terça-feira, 22 de julho de 2025
Lá se foi a urbanidade de Fernando Alexandre
Num governo marcado por diversas figuras de duvidosa competência técnica e capacidade política, como aliás se viria a confirmar, Fernando Alexandre foi de início destacado como exemplo das poucas boas escolhas de Luís Montenegro. O facto de vir do mundo universitário e da investigação, a par do registo cordial e sereno, conferiam-lhe uma imagem de moderação, capacidade, pensamento próprio e urbanidade.
João Rodrigues já aqui dissecou devidamente, contudo, o indisfarcável entrincheiramento neoliberal de Fernando Alexandre. Entre outros aspetos assinalados, não é à toa, de facto, que se participa no insalubre e dissimulado menos liberdade, desfazendo a ideia de estarmos perante um social-democrata ou até, como se chegou a dizer no momento da sua nomeação, perante um defensor da escola pública.
Já enquanto ministro, a primeira brecha na imagem de moderação, seriedade e competência de Fernando Alexandre surge no modo como geriu a questão dos alunos sem aulas. Depois de ter alinhado num número de propaganda rasca, prometendo resolver o problema num ápice, o ministro não hesitou em manipular dados e inventar uma nebulosa de números para disfarçar o fracasso e, no final, preferir não saber sequer responder ao básico: quantos alunos iniciaram e chegaram ao final do ano letivo sem aulas a pelo menos uma disciplina?
Esvaziada a imagem de moderação na economia, e de rigor científico e seriedade académica, Fernando Alexandre sucumbe agora em matéria de urbanidade e cidadania, ao remover irresponsavelmente os conteúdos sobre saúde reprodutiva e sexualidade dos currícula, numa cedência sem escrúpulos à agenda medieval da direita conservadora e da extrema-direita. Depois de alinhar com a IL, Fernando Alexandre revela agora a sua sintonia com o Chega.
Tudo brutalmente previsível
É sabido que Sérgio Sousa Pinto nunca trabalhou na vida, incluindo trabalho político sério, e não é agora que vai começar. Passos Coelho trabalhou afincadamente para a troika, sendo que antes andou por esquemas negocistas com Miguel Relvas e fundos europeus.
Enfim, esta dupla vai “coordenar” um estudo para patrões do Porto sobre reforma do Estado e do sistema político, o que teve logo eco no Eco Patronal.
Obviamente, o trabalho propriamente dito será feito por um bando de economistas neoliberais, que tratarão de propor a enésima forma de Estado-garantia, expressão usada por Passos Coelho quando era Primeiro-Ministro, a enésima parceria público-privada para garantir politicamente lucros privados e prejuízos públicos.
Tudo isto será acompanhado pela proposta de redução da representatividade do sistema político. Já se sabe: neoliberalização é igual a desdemocratização.
Pinto e Coelho farão cara séria, enquanto ganham umas massas: há que fazer sacrifícios, façam força que nós gememos, etc. Tudo brutalmente previsível, incluindo o fim do P sem S.
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Uma turma de crianças mortas todos os dias
«Nos últimos 21 meses de guerra, mais de 17 mil crianças foram mortas e 33 mil ficaram feridas em Gaza. Uma média de 28 crianças foram mortas por dia, o equivalente a uma sala de aula inteira. Pensem nisto por um momento... uma sala de aula inteira de crianças mortas todos os dias durante quase dois anos. Estas crianças não são combatentes - estão a ser mortas e mutiladas enquanto fazem fila para receber alimentos e medicamentos que lhes salvam a vida».
Catherine Russell, Diretora Executiva da UNICEF
Custa muito a perceber, e mais ainda a aceitar, que meses a fio a União Europeia permaneça muda e queda - na sua insuportável complacência e duplicidade de critérios - perante o horror e a carnificina do genocídio, que escalam para níveis de barbárie cada vez mais intoleráveis. Para que se tenha uma ideia, as cerca de 17 mil crianças mortas em Gaza desde 7 de outubro de 2023 equivalem ao total de crianças a frequentar os jardins de infância em Lisboa.
Quantos pacotes de sanções não teriam sido já aprovados, fosse outro o país, que não Israel? Com as raras exceções, não percebem os líderes europeus - a começar pelos mais altos responsáveis das instituições europeias - que este fechar de olhos, cruel e irresponsável, ao atropelo dos mais elementares princípios do direito internacional e do direito humanitário, abre um precedente da maior gravidade, que consolida o retrocesso civilizacional em curso? Como podem ter o despudor de, nos discursos, continuar a invocar os alegados «valores europeus»?
Um fundamentalista de mercado
‘Governo eliminou sexualidade das aprendizagens essenciais” da disciplina de Cidadania’, informa o Público. Em reação a isto, Seixas da Costa declarou que “esperava melhor de alguém como Fernando Alexandre”.
Quem nos lê sabe que só se pode esperar o pior deste fundamentalista de mercado, bastando atentar no seu currículo político e não só desde o tempo de Passos Coelho: da administração interna – menos Estado social, mais Estado penal – ao mais liberdade para explorar, passando por variadas sinecuras bem pagas, incluindo a comissão do novo aeroporto – anti-Alexandre.
Do ponto de vista económico, tem proferido um chorrilho de asneiras, de erros, sem fim, do salário mínimo às pensões, passando pela inflação. O anti-iluminismo tem agora poder: mais obscurantismo neoliberal, por via do reforço da chamada literacia financeira, menos educação sexual. Haja coerência e convergência com o fascismo. Já foi assim nos anos 1920.
A esquerda, a direita e a política da imigração
Por sua vez, à direita há quem se oponha ao controlo apertado das fronteiras. A direita liberal vê na imigração uma extensão natural da liberdade de circulação. Os migrantes, nesta lógica, são agentes económicos racionais, que procuram oportunidades e respondem a incentivos. O papel do Estado, como é habitual por essas bandas, deve ser mínimo: permitir a mobilidade e não interferir com o funcionamento dos mercados. Esta posição é coerente com uma visão do mundo em que o sucesso se mede pela eficiência alocativa e a diversidade é apenas o resultado natural de uma alocação óptima do factor trabalho.
