de alguns produtos era essencial para evitar a subida galopante dos preços. Numa carta aberta ao New York Times, explicavam que a procura deveria aumentar de forma inédita após a guerra e que “a oferta de matérias-primas e bens de consumo, face à procura atual, é insuficiente para impedir a inflação no próximo ano, a menos que o controlo de preços seja mantido sem alterações paralisantes”. No entanto, houve quem recordasse que essa carta sugeria que o controlo de preços fosse acompanhado pela restrição dos salários. Não é esse o caminho que devemos seguir. O controlo de preços pode ser uma medida eficaz, no curto prazo, para comprimir margens de lucro extraordinárias e proteger os mais vulneráveis. O caso dos medicamentos e outros produtos médicos é um bom exemplo (em Portugal, chegou-se a limitar as margens de lucro na venda de máscaras e desinfetantes). No entanto, deve ser encarado como forma de “comprar tempo” para resolver problemas estruturais.
A médio e longo prazo, a resposta passa pelo investimento público. A crise dos preços da energia reforça a necessidade de investir na produção de renováveis e na promoção da eficiência energética dos edifícios, infraestruturas e transportes (que reduz as necessidades de consumo). O investimento público é o instrumento que permite ao Estado reforçar a estrutura produtiva do país, reduzir a dependência de cadeias de distribuição globais e promover a transição energética. Se queremos evitar problemas persistentes de inflação, é preciso atuar na raiz do problema. Tudo o resto será ineficaz, na melhor das hipóteses, ou mesmo contraproducente.
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12 comentários:
Tudo bem mas nunca esquecer que como bem escreve "...O principal contributo para este aumento da inflação tem sido dado pela energia, cujos preços dispararam em 2021...". "O principal"!.
Mudar abruptamente o actual "status quo" energético aumentando ainda mais a dependência do exterior?.
Por outro lado alterar para outras fontes energéticas e sua utilização como será enviar todos os sistemas de transportes actuais para o lixo e renovar para outros mais caros e importados?. Para outras formas igualmente, ou mais, poluentes?. Não parece grande gesto político.
Será mesmo sábia decisão política a União Europeia, neste momento, alterar o seu (não autónomo) paradigma de energia?. Não será melhor esperar pela solidez de outros formatos indígenas como potencialmente o Hidrogénio?. Tentar re-organizar abruptamente as suas (indispensáveis) fontes de energia cortando liminarmente os establecidos combustíveis fósseis sem já ter em avançado estado de utilização outras forma marcadamente autónomas?. Não será saltar da frigideira para o fogo?.
https://mishtalk.com/economics/is-going-green-really-worth-it
Tem sido interessante seguir as guerras de alecrim e manjerona da elite de economistas mundiais sobre a presente vaga de inflação.
Por um lado houve propostas menos convencionais, como a de Isabella M Weber:
https://t.co/242EM8aDkQ
O interesse desta proposta é que vem duma economista que estudou a forma como a China tem gerido as adaptações a uma economia de mercado mas evitando choques que poderiam gerar crises que comprometessem a estabilidade económica.
Por outro as reacções foram excessivas.
Krugman até pediu desculpa.
O certo é que com uma inflação em Pt abaixo da verificada no centro da EU parece-me ridículo qualquer preocupação aqui em Portugal.
Para mais com um stock de divida pública de 277,5 mil milhões € (em Junho 2021) deveríamos estar a pedir a todos os santinhos pela continuação da inflação moderada a que vamos assistindo.
S.T.
Nada sobre escassez de recursos, competição no acesso a recurso, insegurança em zonas onde se processa a sua extração?
No caso português, na energia continuamos a pagar a generosidade socrática dos contratos de renováveis, a que se acrescentarão outros, que investimento público só faz quem não desbarata impostos nem se endivida para distribuir.
Muito bem!
Aprendi várias coisas a ler este artigo. É pedagógico.
Só não concordo em absoluto com o último parágrafo. O investimento nas renováveis tem de ser muito bem ponderado. Portugal já tem uma % considerável de renováveis, pelo que só devemos investir aí, se isso baixar os preços. A intermitência e instabilidade típicas das renováveis fazem com que esta não possa ser hegemónica. São precisas outras soluções. Fechar as centrais a carvão evoluídas como as que tínhamos à pressa foi um erro. Ou pelo menos podiam convertê-las em centrais de biomassa. O projecto do investimento megalomano do hidrogénio será um erro histórico, semelhante às feed-in-tarifs contratualizadas pelo Sócrates. Haja bom-senso e, sobretudo, ciência na base das decisões.
