terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Os cinco erros da direita sobre o crescimento económico em Portugal

Os partidos de direita apresentam-se a estas eleições com um discurso simples sobre a economia portuguesa. Afirmam que Portugal tem tido um crescimento medíocre comparado com os países do Leste europeu, que eram pobres e hoje são mais ricos que nós. E que essa diferença se deve às políticas adoptadas: liberais naqueles países, “socialistas” aqui. Logo, segundo a direita, é preciso liberalizar, privatizar e desregulamentar para Portugal crescer.

Este discurso é simples e eficaz. É também errado, por cinco razões.

1. O desempenho das economias de Leste é menos diferente do português do que parece

As economias não crescem sempre ao mesmo ritmo – há momentos em que aceleram, outros em que abrandam. Nas economias menos avançadas, as acelerações devem-se quase sempre a factores externos e nem sempre são virtuosas.

Na UE, todos os novos Estados membros passaram por um período de rápido crescimento económico nos anos que se seguiram à integração. Tal deve-se a três motivos principais: a abundância de fundos de coesão, a liberalização dos movimentos financeiros internacionais e os fluxos de investimento estrangeiro (que exploram as novas oportunidades de investimento e de produção a baixos custos).

Isto aconteceu também a Portugal na década e meia que se seguiu à entrada na então CEE, em 1986. A este nível, Portugal não compara nada mal com os oito países da Europa de Leste que aderiram à UE em 2004: destes, só a Polónia teve uma taxa anual de crescimento superior à portuguesa nos 15 anos posteriores à integração europeia (ver gráfico).


O problema vem depois – e não é por acaso. À medida que os rendimentos médios aumentam, o montante de fundos europeus diminui e as vantagens competitivas associadas aos baixos custos também. Os fluxos de financiamento externo invertem-se, então: se no início o capital entra para emprestar a juros baixos e investir em diferentes actividades, na fase seguinte o capital sai sob a forma de lucros, juros e amortização dos empréstimos entretanto contraídos. Quem julga que os elevados ritmos de crescimento dos países de Leste se vão manter ad eaternum enquanto a economia portuguesa estagna não presta muita atenção à história do crescimento económico.

2. Os países de Leste tinham condições para crescer que nada têm que ver com “medidas liberais”

A direita defende que o rápido crescimento dos países do Leste europeu se deve a políticas liberais, em particular impostos baixos e um Estado de dimensões reduzidas. Qualquer explicação para o crescimento económico que se baseia num único factor é de desconfiar – se assim fosse, os economistas não andavam há 250 anos a tentar compreender o fenómeno. Neste caso concreto, a explicação apresentada esquece alguns dos elementos essenciais.

A ideia de que os países de Leste tinham menos condições do que Portugal para crescer é simplesmente errada. Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias.

Outro facto bem conhecido dos processos de crescimento diz respeito à importância do perfil de especialização dos países. E, ao contrário do que muitos sugerem, as economias que mais têm crescido no Leste europeu não eram pouco desenvolvidas: uma década antes de aderirem à UE (ou seja, quando ainda estavam na transição para o capitalismo), países como a Estónia, a Eslovénia, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia tinham já um perfil de exportação mais sofisticado do que o de Portugal (ver gráfico construído a partir daqui).

Índice de complexidade económica das exportações de cada país


Às vantagens na educação e ao perfil de especialização, alguns países do Leste somam a proximidade histórica e geográfica a economias muito mais avançadas, de cuja força tendem a beneficiar. Os casos mais óbvios são a República Checa (que se tornou uma extensão da indústria transformadora alemã) e a Estónia (que se tornou um prolongamento da economia finlandesa).

Ignorar todos estes factores – o impacto da integração europeia, os níveis de educação e de sofisticação tecnológica de partida, ou a proximidade a economias mais avançadas – para insistir na tese da abordagem liberal como factor de sucesso económico, só pode ser resultado de ignorância ou má fé.

3. A estagnação económica em Portugal nada tem a ver com a “falta de liberalismo”

Falar em falta de liberalismo em Portugal como estando na origem da estagnação económica é um contrassenso. A “agenda liberal” tem estado bem presente nas políticas seguidas por sucessivos governos ao longo das últimas décadas. Nos últimos 30 anos:
  • privatizou-se quase tudo o que havia para privatizar em Portugal: empresas industriais, bancos, seguradoras, empresas de transportes e de energia, até o tratamento de resíduos;
  • liberalizou-se o sistema financeiro e a circulação de capitais;
  • desregulamentaram-se por três vezes as leis do trabalho, facilitando os despedimentos, os horários flexíveis e os contratos atípicos;
  • abriram-se as portas aos privados na saúde e na educação;
  • abdicou-se de uma moeda própria, deixando o financiamento do Estado nas mãos de especuladores privados internacionais.
Neste contexto, dizer que o mau desempenho da economia portuguesa nas últimas décadas se deve a falta de "liberdade económica" e ao excesso de intervenção do Estado, faz mesmo muito pouco sentido.