Para a extrema-direita, a imigração é sobretudo uma ameaça à segurança e ao modo de vida ― como se em Portugal todos vivessem, e sempre tivessem vivido, do mesmo modo. Este discurso recorre sistematicamente à desinformação e à exploração do medo, fomentando o ódio. Mas, na verdade, a extrema-direita não se opõe, de forma geral, à vinda de imigrantes. O objectivo é antes mantê-los numa situação de direitos reduzidos: autorizações de permanência em território nacional limitadas ao trabalho em empresas específicas, por períodos definidos por essas mesmas empresas; impossibilidade de um imigrante procurar outras oportunidades de emprego no país, mesmo que elas existam; limitação dos apoios sociais e dos direitos laborais; e fortes restrições ao reagrupamento familiar. Dentro destas condições, a extrema-direita ― e, por contágio, uma parte crescente do centro-direita ― não se preocupa assim tanto com o volume de imigrantes no país. O importante é que estejam limitados nos seus direitos e na sua autonomia, podendo ser expulsos assim que deixarem de ser úteis para os empregadores que deles necessitaram.
Esta lógica é oposta à construção de uma sociedade coesa. Em vez de famílias integradas, com filhos nas escolas e ligações duradouras ao país de acolhimento, promove-se a permanência no país de homens jovens isolados, desenraizados e vulneráveis. Em vez de pessoas que adoptam Portugal como seu, cria-se uma população de cidadãos de segunda, sujeitos à exclusão, ao ressentimento e ao medo.
O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.
domingo, 20 de julho de 2025
Sei que ajudei
Há um quarto de século que não participava numa jornada de trabalho da Festa do Avante, uma construção política ímpar em Portugal, feita com trabalho militante, algo que os liberais de tantos partidos nunca compreenderão.
Apesar de não ser militante, e em linha com alguns apoiantes, fi-lo ontem e com o meu filho.
A elisão da separação entre trabalho manual e intelectual e o espírito comunitário de entreajuda e fraternidade mantêm-se. Ele ficou genuinamente satisfeito com o resultado final e com o seu afincado contributo para que um terreno relativamente grande tivesse ficado limpo de palha: “quando vier cá, sei que ajudei a fazer isto”.
A pedagogia sempre política deve passar pelo cultivo desta consciência social, contra o individualismo possessivo do neoliberalismo: só somos verdadeiramente livres quando trabalhamos para propósitos comuns, quando somos resgatados pela primeira pessoa do plural.
sábado, 19 de julho de 2025
Haja memória
Através de Raquel Ribeiro, fiquei a saber que o Governo da direita assinalou o dia internacional Nelson Mandela com o oportunismo dos que cultivam a desmemória.
A direita portuguesa, ao tempo de Cavaco Silva, votou na ONU ao lado dos EUA de Reagan e do Reino Unido de Thatcher contra uma resolução que exigia a libertação imediata de Mandela. Os EUA só deixaram de considerar Mandela um terrorista em 2008.
É aliás por estas e por muitas outras que nunca se deve apodar os movimentos de resistência anti-colonial de terroristas, mesmo quando não se concorda com os seus métodos, uma boa prática política que está em linha com o que faz a esmagadora maioria do mundo. A esquerda eurocêntrica dominante, tíbia em relação ao colonialismo sionista, por exemplo, não segue esta e outras boas práticas.
Já agora, sabem qual foi um dos primeiros países que Mandela visitou quando saiu da prisão? Foi Cuba. Ele sabia que o internacionalismo cubano nunca lhe tinha faltado quando contava. Haja memória.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Da Galiza, fraternalmente
Os fascistas do Vox nunca conseguiram penetrar na Galiza. Através de Maurício Castro, fiquei a saber que os próprios reconhecem que a “Galiza não é fácil por causa do nacionalismo”. Há um Bloco Nacionalista Galego.
A conclusão, em que também temos insistido desde há anos a esta parte, impõe-se: “A consciência nacional e de classe, melhor antídoto contra o fascismo”, afirma Castro neste contexto.
No livro que será lançado na Festa do Avante! reafirmo esta hipótese política. Infelizmente, no campo intelectual dito progressista, esta posição é absolutamente minoritária em Portugal, ao contrário do que acontece na Galiza. Valoriza-se mais o que não se tem. Nós também não temos na prática muito do que ainda hoje julgamos ter.
Enfim, por cá é mais europeísmo, com toda a tralha cada vez mais inaceitável: tibieza perante o genocídio, aceitação “pragmática” da corrida armamentista, novo pretexto para escavacar ainda mais o Estado social, adaptação à viragem para a direita, sobredeterminada pela integração neoliberal indissociável da UE e do seu euro, com o intuito de manter posições mediáticas, unidade performativa sem substância nacional, de classe, programática, etc.
Há muita distinção e clarificação a fazer para um programa democrático e logo anti-imperialista, de recorte keynesiano e desenvolvimentista na economia, com mínimos de decência social.
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Editar, alertar
Se mais livros não houvesse, mas há, só estas duas obras, primorosamente editadas, da tradução à paginação, passando pelo grafismo e pela qualidade do papel, fariam com que estivesse imensamente agradecido a Vasco Santos.
Ando a pensar num cruzamento entre estes dois relativamente breves, mas tão fecundos, ensaios. Deixarei registo escrito dele.
Por agora, dizer apenas que o realismo capitalista no novo milénio, o registo cultural deprimente de um mundo despojado de alternativas sistémicas, se cruza com a denúncia fulgurante do colonialismo genocida e que este último poderá, qual novo bumerangue, regressar à Europa por via do fascismo, agora promovido pelo neoliberalismo, em linha com a hipótese histórica de Césaire.
Sim, somos todos Palestinianos.
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Sim, uma crise ainda por enfrentar atira pessoas para barracas
1. Valha-nos Helena Roseta (aqui e aqui), para lembrar o óbvio e dizer o que é preciso: «o Artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação (...) diz muito claramente que não pode ser feito o despejo administrativo sem garantia prévia de solução alternativa». A solução para situações precárias não é, de facto, «colocar pessoas na rua, com a hipocrisia de dizerem que o fazem, porque as situações são indignas. (...) Irem para a rua ainda é mais indigno», acrescenta.
2. Há um dado relevante nas demolições ordenadas pelo município «socialista» de Loures. Talvez pela primeira vez, uma autarquia escusa-se, de forma deliberada e ostensiva, a proceder ao acompanhamento prévio das famílias e a assegurar alternativas de alojamento antes de demolir. As declarações da vereadora «socialista» são lapidares a este respeito e só depois de arrasar as construções e destruir bens das pessoas, forçadas entretanto a pernoitar na rua e na igreja, é que a autarquia começa a procurar alternativas para famílias que ficaram sem casa. Mais selvático é difícil.
