terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A automatização vai acabar com o trabalho?


O debate sobre o impacto da inovação tecnológica na destruição de postos de trabalho não é de agora. Na última década, surgiram alguns estudos que procuravam estimar a quantidade de empregos que seriam eliminados face ao avanço da automatização e à rápida evolução da tecnologia, tanto para uso pessoal como para aplicação em diferentes processos produtivos. Mas a pandemia parece ter dado nova força à ideia: no ano passado, o McKinsey Global Institute atualizou os seus cálculos e estimou que a automatização poderá acabar com 45 milhões de postos de trabalho nos EUA até 2030. O que isto significa é que, nos próximos 8 anos, um quarto da força de trabalho norte-americana perderia o emprego para robôs – um cenário muito pouco animador.

Há duas ideias que têm sido veiculadas por boa parte dos economistas mainstream acerca deste fenómeno. A primeira é a de que a automatização já está a ser responsável por uma elevada taxa de substituição de trabalhadores por robôs, que se vai acentuar devido à recessão que estamos a atravessar e que levará a um inevitável e significativo aumento do desemprego nas próximas décadas. A segunda é a de que o avanço da automatização tem sido responsável pelas crescentes desigualdades e pela redução da fração do rendimento nacional que é alocada ao fator trabalho – isto é, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores. Embora ambas as ideias sejam relativamente intuitivas e estejam na base de discursos alarmistas sobre o suposto “fim do emprego”, nenhuma sobrevive a uma análise mais sóbria da realidade.

Temos bons motivos para não embarcar na ideia de que os robôs vão acabar com o trabalho. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o investimento na adoção das novas tecnologias pelas empresas não tem sido tão expressivo como se supunha, como demonstram vários estudos empíricos realizados nos últimos anos (como os do Economic Policy Istituteaqui ou aqui – ou este do Roosevelt Institute), em parte pelo facto de que continua a ser mais barato empregar pessoas. Por outro lado, as tecnologias de inteligência artificial têm sido desenvolvidas para lidar com tarefas muito específicas, sendo incapazes de substituir o conhecimento humano indispensável em várias áreas.

Além disso, a história das sucessivas revoluções industriais diz-nos que o desenvolvimento de novas tecnologias não se limita a destruir alguns tipos de trabalhos, mas gera novas necessidades no processo produtivo e, com isso, novos empregos. No século XIX, embora o desenvolvimento da indústria tenha feito desaparecer os artesãos, implicou simultaneamente a criação de novos empregos qualificados dentro e fora das fábricas; da mesma forma, no final do século passado, a proliferação das caixas de multibanco não reduziu (e até aumentou) o número de funcionários bancários, devido à abertura de mais balcões de atendimento possibilitada pela redução de custos. O próprio relatório da Mckinsey reconhece que a maioria das pessoas cujos postos de trabalho serão extintos continuará a trabalhar na mesma área de atividade e só uma percentagem bastante menor (cerca de 10%) terá de procurar emprego noutras áreas, ao passo que a The Economist reconhece esta semana que “os economistas estão a rever as suas previsões sobre os robôs e o emprego”, face à falta de dados que as comprovem, e que a “era das narrativas sombrias” sobre o desemprego permanente parece ter acabado.

Também temos bons motivos para afastar a ideia de que é a robotização que tem alimentado o crescimento das desigualdades. Essa tese resulta da teoria neoclássica, que assume que a distribuição do rendimento produzido numa economia é feita de acordo com o contributo relativo de cada fator de produção (trabalho e capital) para esse processo. Assim, os salários e os lucros seriam resultantes da “produtividade marginal” de trabalho e capital, respetivamente. Se, nas últimas décadas, a fração do rendimento para o trabalho tem diminuído um pouco por todo o mundo, só se poderia concluir que os trabalhadores estão a contribuir menos (marginalmente) do que o capital. O problema desta história é que depende de hipóteses teóricas extremamente irrealistas, como a existência de mercados perfeitamente competitivos. Na verdade, a tendência de estagnação dos salários e aumento das desigualdades, a que Portugal não tem escapado, está relacionada com o modelo de globalização das últimas décadas, marcado pela abertura ao comércio internacional, que permite deslocalizar as atividades e incentiva os países a competirem através de baixos custos do trabalho (leia-se, baixos salários), e pela desregulação laboral, que desprotegeu os trabalhadores, enfraqueceu os sindicatos e comprimiu os salários, como foi identificado por três investigadores do FMI.

No entanto, a automatização vai implicar mudanças de fundo nas estruturas produtivas e nas relações sociais. No ano passado, o Gabinete de Estatísticas do Trabalho dos EUA publicou um estudo sobre as perspetivas de evolução no emprego no pós-pandemia, prevendo que a destruição de emprego será bastante mais expressiva entre os trabalhos que requerem menos qualificações. Embora estas projeções devam ser analisadas com bastante prudência, já que estão sujeitas a enorme incerteza, é razoável assumir que a próxima década traga maior procura por serviços relacionados com cuidados de saúde e inovação tecnológica, que tenderão a crescer mais, ao passo que as profissões mais mal pagas, na restauração ou na hotelaria, poderão reduzir-se.

Isso significa que a próxima década colocará novos desafios à repartição mais justa da riqueza. Uma das formas de a promover é através da reorganização do tempo de trabalho – a robotização pode contribuir para que trabalhemos menos horas semanais e diárias, como Keynes sugeriu há quase 100 anos. Outra passa pelo investimento público na educação e na formação ao longo da vida, de forma a reforçar as qualificações das pessoas e a prepará-las para as mudanças no mundo do trabalho. Ambas partem do pressuposto de que o Estado deve promover o emprego e apostar num modelo que permita conciliá-lo com a vida pessoal, em vez de se acomodar à suposta inevitabilidade do desemprego e abdicar dessa disputa. Temos muito trabalho pela frente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem!

Anónimo disse...

Não sei se vai acabar mas tem que permitir que as pessoas trabalhem menos. É igualmente ridículo que o PS, o suposto partido "socialista" se oponha a algo tão básico como as 35 horas semanais para todos os trabalhadores, uma medida que reduziria o desemprego no imediato. E ainda assim já iríamos umas décadas atrasados pois, com toda a evolução tecnológica que houve no último século, a maioria dos trabalhadores não precisaria de trabalhar mais de 20 horas por semana. Mas a ganância capitalista, a mesma que é responsável pela destruição do planeta, é contra o direito básico dos trabalhadores ao lazer e ao descanso.