A paciência e a persistência de Francisco Louçã no combate ao Rendimento Básico Incondicional (RBI) são admiráveis – Uma chuva de dinheiro cai na campanha eleitoral, por exemplo. Tem colocado uma questão simples, a que os defensores do que justamente apoda de fraude nunca se dão à maçada de responder, e ainda tem ajudado na resposta: “Como os proponentes não apresentam a conta, e até suspeito que nunca o farão, sugiro a quem lê que a faça”. Louçã tem-na feito, de facto.
No campo económico, mas igualmente com vastos impactos sociopolíticos, há outras questões simples e a que os defensores do RBI evitam responder. Por exemplo: e os potenciais efeitos inflacionários significativos desta maciça injeção de poder de compra, dado que, ao contrário da proposta do emprego garantido, não se garante correspondente capacidade do lado da oferta? O trabalho é realmente uma maçada política evitável para certa “esquerda” que fica apenas na esfera da circulação.
Alargando o espectro das objeções, sem medo de repetições, diria que há pelo menos mais meia dúzia de razões para fugir a sete pés de partidos que propõem tal despautério – Livre e PAN –, uma espécie de algodão não engana político.
Em primeiro lugar, se é verdade que o RBI tem origens ideológicas diversas, também é verdade que a sua versão ideológica e financeiramente mais consistente é proposta por autores neoliberais: um mecanismo para eliminar a provisão pública associada ao Estado social, bem como as políticas económicas orientadas para o pleno emprego. Não é aliás por acaso que capitalistas como Elon Musk, o famoso empresário da Tesla, defendem um RBI, enquanto perseguem os sindicatos nas sua empresas.
Em segundo lugar, os defensores do RBI tendem a dar, infelizmente, para um peditório equivocado sobre o fim do pleno emprego, associado à robotização, aventando a “inevitabilidade” desta proposta à boleia de uma análise incorrecta. Se fosse correcta, a Grécia, com quase um quinto da população activa desempregada, estaria na vanguarda do progresso tecnológico, enquanto que a Alemanha, com pouco mais de 5%, estaria na retaguarda. Se fosse correcta, os trinta gloriosos anos a seguir à 2ªGM, o período de maior progresso tecnológico da história, medido pela evolução da produtividade, não seriam, como foram, um período de pleno emprego nas principais economias. Sim, hoje em dia, no regime neoliberal, o progresso tecnológico está mais nos discursos do que nas estatísticas, servindo para ocultar as tendências pesadas de estagnação. Hoje, o essencial da inovação tecnológica, que nunca pode ser desligada das relações sociais prevalecentes, serve para reduzir salários e aumentar o controlo sobre os trabalhadores, tendo um notório enviesamento de classe. Temos de mudar de regime, mas para isso não precisamos do RBI. Precisamos de falar, por exemplo, sobre desglobalização.
Em terceiro lugar, o argumento potencialmente mais interessante para o RBI, o da eventual redução da compulsão capitalista, melhorando a posição dos trabalhadores no contexto de uma correlação de forças desfavorável, torna verdadeiramente risível a esperança num eventual RBI como parte de um qualquer pilar social da UE, onde está o poder do BCE para eventualmente financiar tal coisa. Os defensores do RBI tendem a ser federalistas. A UE é uma instituição cuja lógica assenta desde o início no aumento da compulsão capitalista. Seria como pedir ao imperialismo que liberte os povos. A escala é adequada à implausibilidade geral da ideia num país sem soberania monetária.
Em quarto lugar, o RBI tem boas e testadas alternativas, mais de acordo com um enraizado sentimento de reciprocidade: pleno emprego, promovido por políticas económicas que o garantam, incluindo através da expansão dos serviços públicos, uma combinação associada aos Estados sociais nacionais. O pleno emprego liga o rendimento ao trabalho, gera estabilidade macroeconómica, inclusão e dignidade, cria comunidade, aumenta a confiança das classes trabalhadoras nas suas organizações sindicais, esteio de todas as transformações emancipadoras, incluindo as que estão relacionadas com o controlo do processo de trabalho e dos seus frutos. A esquerda que desista disto perde o seu sentido histórico.