3. Em junho passado, o Expresso identificou 27 bairros de barracas, localizados em metade dos concelhos da Grande Lisboa, onde vivem cerca de 3 mil famílias. Curiosamente, não há notícia de procedimentos semelhantes aos que estão em curso nos municípios «socialistas» de Loures e da Amadora. Com as autárquicas no horizonte, a aproximação destes dois municípios ao Chega, por palavras e demolições, é indisfarçável. Circula por aí um vídeo do deputado «socialista» Ricardo Lima, presidente da concelhia de Loures, que é simplesmente abjeto.
4. Em 2019 o Expresso tinha já procedido a um primeiro mapeamento de bairros de lata, contabilizando na altura um total de 13, onde viviam cerca de 1.800 famílias. A expansão desta forma precária de alojamento - a derradeira solução para pessoas que trabalham e deixam de conseguir pagar renda -, num contexto de aumento consecutivo dos preços da habitação, não surpreende. Apenas torna as demolições de Loures ainda mais bárbaras, desumanas e cobardes. Um fenómeno que persistirá, claro, até que se perceba - ontem já era tarde - que a atual crise de habitação não se resolve sem medidas robustas, e articuladas entre si, de regulação das dinâmicas especulativas do mercado.
Meia dúzia de notas sobre os extremos existentes – centro e direita
1. O ministro da guerra alemão “social-democrata” garante, em entrevista ao Financial Times, que os mercadores da morte “já não se podem queixar”, uma vez que o governo já desbloqueou centenas de milhares de milhões de euros. Felizmente, há cada vez mais contestação na Alemanha, incluindo no seio do que resta do moribundo SPD. Também há cada vez mais repressão.
2. Há toda uma tradição belicista “social-democrata” que mergulha nas páginas mais negras da história do movimento de reforma, o que apoiou o colonialismo alemão com Bernstein e outros, o que alinhou com o crime contra a humanidade que foi a Primeira Guerra Mundial (assim designado num dos primeiros decretos do governo soviético, o da paz), o que hoje apoia o genocídio na Palestina, só para dar três exemplos.
3. Em linha com a sua política de sempre, Macron, extremista do centro e antigo banqueiro da Rothschild, promete brutais cortes na despesa social e eliminação de feriados, tudo para aumentar brutalmente a despesa militar no contexto dos velhos e novos constrangimentos da UE e do seu ordoliberalismo armado. Haverá resistência popular, de frente, aposto, a única forma de evitar o caminho para o fascismo que Macron sempre abre, como insistimos desde a sua primeira eleição.
4. Por cá, Santana Lopes, qual lebre, afiança que a ferrovia será sacrificada no altar de uma corrida armamentista que tem cumplicidades objetivas para lá das direitas e que vão dos verdes com bombas, vulgo Livre, ao P sem S e em breve sem P: troca-se despesa socialmente útil por despesa inútil. Podemos sempre circular de F-35...
5. Fora da UE, no Reino Unido, Corbyn ainda não formalizou o novo partido e já aparece empatado com os chamados “trabalhistas” nas sondagens. Um exemplo para todos os social-democratas: vale a pena ter um percurso consistente, tão genuinamente social-democrata – sem aspas, sem traições, ainda que com erros, naturalmente –, quanto anti-imperialista.
6. De resto, só o iluminismo radical, entre a razão comunista, a social-democrata e a ecologista, entre Marx e Keynes, pode travar os extremismos realmente existentes. Verde-vermelho são as cores, incluindo da nossa bandeira. Como o social-democrata e anti-imperialista Lula mostra uma vez mais, agora no contexto do chamado tarifaço, só quem empunha a bandeira nacional, sem prescindir do internacionalismo, pode vencer.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Clareza neste momento
A Constituição é muita clara sobre competências do Presidente da República, bem como do Governo e da Assembleia da República, em matéria de guerra: “Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República.”
O negocista Luís Montenegro declarou ontem que estamos em guerra. Não me lembro de terem sido acionados os procedimentos que a Constituição prevê. Obviamente, não estamos em guerra, nunca saímos, isso sim, da cada vez mais intensa guerra de classes.
Montenegro pretendeu só meter medo aos de baixo para justificar os negócios estrangeiros mais sórdidos e corruptos que existem. Faz em novos moldes o que aprendeu com a troika: transferir recursos de baixo para cima e de dentro para fora.
Proferiu tal despautério numa conferência organizada pela sociedade indigente de comunicação, onde participou entre outros, o vice-presidente de “campanhas estratégicas” (o nome diz tudo) da norte-americana Lockheed Martin, uma das principais mercadoras da morte. Montenegro falou de retorno para o país. Os EUA são o país para estes vende-pátrias, claro, e, dentro dos EUA, a sua classe dominante.
É preciso ser-se muito corrupto moralmente para apresentar a economia da destruição como uma oportunidade de desenvolvimento, ainda para mais no contexto de alterações climáticas e de tantas necessidades sociais por satisfazer. O desenvolvimento é o processo coletivo da vida que aumenta as liberdades positivas, como defendeu Amartya Sen. A economia de guerra é o desenvolvimento do subdesenvolvimento, a erosão das potencialidades nacionais.
Entretanto, há sempre dinheiro para o que os dominantes querem fazer, nunca se esqueçam, a restrição nunca é financeira, mas sim de mobilização de recursos reais para propósitos de vida ou de morte. O conhecimento deste facto dá toda a confiança económica que é necessária para o combate socialista contra esta barbárie televisionada.
Por falar em combate necessário, lede o discurso que António Filipe fez na apresentação da sua candidatura presidencial. Tive o privilégio de assistir, com uma imensa alegria. Está lá tudo o que importa, com a clareza que importa neste momento.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
Assinar e ler o jornal, lanchar e tertuliar
Importa lembrar com rigor que as presentes vontades de criar uma nova identidade jusconstitucional para o país seguem na senda da tradição daqueles que cedo — logo na composição da Comissão Constitucional e na revisão de 1982 — se opuseram às opções estruturais de uma Lei Fundamental solidária, coletivista e pluralista. O rearranjo retrotópico a que temos assistido resgata tal pretensão revogatória dos mecanismos de igualdade. Essa retropia, isto é, uma utopia em sentido regressivo, tem raízes históricas nos antimodernos do século XVIII que reagiram contra a mudança de estruturação de valores que fulminara a antiga hierarquia moral de uma suposta ordem natural perversa de privilégios.
