quinta-feira, 31 de julho de 2025

Notas a gosto


1.
No triste museu do vidro da Marinha Grande só falam praticamente os patrões, alardeando “responsabilidade social” e tudo. Temos de sair dali, para rotunda do vidreiro, para ver a memória da heróica resistência operária, a do 18 de janeiro de 1934. 

2. O Pinhal de Leiria continua uma lástima, oito anos depois dos incêndios. Boa altura para recordar que neste património público multisecular trabalhavam quase 250 pessoas no final dos anos 1970 e que, em 2017, ali trabalhavam 12. Hoje não sei, mas sei que a austeridade liberal com décadas destrói este velho Estado. Quando passo pelo Pinhal, lembro-me dos CTT. 

3. Nunca fui muito dado a campismo, mas sei, graças ao saudoso G. A. Cohen, que os princípios distributivos que aí vigoram são os do socialismo e que o parque de campismo de São Pedro de Moel é muito bom. Enfim, tive a oportunidade de fazer caravanismo pela primeira vez. 

4. Estamos no melhor dia do ano, vem aí o querido mês de agosto. Continuaremos a falar de política, de economia política e de política económica, sempre com coordenadas histórico-geográficas, com memória e raiz, mas talvez com mais sol e esperança e Douro.

Agradar a patrões do século XIX


«O governo pretende alterar radicalmente a legislação laboral. E quer debater este terramoto durante as férias e a campanha autárquica. Diz que deseja “a dinamização da contratação coletiva, o combate à precariedade laboral e uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e a vida profissional”. Tudo ao contrário. A novilíngua é a maior arte deste governo. Toda a balança se desequilibra para o mesmo lado, com trabalhadores mais isolados, explorados e precários e sindicatos enfraquecidos. (...) Num país que assiste à fuga de trabalhadores para o exterior, por estarem fartos de salários baixos, ambientes tóxicos e ausência de qualquer horizonte de carreira, o programa desta ministra é mais uma desistência de futuro. A que chama, porque o recuo tem de parecer moderno, “Trabalho XXI”.».

Daniel Oliveira, Lei laboral: aproveitar a oportunidade para desequilibrar a balança (recomenda-se a leitura na íntegra, em «Ler Mais»).

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Ao cuidado do autarca de Loures e da secretária de Estado da Habitação


«Na sua grande maioria são pessoas que estão a trabalhar. Algumas podem ter empregos mais precários, mas muitas têm contratos, e inclusivamente contratos sem termo. Portanto, até podem ter situações estáveis do ponto de vista profissional, mas têm rendimentos baixos, têm o salário mínimo ou pouco acima disso. E por isso não conseguem aceder a uma casa no mercado normal, no mercado formal de habitação, aos preços que estão a ser praticados.
Eu recordo-me, por exemplo, de um caso no bairro do Talude, precisamente, de uma jovem que trabalha 12 horas por dia, com apenas 8 folgas rotativas por mês, a cuidar de uma senhora idosa em Lisboa. Ganha cerca de 800 euros e, como é evidente, com 800 euros não consegue arrendar uma casa. Eu, aliás, hoje estive a fazer um exercício, que foi analisar, um a um, 200 anúncios de casas para arrendar, precisamente no concelho de Loures, e a casa mais barata que eu encontrei em Loures, que tinha 30m2, custava 750 euros. Ora, esta jovem, que trabalha 12 horas por dia - 12 horas por dia - ganha 800 e pouco, e portanto não tem solução possível.
No trabalho que fizemos agora, e publicámos há um mês, contactámos, uma a uma, as 18 autarquias da Área Metropolitana de Lisboa, perguntando precisamente quantos bairros é que tinham, com quantas famílias. Nós fizemos este mesmo exercício há 6 anos, em 2019. Na altura, o título desta notícia era "ainda há 13 bairros de lata na Grande Lisboa". E o "ainda" não era por acaso. Era porque na altura havia esta ideia, na população, que este era um problema que já estava resolvido ou que era residual. Porque tinha havido o PER, o Programa Especial de Realojamento nos anos 90, e portanto enraizou-se esta ideia, de que era um problema resolvido. Ora, nós voltámos a fazer 6 anos depois e o título é "já há 27 bairros de barracas na Grande Lisboa". E eu tenho a certeza de que se fizer este trabalho novamente, daqui a um ano, se calhar o título é "já há 40" ou "já há 50". Porque efetivamente, quem está na iminência de ir para a rua, vai construir um teto, por mais precário que esse teto seja
».

Joana Pereira Bastos, Expresso da Meia-Noite (19 julho 2025)

Numa aproximação despudorada e irresponsável ao Chega, tanto Ricardo Leão (que tudo fez para associar as barracas a um golpe oportunista de gente que quer passar à frente nas listas de espera), como Patrícia Gonçalves Costa (que tentou associar a crise habitacional à imigração, ignorando olimpicamente as procuras especulativas que lhe deram origem), deviam prestar atenção a esta análise de Joana Pereira Bastos, jornalista do Expresso, que apurou mais informação útil de resposta às interrogações do Presidente, que os dois governantes juntos.