Em quinto lugar, é o emprego e os seus direitos colectivos que estão na base da economia política e moral do Estado social, das suas instituições inclusivas, com a associada lógica desmercadorizadora na provisão, incluindo nas prestações sociais redutoras da compulsão para vender a força de trabalho à primeira procura que apareça, substituindo bem a principal função do RBI. Estas prestações estão e devem continuar a estar fundamentalmente vinculadas ao trabalho, enquanto salário indirecto. E há uma panóplia de bens e de serviços públicos, que respondem a necessidades sociais concretas, que não são substituíveis pelo nexo-dinheiro e que têm no movimento sindical o seu grande impulsionador. Tudo o que é importante é ligado pelo trabalho organizado politicamente.
Em sexto lugar, o RBI está associado a uma hipótese individualista, mais ou menos libertária, na sua versão mais consistente. Numa hipótese mais plausível, as pessoas, como seres em relação na sociedade, precisam de bem mais do que um rendimento baixo: precisam realmente de bens e de serviços públicos, de comunidades bem organizadas, de uma vida activa, estruturada pela contribuição produtiva. Precisam de trabalhar e de ter tempo livre. A economia política e moral das classes trabalhadoras passa também pela redução da jornada de trabalho, enquanto ganho colectivo merecido dos que sabem que geram tudo o que tem valor.
11 comentários:
Quanto à defesa política da ideia e previsão dos seus efeitos ficam para outro dia, para já diga-se que a intenção da substituição dos serviços já prestados pelo estado não existe na cabeça da maior parte dos defensores (ide ouvi-los e ver o que escrevem sem o filtro dos seus opositores ou o cherry picking dos que defendem o rbi com essa intenção). quanto à discussão técnica os proponentes têm apresentado contas em vários artigos. Pode-se dizer que o professor Louçã deturpa o conceito e assim produz umas contas incompletas e assustadoras (10 milhões a receberem 6000 euros anuais líquidos e caídos do céu). Sendo uma política distributiva não há razão para esse temor monetarista da inflação e é sempre curioso ouvir dizer-se à esquerda que não há espaço para maior redistribuição, porque o RBI será sempre uma política redistributiva e não muito diferente da aplicação e efeitos do RSI, pretendendo-se que seja apenas menos condicional.
É preciso não fazer qualquer ideia do que se está a dizer para caracterizar como monetarista o argumento feito no segundo parágrafo. É perfeitamente compatível com a abordagem keynesiana.
As contas de Louçã são as que existem e são as mais consistentes com o sentido da sigla RBI. Não se acanhe. Apresente outras, por favor.
Sim, todos gostamos de unicórnios, mas a verdade é que o RBI consistente é uma alternativa perigosa ao Estado social, servindo para o seu desmantelamento.
Quando a tal "política distributiva" sai da lógica das relações de trabalho (que são comuns e não individuais), que, por sua vez, foge das relações de produção... bem, é normal que a esquerda diga que aí não vai haver grande espaço para redistribuição.
Concordo com algo do que é escrito aqui, discordo de muito, mas há sobretudo um ponto que discordo fundamentalmente - a ideia d'"os potenciais efeitos inflacionários significativos desta maciça injeção de poder de compra".
É que à partida o RBI não injeta poder de compra nenhum - quer seja financiado por impostos, quer por cortes nos serviços públicos, o RBI limita-se a tirar dinheiro de um lado para pôr noutro, logo à partida não injeta poder de compra nenhum (a exceção seria o famoso "QE para o povo", mas mesmo esse é apresentado em alternativa ao "QE para os bancos", logo de novo não é mais dinheiro a entrar na economia, apenas a mudar de destinatário).
Pode-se dizer que o RBI distribui (na versão "esquerda" do RBI) mais igualitariamente o rendimento, e como quem ganha pouco tende a ter uma maior propensão ao consumo, isso origina maior consumo; mas isso aplica-se a todas as políticas redistributivas, e não especificamente ao RBI.