Excerto do excelente artigo do jurista Sérgio Maia Tavares Marques no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de julho. Pode dar o mote para o debate. Lembro também o que Vicente Ferreira aqui escreveu: O que muda na economia com a revisão da Constituição? Lembrete: assinar e ler o jornal, lanchar e tertuliar.
Pulsões
A Lockheed Martin é uma das principais empresas de morte, parte do complexo militar-industrial norte-americano ou não tivesse 73% das suas receitas garantidas pelo governo federal dos EUA. A PLMJ é uma empresa de advocacia fundada pelo fascista José Miguel Júdice, parte do ecossistema de facilitadoras dos grandes negócios em Portugal.
O que têm em comum? São patrocinadoras da conferência “a nova defesa”. Organizada pela Sociedade Indigente de Comunicação (SIC), esta conferência garante que “2% de gastos em defesa não chegam, 5% só a prazo”.
A guerra é o grande negócio e o Grupo Impresa precisa de grandes negócios garantidos pelo Estado para esconjurar a falência. O negocista Montenegro falará, claro. A pulsão de morte dos negocistas será televisionada.
É tudo brutalmente claro nesta forma de economia política. O marxismo mais simples explica o essencial.
Por coincidência, ou talvez não, esta conferência foi marcada para o mesmo dia/hora da apresentação da candidatura de António Filipe, que terá lugar na Voz do Operário, em Lisboa. O contraste ético-político não podia ser maior: pulsão de guerra e de morte versus pulsão de paz e de vida.
domingo, 13 de julho de 2025
Pela Paz
«Nós, cidadãos do mundo, defendemos que Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, e os médicos que salvam vidas em Gaza, merecem, pelo seu trabalho, o Prémio Nobel da Paz».
Promovida pela Avaaz, está a decorrer uma petição internacional para que seja atribuído o Prémio Nobel da Paz a Francesca Albanese e aos Médicos de Gaza. Subscrever aqui.
Um imortal
O imortal Vasco Granja fez cem anos a dez de julho. Vive em todas as servidoras públicas da educação e da cultura por essas escolas, teatros, museus, cinematecas, bibliotecas ou televisão pública afora, detestadas pelo neoliberalismo e pelo seu plano B, o fascismo. Deixo uma nota que escrevi em julho do ano passado, singela homenagem a “uma das figuras mais marcantes da cultura em Portugal”.
Ficha da PIDE de Vasco Granja
Faz parte da minha memória mais querida, de tantas horas passadas em frente ao pequeno grande ecrã, em liberdade. Tenho uma dívida política e cultural imensa. Temos. Era um tempo em que os nossos pais, felizmente para eles e para nós, não tinham “escolha”, algo muito sobrestimado hoje em dia, mas em que havia mais diversidade.
Era um tempo em que o serviço público de televisão podia ser visto como um prolongamento da melhor ideia de escola pública: educar o gosto, formar, interpelar e, claro, divertir. E a escola era para todas as idades, naturalmente.
Este tempo não foi totalmente derrotado, ainda faz parte de uma parte tão liberalmente apoucada do nosso presente, bem sei. Mas se tivesse deixado sempre o meu filho sozinho à frente do ecrã, com tanta “escolha” em torno do mesmo no cabo, ele teria acesso a muito menos diversidade e sobretudo a deseducação.
A desigualdade aumentou, portanto.
Atentai no facto bruto, que só pode ser superado pela ação coletiva: quando as crianças dependem mais das “escolhas” dos pais retrocedemos civilizacionalmente. A direita egoísta não quer outra coisa.
Lembro-me das explosões “fáceis” de cor e de desenhos “difíceis”, com um ponto e um traço ao lado, que se mexiam ocasionalmente. Lembro-me do que vinha dos EUA, mas também da animação que vinha do socialismo onde fazia frio frio (União Soviética) e do socialismo onde fazia calor (Cuba).
Lembro-me da voz e do olhar de Vasco Granja, um amigo e camarada que nunca conheci pessoalmente. E não, não é no sentido partidário, caro a este militante do PCP desde os anos 1950, mas no sentido talvez mais profundo, partindo da definição dada por Jodi Dean: “alguém com quem contas”.
A luta pelo florescimento humano, pelo acesso aos bens culturais, nunca termina. É uma luta contra o mercado sem fim, contra as preferências dadas, como defendeu Russell Keat num livro raro, que podem encontrar em acesso livre por aí. Sim, é uma luta contra a “ciência” mais esquálida, a que ofusca que as “preferências” são sempre formadas ou deformadas pelos aparelhos sempre ideológicos; e que preferências não são valores.
É sabido que a luta por bens culturais, acessíveis a todos, fez parte da vida de Vasco Granja. E luta melhor não houve, há ou haverá.
sábado, 12 de julho de 2025
Ligações e distinções
O nacionalismo de esquerda é uma potente bateria política, alimentando ligações populares e o internacionalismo mais consequente. Enésimo exemplo em Bilbau deste padrão: em cada andar, em cada esquina, somos todos Palestina.
Na quarta-feira passada, o El Pais trazia um artigo de Lula – “no hay alternativa al multilateralismo”. Em linha com o que tem afirmado desde há meses, o Presidente brasileiro usou a palavra genocídio para se referir ao que Israel está a fazer na Palestina. As palavras são mesmo importantes. Ao mesmo tempo, denunciou os défices de ajuda ao desenvolvimento, no contexto das alterações climáticas, por parte de países ricos: “o recente aumento de gastos militares pela OTAN” faz com que esses défices só aumentem, garantiu.
A social-democracia com algum poder a sul, e que não prescinde do soberanismo de recorte anti-imperialista, é mais clara do que certos e determinados setores euro-progressistas sem poder por cá. Esta falta de clareza não ajuda as causas palestiniana e da paz. A direita e setores ditos socialistas, todos com ligações sionistas, agradecem.
No fio da crise
Com Luís Mendes, participei num episódio do podcast Sur le fil, da Agência Francesa de Imprensa (AFP), dedicado à questão de habitação em Portugal. Da minha parte, procurei sublinhar a natureza distintiva da atual crise face a crises anteriores, indissociável do surgimento de novas procuras nacionais e internacionais, responsáveis, a par do turismo, pela subida vertiginosa dos preços e pelo seu distanciamento em relação aos rendimentos das famílias.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Será preciso relembrar as verdadeiras causas da crise de habitação?