Neste caso, a forte componente das renováveis no mix energético português amorteceu as subidas nos preços da energia electrica.
Já anda por aí um artigo sobre isso.
Ironicamente devido em parte à generosidade socrática.
Na Alemanha já há comercializadores a abrir falência por incapacidade contratual de transmitir os aumentos de custos aos consumidores.
Noutra frente, a Sra Isabel Schnabel, do ECB, defende que a descarbonização implica um acréscimo de inflação, obviamente a fazer a cama para a continuação dos subsídios às energias fósseis e a fraude de considerar "verde" por exemplo o gás natural.
Quem não os conhecer que os compre!
bloomberg.com/opinion/articles/2022-01-10/greenflation-is-a-crucial-step-in-the-energy-transition-central-banks-take-note
S.T.
Parece-me que os crescentes monopólios de multinacionais numa série de produtos, monopólios internacionais, são uma das primeiras explicações para a inflação. Estas multinacionais aumentam os preços e a sua margem de lucro ao mesmo tempo, ou seja, fazem-no porque podem, não porque precisem de transmitir um suposto aumento nos custos de produção aos consumidores.
Quanto à transição energética, ela é impossível sem investir na indústria de combustíveis fósseis, precisamente pela intermitência energética das renováveis já referida. Fazer guerra aberta aos combustíveis fósseis é pedir uma instabilidade enorme no fornecimento energético e a instabilidade não é boa conselheira.
Anónimo 1: Portugal é um país que tem condições excecionais para a produção de energias renováveis e até temos, a esse respeito, um desempenho bastante positivo. Reduzir a dependência energética tem de passar pelo reforço dessa produção e dos meios de transporte que a utilizem (mesmo que sejam importados, poupa-se a importação de energia estrangeira produzida por combustíveis fósseis).
S.T.: tem toda a razão, Isabella Weber é uma economista com trabalho sério sobre o assunto e os ataques que lhe foram feitos foram desproporcionados.
José: "Nada sobre escassez de recursos"? É apontada como a principal fonte da inflação temporária... De resto, o investimento público nesta área é o oposto de "desbaratar o dinheiro dos impostos".
Pedro Vieira: Portugal tem tido uma experiência positiva com renováveis, mas talvez fosse importante reforçar a quantidade produzida (e a capacidade de produção), para evitar a dependência de energia importada, que tem agravado o nosso défice comercial: https://www.dn.pt/dinheiro/defice-comercial-regressa-aos-niveis-da-troika-com-subida-explosiva-na-energia-importada-14478921.html
RPL: se o problema for de poder de mercado, mais uma razão para apostar em controlos estratégicos de preços que comprimam as margens de lucro monopolistas, parece-me
Vicente Ferreira. "Portugal é um país que tem condições excepcionais para a produção de energias renováveis". Tudo bem, mas a que preço para o consumidor?. Afinal essa excelente vantagem deve ser vantajosa para o acionista ou para o consumidor?.
Muito bom resumo sobre a situacao que estamos a viver agora. Subir taxas neste momento é o equivalente a deixar de beber agua para perder peso. é capaz de baixar o peso de uma pessoa mas nao é propriamente util, saudavel ou inteligente.
o unico ponto que sou um pouco ceptico é relativo a baixa inflacao desde da crise financeira. Pessoalmente, suspeito que varios paises (Portugal incluido) nao dao a importancia devida aos custos habitacionais no Indice Geral de Precos.
https://shifter.pt/2020/10/a-austeridade-habitacional-escondida/
Em relacao ao controlo de precos, na Zona Euro 13% do CPI tem precos controlados (21% na Holanda e 30% na Suica). ou seja, esta longe de ser uma novidade
https://ec.europa.eu/eurostat/databrowser/view/PRC_HICP_INW__custom_1897926/default/table?lang=en
Guilherme, tens razão, há alguns produtos que registaram níveis de inflação mais altos, apesar de isso não se refletir no CPI. Li o teu texto na altura em que publicaste e ilustra bem o caso da habitação. Outros casos, como as criptomoedas e outros ativos financeiros, também merecem atenção. Estou a pensar escrever sobre isso em breve
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