Há de facto artigos sobre o financiamento de um RBI, com contas rigorosas e que vão de encontro ao modo como o RBI é em geral concebido pelos seus proponentes (a maior parte, académicos). Aqui, por exemplo:
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/n232_a03.pdf
Em resposta ao anónimo das 14:49:
O nexo "injeção de dinheiro logo inflação" não fui eu quem o fez. Podemos discutir este nexo no contexto dos modelos monetaristas, neoclássicos, neo-keynesianos ou pós-keynesianos, se fizer alguma ideia do que estou a falar, mas noutro dia, porque eu aqui refutei a ideia de ser feita qualquer injeção de dinheiro. O impacto na estrutura da procura é uma discussão interessante, entre muitas outras, mas não haveria mais dinheiro para comprar as mesmas coisas (e se houvesse, keynesianismo é partir da ideia de que a procura gera a oferta, absorvendo a capacidade produtiva inutilizada que se verifica no desemprego e capital subutilizado, que não falta). Mas a política é distributiva e é por isso que a contabilidade do professor Louçã está incompleta. Todos teriam direito, mas alguém pagaria, como no caso do OE e consequente financiamento e provisão da saúde, educação, etc. Se, em TERMOS LÍQUIDOS se pretende dotar 1,5 milhões de 500 euros mensais (para os que nada recebem) e outros 3 milhões com uma média de 250 euros (harmonizados pelo rendimento até chegarmos ao ponto em que não se recebe nem paga), estamos a falar do equivalente a 3 milhões receberem 500 euros, valor 70% inferior aos 10 milhões x 500 euros mensais, estamos a falar de 8% do PIB e de um aumento da carga fiscal em 20 pontos percentuais, no domínio do matematicamente/financeiramente possível. "RBI consistente" significa o quê? Que ao implementá-lo teremos de cortar no restante? Discordo e fica demonstrado acima. Dizer que serve ao desmantelamento do estado social é um raciocínio errado que serve tanto a quem o quer desmantelar como a quem não quer aplicar o rbi.
"e de um aumento da carga fiscal em 20 pontos percentuais"
Se estou a perceber os seus cálculos, não.
É que o RBI que conta para a carga fiscal não é o RBI líquido (de quem vai receber mais RBI do que vai pagar de impostos); é mesmo o RBI total, já que tens que cobrar impostos para o pagar todo.
E, como já disse noutro sitio, receber 2000 euros e pagar 20% de impostos é diferente de receber 2000 euros, pagar 70% de impostos e depois receber mais 1000 euros de RBI, mesmo que no final se acabe com os mesmos 1600 euros, já que o efeito sobre os incentivos de uma taxa marginal de impostos de 70% são diferentes de os de uma de 20%
Olá João, o rbi é compatível com o pleno emprego, bem mais do que o rsi. Pelo menos defendo isso com a Catarina Neves neste artigo:https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/bis-2021-0002/pdf
Abraço,
Roberto
Caro Miguel Madeira, se a medida for aplicada e iniciada mensalmente até podem vir todos pedi-la, mas não é preciso ser tão simplista, se as pessoas demonstrarem o seu rendimento do mês anterior e não quiserem ser depois apanhadas em fraude o valor pode ser atribuído primeiramente aos que o vão receber e no fim do ano ser pago, há muitas formas de aplicação e implementação em concurso, a questão é que é possível. Os seus 70% são exagerados, se o irs é pago acima da média e só se pagaria rbi acima da média e o acréscimo são 20pp da carga, daria uma carga média de 40%, se fosse paga de forma progressiva estes 40% podiam ser pagos a partir dos 4000 euros mensais. É o "custo" da igualdade. Mas...Seria possível e longe de extravagante. Tudo isto para os pressupostos assumidos no comentário acima, foco no financiamento só por IRS e especialmente quanto ao valor da prestação e a harmonização da prestação.
Artur, confesso que não estou a perceber - a ideia não é todos receberem (nominalmente) o RBI, mesmo que depois muitos paguem mais de IRS do que recebem de RBI? Ou está a propor um sistema em que o RBI seja (mesmo nominalmente) só para quem tem rendimentos inferiores a tanto?
Adoro esta obsessão marxista com o factor trabalho que leva a um nível tal de cegueira que não conseguem admitir que metade dos "empregos" disponíveis não passam de bullshit jobs onde as pessoas são reféns de tarefas sem qualquer valor social. Se por hipótese alguém não quiser mesmo trabalhar deve passar fome porque a sua mera existência implica que trabalhe ou morra. Não, o RBI não pode nem deve substituir o Estado social e as suas valências mas isso irá suceder se a esquerda se continuar a demitir do debate com medo do bicho papão.
Quanto às contas é um falso argumento. Pois é necessário ter em consideração todo o dinheiro que retornaria ao Estado através de tributação e é preciso ter em conta a poupança que resultaria para o erário público decorrente da melhoria de vida das pessoas. Melhor saúde geral, menos doenças psicossomáticas, pessoas que descobririam até novas atividades e fontes de rendimento que fossem economicamente plausíveis e também fonte de sustento alternativo.enfim, humanidade para quem crê que os seres humanos não têm de ser, por inerência, factores de produção.
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