«Na última década, Lisboa sofreu uma transformação drástica, deixando de ser uma das capitais europeias mais acessíveis para se tornar na mais inacessível. (...) Para perceber como se chegou aqui, é preciso recuar ao período que se seguiu à crise financeira internacional de 2008. No âmbito do plano de choque para reanimar a economia, Portugal adotou uma estratégia de liberalização agressiva, com o objetivo de colocar Lisboa - e o país – no mapa global do investimento imobiliário e do turismo. O governo adotou a fórmula neoliberal clássica: flexibilizou as leis do arrendamento, facilitando os despejos e reduzindo a duração dos contratos; introduziu generosos incentivos fiscais para compradores estrangeiros, incluindo os agora controversos Vistos Gold e regime de Residente Não Habitual; os fundos de investimento foram ativamente incentivados a entrar no mercado imobiliário, beneficiando de isenções fiscais adicionais. Ao mesmo tempo que tanto o setor hoteleiro como o do arrendamento de curta-duração foram estimulados, a par de iniciativas para atrair turistas, nómadas digitais, estudantes internacionais e jovens profissionais de outros países. (...) Estas mudanças ocorreram num contexto global de baixas taxas de juro, incentivando as pessoas a recorrer cada vez mais à habitação para alocar as suas poupanças».
Agustín Cocola-Gant, How Lisbon put itself on the map for real estate and tourism - and become Europe's least affordable city
Bem pode o governo tentar ofuscar o agravamento da crise, de que é responsável, insistindo na tese simplista da falta de casas (contrariada, desde logo, pela quase inalteração do rácio entre alojamentos e famílias ao longo da última década), ou continuando - como assinalou recentemente Sandra Marques Pereira no Público - a imputar a sua persistência «aos governos que o antecederam» e ao «aumento das taxas de juro e da imigração».
Em artigo no The Guardian que merece ser lido na íntegra, Agustín Cocola-Gant assinala de forma certeira o contexto e as opções políticas concretas que, incentivando as novas procuras - potencialmente inesgotáveis -, e convertendo a habitação num ativo de investimento financeiro, deram início à subida vertiginosa dos preços, que se foram afastando cada vez mais dos rendimentos da generalidade das famílias.
Esqueçam pois o ilusório «choque de oferta» e o reforço da subsídiação, que apenas agravará ainda mais o problema. E não tentem atribuir à descida das taxas de juro, ou ao aumento recente da imigração, a responsabilidade por um processo que teve início há mais de uma década. Se querem mesmo encontrar um governo responsável pela crise habitacional no nosso país, recuem a 2011 e ao memorando da troika. Encontrarão a maioria de direita de Passos e Portas, com Luís Montenegro a presidir à bancada do PSD.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Zohranomics: Lisboa pode aprender com Nova Iorque?
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Com uma campanha assente em pequenas doações dos apoiantes, Zohran Mamdani conseguiu vencer o candidato centrista Andrew Cuomo, que, além do reconhecimento por já ter sido governador de Nova Iorque, contava também com o apoio dos segmentos mais influentes do partido Democrata e de bilionários, fundos de investimento e outros grupos económicos que contribuíram com doações generosas para a sua campanha.
Mamdani ganhou a nomeação com um conjunto de propostas centrado no combate à crise do custo de vida, desde o controlo de rendas à gratuitidade dos transportes públicos e das creches. O slogan da campanha era tornar a cidade acessível a quem nela vive e trabalha. É possível encontrar algumas semelhanças - e diferenças - entre o caso de Nova Iorque e o de Lisboa, pelo que, numa altura em que se aproximam as eleições autárquicas, vale a pena olhar com atenção para esta campanha e para as propostas apresentadas.
O custo de vida é mesmo um problema?
Nova Iorque é uma cidade particularmente desigual, mesmo para os padrões dos EUA, como descreve o historiador económico Adam Tooze num post recente. O seu índice de Gini - que mede a disparidade de rendimentos - é o mais elevado entre as principais cidades, tendo inclusivamente aumentado desde a pandemia. Enquanto os rendimentos dos 3% mais ricos dispararam, os salários dos restantes grupos dificilmente chegam para acompanhar o custo de vida da cidade mais cara dos EUA.
Esta é uma tendência que não é nova nos EUA, mas que é particularmente expressiva em Nova Iorque. Entre 1980 e 2022, a percentagem do rendimento total recebida pelo 1% mais ricos dos EUA - por outras palavras, a sua fatia do bolo - passou de 10% para 24%. Em Nova Iorque, o aumento foi bastante mais expressivo: passou de 12% para 36%.
Além da desigualdade, a pobreza também é um problema sério na cidade. Um em cada quatro residentes não têm capacidade para suportar a despesa em bens essenciais como a alimentação e a habitação. Metade das pessoas abaixo da linha de pobreza encontram-se em situação de pobreza extrema - isto é, o seu rendimento é inferior a metade do limiar de pobreza.
Fonte: Center for New York City Affairs - NYC’s 2025 Economic & Budget Outlook
O fosso entre a maioria da população e os mais ricos tem aumentado e a acessibilidade é um problema real para muitos dos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Desde a pandemia, a cidade tem registado uma inflação acima da média nacional e o custo das rendas ou das creches tem subido de forma particularmente acentuada. Neste contexto, não surpreende que um programa direcionado para combater o custo de vida tenha gerado entusiasmo entre os eleitores democratas e permitido a nomeação de um candidato improvável.
Como tornar uma cidade acessível?
As propostas de Zohran Mamdani dirigem-se às principais despesas da maioria das pessoas. Na habitação, a principal medida é o fim dos aumentos de rendas para o arrendamento a custos controlados, que abrange cerca de metade das casas na cidade, ao mesmo tempo que se inicia um plano de construção pública para aumentar a oferta, construindo 200.000 casas na próxima década. Em relação aos transportes, o programa propõe torná-los gratuitos e aumentar a frequência. Na alimentação, é proposto um projeto-piloto de supermercados públicos para venda de bens alimentares a preços mais baixos. Por fim, nas creches, a proposta passa por assegurar um serviço gratuito para todas as crianças até aos 5 anos.
Além do entusiasmo dos eleitores, o programa também reuniu apoio entre os principais economistas progressistas. Ainda assim, há questões que se levantam sobre as condições para a sua aplicação. Num texto publicado há poucos dias, o economista JW Mason discute os desafios que o programa enfrenta e os riscos associados a algumas das medidas.