Para além disso, ignora aspectos cruciais para perceber a estagnação da economia portuguesa, como sejam:
  • o processo de endividamento privado, decorrente da liberalização financeira e dos erros de supervisão bancária;
  • os choques competitivos associados à entrada da China na OMC e o ao alargamento a Leste;
  • a forte apreciação do euro face ao dólar até 2008; ou
  • a forma desastrosa como as lideranças europeias lidaram com a crise da zona euro entre 2010 e 2012. 
Só por indigência ou desonestidade intelectual se podem ignorar todos estes factores quando se explica a evolução da economia portuguesa nas últimas décadas.

4. Baixar os impostos e esperar que chova não nos vai salvar

Dificilmente um mau diagnóstico dá origem a uma boa prescrição. Quem tem uma má explicação para a estagnação da economia portuguesa não terá boas soluções para a resolver.

Os partidos da direita acreditam tanto que o fraco crescimento relativo de Portugal se deve à “falta de liberdade económica” que a sua receita para o crescimento é pouco mais o que baixar os impostos, reduzir os custos de contexto e esperar que chova.

O pressuposto é de que o crescimento depende do investimento privado e que o investimento privado depende dos custos de fazer negócios – custos fiscais, laborais, administrativos e outros.

É óbvio que nenhuma economia atrai investimento se as condições de fazer negócios forem miseráveis. Mas essa não é a situação de Portugal. Em nenhum dos domínios referidos Portugal apresenta indicadores muito distintos da média europeia. O conhecimento existente não nos permite afirmar que a redução dos impostos traria mais crescimento. Quanto à redução dos salários ainda menos: o seu impacto na procura interna seria imediato, enquanto o seu efeito na competitividade da maioria dos sectores exportadores seria residual.

É possível e necessário melhorar muitos aspectos que afectam a vida das empresas: os custos da energia, alguma burocracia excessiva, a lentidão da justiça, entre outros. Mas estes problemas estão identificados há muito tempo e têm vindo a melhorar. Exija-se que melhorem ainda mais, claro, mas não se espere que venha daqui um salto qualitativo da economia portuguesa.

Os principais entraves ao crescimento económico em Portugal são, em primeiro lugar, o perfil de especialização produtiva (baseado em actividades de baixo valor acrescentado e que enfrentam fortes pressões da concorrência externa) e, em segundo lugar, o elevado endividamento externo (que leva a que uma parte importante dos rendimentos gerados todos os anos seja canalizado para o exterior).

Em quaisquer circunstâncias, seria sempre difícil ultrapassar estes obstáculos. No contexto português actual, estas dificuldades são acrescidas pelo facto de o país não dispor de instrumentos de política económica que outros usaram no passado – como a política monetária e cambial ou a política de comércio externo – estando o uso de outros instrumentos muito limitado pelas regras da UE (como a política orçamental, as empresas públicas ou as compras públicas).

Mais uma vez, só por indigência ou desonestidade intelectual se pode afirmar que todas estas dificuldades se resolvem aumentando a “liberdade económica”.

5. Se a história nos ensina alguma coisa é que é preciso mais – e não menos – intervenção pública

A direita defende a redução da presença do Estado na economia, vendo-a como um problema e não como parte da solução. Também este discurso é simplista. Na verdade, o Estado está sempre presente – como produtor, regulador, comprador ou prestador de serviços – e é sempre indispensável.

O que distingue a direita liberal é a noção de que o Estado deve manter uma distância higiénica das empresas privadas, limitando-se a regulá-las de forma a promover a concorrência (ou simulá-la, quando ela não pode existir). Mas a história do desenvolvimento económico mostra-nos que a mudança estrutural e o reforço das capacidades produtivas dos países exigiram sempre um Estado muito mais interventivo, contribuindo activamente para a acumulação de conhecimentos e competências, e apoiando de forma estratégica sectores que se revelavam em cada contexto mais promissores. Isto aconteceu em países com regimes políticos muito distintos, em circunstâncias históricas diversas. É esta a história da Inglaterra da dinastia Tudor, dos EUA desde a independência até hoje, da Alemanha, da Coreia do Sul, do Taiwan, da China e de tantos outros.

O problema de Portugal hoje não é Estado a mais nem Estado a menos. O problema é ninguém parecer saber muito bem o que fazer com o Estado e como – e aqui o problema não é só da direita. Mas isso fica para outra ocasião.

9 comentários:

Anónimo disse...

Caro Ricardo, que indicadores atenta para afirmar que a Estónia se tornou um prolongamento da economia finlandesa?

José Cruz disse...