Hoje, em Lisboa, concentração promovida pelo Vida Justa, «contra a destruição de casas, os despejos e as mentiras». É em frente à Cultugest, a partir das 19h00.

terça-feira, 29 de julho de 2025

O pluralismo retirava força ao obscurantismo, não é?


De há um par de semanas a esta parte, no Observador, esmifram-se e desunham-se, no esforço titânico de quem tenta demonstrar que uma pedra é um pau, em defesa das alterações impostas pela AD à disciplina de Cidadania. Está sobretudo em causa a supressão de conteúdos sobre saúde reprodutiva e sexualidade, visando pôr cobro a um alegado «ruído», mas acabando numa cedência à agenda medieval da direita conservadora e da extrema-direita.

Mas o ponto agora nem é esse. É apenas o facto curioso de os artigos de opinião sobre a matéria, publicados no Observador, se posicionarem, ainda que sob ângulos distintos, na barricada da defesa do governo, deixando o campo oposto a descoberto, num clamoroso défice de contraditório e pluralismo, mais acentuado que o habitual. Basta fazer uma pesquisa rápida no google (por «observador cidadania»), para confirmar isto mesmo.

Nenhuma estranheza, dado que o Observador não é um «jornal» nem um projeto jornalístico, mas antes «um projeto político» de representação de «fortes interesses económicos no palco mediático e da ala mais à direita», como bem lembra Pacheco Pereira. O viés no tratamento questão da Cidadania é só mais um exemplo, revelador de fraqueza da razão e não de força. Também por isso mais valia, de facto, que o Observador «fizesse uma declaração de interesses política (...), em vez de se apresentar como um órgão de comunicação» que segue «as regras deontológicas do jornalismo». O que se perde em pluralismo ganhava-se, ao menos, em transparência.

Razões


Foi no final de julho de 2015, há exatamente dez anos, que voltei a apoiar os comunistas portugueses. A principal razão para tal apoio foi a constatação, ali para os idos de 2011, de que eles estavam certos e de que eu estava errado na mais importante questão de economia política nacional, a integração europeia. 

Daí à razão comunista e ao iluminismo radical foi só um passo que demorou a dar: Pode perder-se força e ainda assim ter muita razão, muitas razões. É sempre necessário distinguir validade e poder. As derrotas políticas não são por si só refutações. 

Enfim, serve isto para dizer que me revejo na reação comunista ao chamado acordo comercial EUA-UE: 

“Um acordo que conta, uma vez mais, com a cumplicidade do Governo PSD/CDS, que na esteira das posições do PS, é expressão da submissão às imposições dos EUA e da UE. A abdicação de instrumentos de soberania como a política comercial, deixada nas mãos da UE e de quem a controla, retira ao País meios de defesa dos seus interesses e tem conduzido à comprovada desvalorização da capacidade produtiva nacional, ao aumento da dependência externa e da vulnerabilidade perante situações como esta.”

Vida Justa!

(Ponto de encontro na entrada da Culturgest) 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Nuno Portas (1934-2025)


«O Nuno tinha trabalhado em profundidade as questões da habitação e da política de solos. A sua influência chegava mesmo a alguns governantes da última leva anterior ao 25 de abril. Basta reler, por exemplo, o decreto lei 576/70 sobre política de solos para encontrar medidas com a sua marca, como a fixação de limites aos valores dos terrenos para construção ou o estabelecimento de rendas máximas numa certa percentagem dos fogos licenciados. Medidas então tidas como necessárias no combate à especulação, que hoje são um tabu ideológico para o “comentariado” dominante».

Helena Roseta, O maior legado

Há cerca de um mês, num debate sobre a crise de habitação e o papel da sociedade civil, e sobretudo quando a conversa começou a deambular por toda a sala, as referências a Nuno Portas surgiram em crescendo. Ora lembrando um princípio norteador da ação ou uma frase poderosa do arquiteto, pertinente e atual para o que se estava a discutir, ora recordando um episódio concreto, por vezes com uma nota de fino humor e de surpresa, em tudo o que era fecundamente disruptivo e subversivo no seu pensamento e prática política.

Tornou-se ali evidente a marca forte que Nuno Portas deixou em tantas e tão diversas pessoas, de ex-alunos e estudiosos a membros de associações de moradores. E, claro, as referências remontavam, na maior parte dos casos, ao SAAL, «um processo orgânico e maleável» (como assinalou José António Bandeirinha) de resposta à situação de profunda carência habitacional, assumindo o envolvimento das «populações mal alojadas» no próprio processo, através da sua relação com as equipas técnicas pluridisciplinares.