Começando pela habitação, uma das propostas de Zohran Mamdani é a de eliminar algumas das regulações atualmente existentes, como a obrigatoriedade de construção de lugares de estacionamento nos novos empreendimentos, para estimular a construção privada. No entanto, esta é uma medida com impacto limitado sobre os preços, tendo em conta as taxas de retorno que os privados requerem para construir e que seriam difíceis de compaginar com a ausência de aumentos das rendas. Neste aspeto, a construção pública é indispensável: a autarquia não se rege pelos mesmos parâmetros dos privados e pode construir sem expectativas de rentabilidade elevada, assegurando a habitação a custos acessíveis, como demonstram os exemplos de Viena ou Paris.
Em relação à regulação de rendas, o principal argumento contra é o de que cria uma distorção no mercado: ao limitar o preço, reduz o incentivo para os senhorios e acaba por reduzir a oferta de casas e desincentivar a construção. No entanto, as experiências dizem-nos que o impacto não é linear. Os estudos sobre os casos de Massachussets ou São Francisco concluem que o controlo de rendas teve pouco impacto na oferta total de casas e foi eficaz na uma redução das rendas, embora tenha incentivado os senhorios a reconverter imóveis e dar outro uso a casas inicialmente disponíveis para arrendar.
Isso não significa que o controlo de rendas seja inútil. Significa que uma estratégia eficaz é necessariamente mais ampla e tem de incluir outras medidas para evitar a saída de casas do mercado de arrendamento. O controlo de rendas não é uma bala de prata, mas pode ser parte de uma estratégia de combate à crise da habitação: limita o poder dos proprietários para cobrar preços especulativos e ajuda a combater a gentrificação das cidades enquanto se aplicam outras medidas estruturais.
Quanto à gratuitidade dos transportes e das creches, a principal questão que se coloca tem a ver com a forma de os financiar. Zohran Mamdani defende o aumento de 1 ponto percentual do imposto sobre rendimentos acima de 1 milhão de euros, que geraria uma receita de 2 mil milhões de euros. É uma proposta modesta para uma cidade com níveis de riqueza e desigualdade tão acentuados como Nova Iorque. A tese de que os mais ricos deixariam a cidade não se tem verificado: os aumentos de impostos aprovados em 2017 e 2021 não levaram a um êxodo de pessoas nos escalões de rendimento mais altos.
Finalmente, em relação ao projeto-piloto para a criação de supermercados públicos, a principal crítica à medida é que será pouco eficaz, uma vez que as lojas privadas existentes operam com margens de lucro reduzidas e que os ganhos se concentram nos produtores dos bens alimentares. Embora seja uma preocupação legítima, há dois aspetos a ter em conta: por um lado, a proposta é criar uma alternativa pública em zonas em que os privados nem sequer operam por não ser rentável, como já acontece noutras cidades norte-americanas; por outro lado, o Estado pode ter força para negociar preços mais baixos com os produtores (o que não significa que não se devam considerar outras formas de intervenção pública ao nível da produção).
O que é que Lisboa tem em comum com Nova Iorque?
É difícil ignorar as semelhanças entre a crise do custo de vida em grandes cidades como Nova Iorque e Lisboa, em especial no caso da habitação. O preço das casas em Lisboa tem crescido muito acima da média nacional. Entre 2014 e 2024, enquanto o salário médio em Portugal cresceu 36%, o preço das casas subiu 135% no país e 176% em Lisboa. No caso das rendas, só desde 2017, o valor mediano dos novos contratos aumentou 64% no país e 82% na Área Metropolitana de Lisboa. Lisboa já é uma das cidades com as casas mais caras da Europa e tem-se tornado cada vez mais inacessível para boa parte das pessoas.
Fonte: The Economist
No entanto, os determinantes desta crise não são necessariamente os mesmos. Em Lisboa, a crise da habitação ganha outra dimensão devido à procura externa e à expansão desenfreada do turismo. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, através do investimento estrangeiro, dos incentivos fiscais para residentes não-habituais e da expansão do alojamento local e dos hotéis, contribuiu para alimentar a bolha no mercado imobiliário. O preço médio das casas compradas por não-residentes em Lisboa é 82% superior ao dos residentes, muito acima da média verificada no país. No peso do alojamento local, Lisboa já ultrapassou Nova Iorque há alguns anos.
Neste contexto, os incentivos à construção privada estão longe de garantir uma contenção dos preços, mesmo que a oferta aumente, uma vez que a procura externa é bastante elástica e não dá sinais de abrandar. Para estancar os preços da habitação - a principal variável que define o custo de vida na cidade -, medidas como o controlo de rendas e a construção pública são úteis, mas não suficientes. É necessário atuar não apenas no lado da oferta, mas também no da procura, com medidas para travar a compra de casas por não-residentes e a expansão do alojamento local e dos hotéis.
Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).
Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.
Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).
Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.
Deseducar
Fernando Alexandre tem uma obsessão com a chamada literacia financeira ou não tivesse sido membro da direção do mais liberdade para explorar e expropriar trabalhadores, o stink-tank que os milionários gostam de financiar com muitas centenas de milhares de euros, porque sabem que não existem almoços grátis na luta político-ideológica.
A chamada literacia financeira, de acordo com os novos planos curriculares do governo, terá ainda maior importância, com um foco na poupança e na segurança social, ou seja, em teorias erradas sobre a poupança, que Alexandre já propagou com Luís Aguiar-Conraria, com implicações privatizadoras para a Segurança Social. Este economistas, para quê e para quem mesmo? Repito, entretanto:
Como se argumenta na indispensável República dos Pijamas, “a Literacia Financeira é a nova palavra-chave do léxico neoliberal”. Já em 2013, em artigo na Análise Social, Ana Cordeiro Santos e Vânia Costa exploraram as implicações de uma forma de colocar o fardo sobre os cidadãos, ao invés de regular a finança, transformando-a num previsível serviço público. Ana Cordeiro Santos desenvolveu a relação entre literacia financeira e construção ideológica do sujeito neoliberal em artigo na New Political Economy. Leituras, estas sim, educativas...
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Hoje
A partir das 21h00, mais um debate por videoconferência promovido pela Praxis, dedicado às alterações laborais anunciadas no Programa de Governo. Com a participação de Paulo Pedroso (sociólogo e dirigente da Causa Pública), Joana Neto (docente universitária especialista em Direito do Trabalho) e apresentação do tema e moderação por Henrique Sousa (investigador social e membro da Práxis). A participação é livre. Inscrições prévias aqui.