Para além os entraves identificados com o rigor de toda a restante análise desenvolvida,acrescentaria o constrangimento que representa a excessiva dependência do modelo de desenvolvimento excessivamente concentrado no sector terciário, com predomínio do comércio e do turismo,que se tornaram nucleares e determinantes para o desempenho econômico do país. Mesmo ao nível do sector da construção cujo desenvolvimento,em rigor,foi sustentado pela excelência dos resultados e conhecimentos herdados de mais de oitenta anos de sucesso nas Obras Públicas,a influência do turismo e do comércio tem sido determinante desde há trinta anos,pelo menos.É incontornável que a economia do país foi sempre dependente de ciclos,mutas vezes escolhidos por por arrogância e orgulho,como foi o ciclo do puro e das riquezas do Brasi,ou por teimosa e redutora miopia,como foi o ciclo colonial mas, sempre à revelia da racionalidade económica e em favor de castas e élites para quem foi indiferente qualquer harmonia no deenvolvimento e progreso do país. Os liberais de todos os tempos e origens partilham desta sobranceira indiferença como os demais em nome da apropriação do lucro,para além e sobretudo,em favor do permanente aumento da desigualdade.

Anónimo disse...

Agora somos comparados com os de leste daqui a uns tempos a comparação deverá ser com alguns países africanos ou da américa do sul e por aí a diante, esta direita é absolutamente miserável, são uns autênticos parasitas.

Jose disse...

«instrumentos de política económica [que outros usaram no passado] – como a política monetária e cambial ou a política de comércio externo» foram usados por cá em abundância. O Porter veio cá e com os fundos europeus foi-se «contribuindo activamente para a acumulação de conhecimentos e competências, e apoiando de forma estratégica sectores que se revelavam em cada contexto mais promissores», então no possível « perfil de especialização produtiva (baseado em actividades de baixo valor acrescentado» que tudo que era maior em capital ou mais sofisticado foi destruído ou debilitado no PREC.
Depois sempre veio «mais – e não menos – intervenção pública» com o consequente «elevado endividamento externo (que leva a que uma parte importante dos rendimentos gerados todos os anos seja canalizado para o exterior)» a que a política de rendimentos veio trazer o milagre do crescimento que dilui o problema da dívida em percentagem e agrava tudo o mais.
«o que fazer com o Estado e como» passou a estar muito claro em quase todo o tempo: o Estado ocupa-se a sangrar a economia para manter rendimentos que mantenham os governantes no poder; condiciona o funcionamento dos seus serviços na medida do que lhe seja imposto em termos de défice; faz nada e sabe fazer nada que se pareça com um projecto de política económica para o país.

Jaime Santos disse...

Parabéns pelo texto. Além de claro, o RPM tem a coragem de admitir que a Esquerda também não tem um projeto sobre o que fazer com o Estado. Faz lembrar o médico que sabe diagnosticar exatamente uma doença, mas depois não sabe o que prescrever ao doente para o curar...

Mais uma vez, o Ricardo é uma das poucas pessoas capazes de pensar fora da caixa, como quando criticou o projeto de reindustrialização explicando as razões para a desindustrialização ou quando criticou os custos de oportunidade de um investimento excessivo em R&D...

Anónimo disse...

https://helsinki.mfa.ee/en/estonia-and-finland/economic-relations/

Anónimo disse...

Concordando com a análise e dando os parabéns ao autor, que muito estimo, fico um pouco perplexo relativamente a umas linhas, que dizem o seguinte: "Se há coisa que se sabe sobre o crescimento económico é que este tende a beneficiar muito das qualificações das pessoas – e os países de Leste têm desde há muitas décadas os níveis mais elevados de educação entre as nações europeias." Não consigo encontrar dados que sustentem essa afirmação. Se podemos considerá-la verdadeira, em parte, no caso de alguns países do Leste, o caso da Roménia e da Bulgária são por outro lado bastante expressivos. Estarei errado?

Anónimo disse...

Os liberais tanto gostam de falar nos países da Europa de Leste mas esquecem-se que:
- A população desses países é altamente qualificada, enquanto em Portugal o mesmo não se sucede, em particular no patronato.
- O peso das empresas públicas no PIB desses países é muito mais elevado que em Portugal, onde só faltou mesmo privatizar a senhora que os pariu, citando Saramago. Se o Estado não tem outros meios de obter rendimentos, a única solução para por recorrer a impostos altos. Se os liberais querem impostos baixos, a única solução passa por nacionalizar setores estratégicos da economia portuguesa, como a EDP, que foi vendida ao Estado chinês.
- Países como a República Checa e a Estónia estão próximos de países ricos como a Alemanha e a Finlândia, respetivamente. Portugal só tem mesmo a Espanha, um país com os mesmos problemas e com o mesmo tipo de direita mete-nojo.
E por isso é urgente os partidos de esquerda deixarem de ser politicamente corretos e falarem em NACIONALIZAÇÕES. Quando os liberais sugerirem baixar impostos ou financiar hospitais e colégios privados, a esquerda deve responder com a defesa da nacionalização de setores estratégicos, o que inclui hospitais e colégios privados. A esquerda deve dizer "nós também somos a favor de baixar os impostos e que as pessoas possam ir ao hospital que quiserem, e isso só se consegue com nacionalizações".

Tiro ao Alvo disse...

"À medida que os rendimentos médios aumentam, o montante de fundos europeus diminui e as vantagens competitivas associadas aos baixos custos também".
Esqueceu-se que os fundos europeus, no início da adesão, não eram altos e que subiram até ao tempo do governo do Santana Lopes, quando as nossas contas públicas já andavam mal.