Discurso
Gosto cada vez mais de ensaios curtos e incisivos. Lá vou ter, por uma vez, de violar a regra do blogue sobre palavras feias. A culpa é de Alberto Pimenta e do seu brilhante discurso, já com décadas, de Paulo Coimbra, que mo ofereceu, bem como deste contexto histórico que gera uma sobreprodução deste tipo de gente.
Há no ensaio uma tensão fecunda entre a busca de uma essência trans-histórica do filho da puta, a sua historicização, em geral, e a sua vinculação ao sistema de poder capitalista, em particular.
O que é então um filho da puta? Há de vários tipos, claro, sendo a sua classificação crucial.
Seja como for, um filho da puta, para Alberto Pimenta, é um antecipador da morte, buscando colocar obstáculos que impeçam a fruição despreocupada da vida pelos outros, seja dificultando a ação livre, seja ordenando e compelindo a ação assim condicionada. As formas variam, mas o propósito que faz do filho da puta um filho da puta mantém-se.
Há naturalmente no ensaio uma pulsão de vida libertada, sem medo, uma vida vivida sem preocupações de maior, sem filhos da puta de maior. Um ensaio a não perder.
terça-feira, 8 de julho de 2025
Feitio criminoso
Um criminoso de guerra será sempre um criminoso de guerra. Da destruição do Iraque no início do milénio aos projetos sionistas para a Palestina nestes trágicos anos vinte, o milionário Tony Blair não falha. Se houvesse justiça no mundo, estaria há muito preso, provavelmente para o resto da vida.
Como não há ainda justiça, este acumulador sem fim tem um instituto com o seu nome, maciçamente financiado, dedicando-se à consultoria, propagando o modelo de neoliberalismo que levou Thatcher a dizer que o “novo trabalhismo” dos anos 1990 tinha sido o seu maior triunfo.
O imperialismo genocida faz parte do projeto. Não é defeito, é feitio desde a origem.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Por que raio a Inglaterra tem e nós não?
Ouvimos há dias o novo Ministro da Economia e Coesão Territorial, António Castro Almeida, a dizer numa entrevista o mesmo que o Primeiro-Ministro e o anterior titular da pasta da Economia disseram várias vezes no passado recente: que o papel do Estado não é decidir em que sectores ou tecnologias apostar, pois “quem vai desenvolver a economia não é o governo, mas os empresários” e que o papel do governo é “não estorvar”.
Dias antes, o Reino Unido tornou-se o n-ésimo país a contradizer o que Castro Almeida e Montenegro defendem. O governo britânico apresentou a sua nova Estratégia Industrial, um documento de 160 páginas que estabelece uma visão de longo prazo para a transformação produtiva do Reino Unido (nota: em inglês “industry” significa sector de actividade, que inclui tanto indústrias transformadoras, como agricultura ou serviços). O documento define sectores prioritários, identifica os principais bloqueios ao investimento, propõe reformas regulatórias e fiscais, e mobiliza recursos públicos para promover a inovação, o emprego qualificado e a coesão territorial.
Tudo isto foi feito por um governo que chegou ao poder com um discurso pró-mercado e que, não obstante, não hesita em afirmar que a acção do Estado é indispensável para que o investimento se concentre nas áreas que mais podem beneficiar a economia e a sociedade. Um governo que, como tantos outros, reconhece o que devia ser óbvio: estratégia industrial e ambiente favorável aos negócios não são opostos, são complementares.
Ao contrário do que se defende nos círculos políticos de quem governa Portugal, ter uma estratégia industrial não significa pôr políticos ou burocratas a decidir onde investir. Significa, ao invés, que o Estado reconhece o seu papel na coordenação de esforços entre empresas, centros tecnológicos, instituições científicas e agências públicas. Significa que se fazem escolhas informadas, partilhadas e monitorizadas, em vez de confiar cegamente nas decisões descentralizadas de milhares de actores dispersos.
O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje.
Fundação Pingo Doce, what else?
O anúncio é todo um programa, que começa logo com uma pergunta retórica: «Estará a reforma em vias de extinção?» («extinção», notem bem, não se dramatiza com menos). E sim, dá-se a resposta logo de seguida, aludindo a «caminhos alternativos» para «complementar as reformas convencionais» e «enfrentar o futuro com tranquilidade» (vamos confiar que é só uma curiosa coincidência e que o episódio não é patrocinado por uma qualquer seguradora).
Na página da fundação, os propósitos deste «podcast» (aspas) tornam-se ainda mais claros. Determina-se, ao arrepio de todo o debate sobre o tema, que a «sustentabilidade do sistema público de pensões está seriamente em risco» («seriamente», porque quando se dramatiza não se brinca) e afiança-se que, «mais do que nunca, é preciso agir cedo para garantir, mais tarde, uma vida confortável». Até porque «a reforma é um tema para se debater na juventude».
Ficamos por aqui? Não, o «especialista Diogo Mendes» vai ainda mais longe e concretiza o objetivo do alegado «podcast» (mais aspas), perguntando ao putativo ouvinte se «já ouviu falar em ‘fundos de pensões corporativos’», se conhece o «conceito de ‘juro composto’» e se sabe «quais são as vantagens, e desvantagens, de fazer um Plano Poupança Reforma». Maior clareza não se pode pedir.
Nada contra, evidentemente, que uma companhia de seguros promova os seus produtos financeiros. Apenas não é suposto, parece-me, que a FFMS - «que tem por missão promover e aprofundar o conhecimento da realidade portuguesa» - se dedique, e não sem antes deturpar os termos da discussão, a «vender» produtos de poupança reforma. É caso para dizer, parafraseando um célebre escritor português, que «sobre a nudez forte da propaganda jaz o manto diáfano do aparente debate».
Crítica económica, economia crítica
Sei bem que Thomas Carlyle não é das melhores companhias, mas como crítico romântico da economia política vitoriana, da “ciência esquálida” (“dismal science”) e da sua “filosofia de porcos” (utilitarismo), expressões por si forjadas, a sua pena afiada é útil: “ensinem um papagaio a dizer oferta e procura e têm um economista”. Parece que foi escrito hoje para descrever um economista liberal até dizer chega.
Se a história económica ensina alguma coisa é que não há leis da oferta e da procura, quanto muito há tendências e contratendências histórica e geograficamente circunscritas.
Um exemplo, sob a forma de questão, basta: como explicar as dinâmicas de pânico e euforia nas fases históricas de finança liberalizada e propensa a bolhas especulativas, sem contar com os efeitos, contrários aos esperados pelas “leis”, na procura de ativos financeiros?
De facto, em certas circunstâncias, o aumento de preços valida as expetativas especulativas alimentadas a crédito, aumentando ainda mais a procura e levando à formação de bolhas que acabam por explodir mais tarde ou mais cedo.
Se quereis evitar crises financeiras, a tendência de política económica é clara: controlo de capitais e outras formas de regulação contrárias aos interesses da finança dita privada.
Entretanto, o mais tarde ou mais cedo é crucial, o tempo é crucial. A história é incerteza e os papagaios não sabem lidar com este facto: em contexto de incerteza, um somatório de decisões individualmente racionais, pode gerar uma situação globalmente irracional, mediada pelos preços de mercado e tudo.
Marx, Veblen ou Keynes souberam, e os seus discípulos também sabem, lidar com estes factos brutos. Haja história económica e das ideias económicas, haja crítica económica e economia crítica.
domingo, 6 de julho de 2025
Um jornal para pensarmos, um jornal para podermos
Desconfiança, desilusão, desesperança. A ordem é relativamente arbitrária. Muito antes da pobreza, do ódio ou da guerra se instalarem, vários poderes alimentaram uma máquina de corrosão da democracia. Atacaram direitos conseguidos à custa de muito sofrimento e vidas perdidas. Subvalorizaram a vida em paz, a pertença a uma comunidade política feita de diversidade. Erodiram as alavancas de igualdade e bem-estar que os serviços públicos e a ação do Estado devem garantir. Abusaram dos recursos do planeta, pondo em causa a vida humana. A informação de que este é o lugar histórico a que nos trouxe o projeto neoliberal é conhecida. Sabemos, mas o que podemos?
Assim começa para um imperdível editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, desta feita de julho. Não percais o resto no renovado site do jornal. Assinai, on-line e/ou em papel, um apoio sem igual a um projeto cooperativo com um quarto de século.
sábado, 5 de julho de 2025
Falar de um esperançoso lugar comum
Os dias passam e o mal-estar político não diminui, ainda para mais são pessoas que individualmente respeito, por quem tenho admiração e dívidas intelectuais. Custa mais quando assim é. Tenho de escrever mesmo assim, não ficaria de bem com a minha consciência política.
Faço então uma pergunta longa ao coletivo formado pelos distintos subscritores do texto levantar a nossa humanidade contra a guerra:
A 30 de junho de 2025, dia 634 do holocausto palestiniano perpetrado pelo colonialismo sionista, como é possível falar apenas de “atrocidades”, evitando a palavra genocídio e fazendo anteceder essa consideração com uma referência altamente equívoca ao “terrorismo”, embrulhando tudo num caldo surpreendentemente pretensioso sobre a guerra em geral, mas sem sequer referir a perigosa e ilegal corrida armamentista em curso na cúmplice UE?
A unidade antifascista, insisto, nunca se fez prescindindo da clareza, de distinções e de hierarquizações. Por isso, ao invés de estar para aqui a escrever, vou mas é para a manifestação pela paz, contra o genocídio na Palestina, pela autodeterminação dos povos. Fiquei de falar ali comummente, enquanto subscritor de um manifesto, dinamizado pela iniciativa dos comuns, onde a palavra genocídio aparece, não podia deixar de aparecer, como sublinhei à Visão.
Tenho personalidade, como todos, mas não sou, nem serei, uma personalidade, como alguns. E só a ação coletiva, onde estarão muitos milhares, gera bem-estar político neste mundo, só ela liberta e dá esperança. É o melhor antídoto contra as depressões, já dizia o arguto Mark Fisher, que perdeu a esperança de superar o realismo capitalista, infelizmente. Não temos direito a perdê-la, pelo povo palestiniano e por nós.
sexta-feira, 4 de julho de 2025
A economia política do escroque
Atenção, não creio que seja matéria de opinião: ser-se escroque é neste caso um facto bruto da economia política e do realismo moral que lhe subjaz.
E isto para evitar usar um termo cujos contornos são brilhantemente expostos num ensaio com décadas e que Alberto Pimenta escreveu como se o tivesse feito hoje. Só o li recentemente, graças à generosidade de Paulo Coimbra, e apelo a que não o percam por nada.
Seja como for, Covões encarna o capitalismo de herdeiros – nasceu em família dona do Coliseu dos Recreios – e vive à mesa dos orçamentos de vários poderes públicos, colecionando subsídios e, já agora, trabalho não pago a outros.
O turismo e o lazer hiper-mercadorizado são uma praga laboral e a excessiva especialização nestas áreas condena o país às frações sempre mais reacionárias do capital.
Aposto um dedo mindinho em como parte das verbas auferidas são recicladas para, sei lá, o Chega-IL, hifenizados por outro herdeiro da mesma laia política; enfim, imaginem o pior do associativismo de classe gerador de custos sociais para a comunidade, como o ACP ou assim, dadas as intervenções “carristas” de Covões.
A despudorada desfaçatez que exibe é o resultado de uma relação de forças que lhe é absolutamente favorável, sejamos realistas. Haja autoridade democrática para colocar estes escroques na ordem, sejamos esperançosos.
O medo tem mesmo de ser transferido de baixo para cima, concentrando-se lá no topo e diminuindo globalmente nesse processo.
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Perplexidades e personalidades
Confesso que fico perplexo ao ver Daniel Oliveira contrapor a “clubite partidária” às “personalidades independentes”, convocando, ainda para mais, a autoridade do macronista Santos Silva. Havia tanto para dizer sobre Santos Silva, mas não temos tempo.
Temos tempo, isso sim, para dizer que o conceito de “personalidade independente” faz parte do arsenal da sabedoria convencional, o mesmo que as coloca nos bancos centrais ou nas autoridades de regulação “independentes”, ou seja, dependentes de quem tem poder económico.
E havia tanto para dizer sobre os debates que as personalidades promovem. Para isto, ainda temos tempo: pela minha parte, aguardo serenamente pelas posições claras sobre o genocídio na Palestina, nem esta palavra decisiva usam nas suas tribunas, o desperdício da corrida armamentista na UE e a correspondente destruição dos Estados sociais, a usurpação de soberania pela Comissão Europeia neste contexto, a ilegalidades dos gastos da UE em armas, bem como o respetivo envio de armas, mas, por enquanto, só para conflitos onde estão homens brancos.
As “personalidades independentes” não têm sido nada claras sobre estes assuntos, até porque têm de intervir espaçadamente, tipo de cinco em cinco anos.
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