Para lá deste diálogo entre moradores e técnicos (arquitetos, engenheiros, sociólogos, etc.), que traduzia o fomento de pontes entre conhecimentos e saberes distintos (colocados assim num mesmo plano de legitimidade), o SAAL, filho da revolução democrática de 25 de Abril de 1974, distinguiu-se ainda, entre outros aspetos inéditos, pela afirmação do «direito ao lugar» (ao arrepio da expulsão das pessoas para as periferias, que se tornaria regra nos processos de realojamento posteriores), e da «legislação em processo», que estabelecia a aprovação de diplomas em resultado da experiência e das práticas, e não o inverso.

Nuno Portas deixa-nos no momento em que o país atravessa uma crise de habitação profunda e complexa, cuja génese e natureza impedem comparações simplistas com crises anteriores, marcadas pela efetiva falta de casas. Mas a sua luta pelo direito à habitação - o maior legado do arquiteto, como bem sublinha Helena Roseta -, e a defesa de instrumentos de regulação, tornam-se hoje ainda mais pertinentes, constituindo uma condição incontornável para assegurar esse direito e desmercadorizar a habitação. Nuno Portas continuará assim, seguramente, entre nós.

Já se pode ser eurocético


Segundo o Financial Times, a European Roundtable for Industry deu o seu “apoio cauteloso” ao humilhante acordo comercial EUA-UE. Os povos dos Estados europeus terão de o mandar para o caixote do lixo da história. 

Na história da economia política da integração europeia sabe-se que a European Roundtable for Industry é a organização do grande capital europeu concentrado no centro. Sempre favoreceu a integração europeia, parte da criação de mercados transatlânticos. A UE é no fundo a sua superestrutura política. 

Já se pode ser eurocético, pelos vistos, dada a natureza do acordo, parte de um processo mais vasto de acentuação da submissão a Trump, revelador da natureza da UE. Já tinha incluído o desperdício militarista de 5% do PIB ou borlas fiscais para multinacionais dos EUA. 

Há realmente de tudo no acordo: de tarifas de 15% impostas pelos EUA a tarifas de 0% aceites pela UE, passando pela renovada garantia de centenas de milhares de milhões de euros de compra de material militar e de energia cara aos EUA. Não é defeito, é feitio desde a origem.

E António Costa aplaude tudo isto, naturalmente. O complexo de vira-lata é multiescalar...

domingo, 27 de julho de 2025

De Borrell a Corbyn


Pode haver tanto para escalpelizar numa simples frase: “a Europa perdeu a alma em Gaza”, disse Josep Borrell. 

Comecemos pelo emissor: um dos mais oportunistas representantes da social-democracia do eixo NATO-UE, o da Europa-jardim e do resto-do-mundo-selva, lembremos uma fórmula do indivíduo que ocupou na UE um cargo por extinguir, o de representante de uma política externa que deve ser dos Estados. 

Continuemos com a metáfora ofuscadora, a que atribui uma alma a um continente só para não encarar as responsabilidades da elite da UE, incluindo do próprio, no genocídio em curso, perpetrado pelo colonialismo sionista, do qual a UE continuou a ser o maior mercado. 

O seu problema no fundo é que a “selva” já não ouvirá o “jardim” sobre “direitos humanos”, afiança na mesma declaração, como se o continente tivesse alguma lição a dar, como se fosse superior em qualquer plano. Eurocentrismo em estado puro.

Deixemos uma pergunta, entretanto: será que a UE, expressão do neoliberalismo institucionalizado no momento da sua criação em Maastricht, pode perder o que nunca teve, a tal alma? A resposta lógica é óbvia, ainda mais para quem se lembra da troika, por exemplo. 

Acabemos com uma comparação que nos pode, quiçá, levar longe: Borrell versus Corbyn. Um grisalho atravessou portas giratórias rumo a uma multinacional espanhola, tendo sido multado por inside trading e tudo; o outro é um social-democrata que nunca esteve à venda e que sempre foi consequentemente anti-imperialista. 

A sua integridade política, a sua intransigência e a sua substância político-ideológica igualitária explicam o seguinte facto: o partido que está a ajudar a criar teve quatrocentas mil adesões em 48h, sendo já o maior partido britânico (o que ainda ostenta o nome trabalhista, com o qual está empatado nas sondagens, tem trezentos mil militantes). São anos de trabalho coletivo de base, não é um qualquer Blitz mediático. 

Infelizmente, não conheço setores intelectuais ou políticos da social-democracia lusa, dos verdes com bombas, vulgo Livre, ao P sem S, que se aproximem sequer do internacionalismo consequente de Corbyn, da sua defesa do desarmamento de décadas de militância no movimento pela paz, da sua militância de sempre pela causa palestiniana, que lhe valeu acusações mentirosas de antissemitismo, numa campanha negra que suportou com estoicismo e coragem. Não está só, nunca esteve. 

De resto, só me lembro de Corbyn ter cometido um erro crucial e pelo qual pagou um preço elevado: quando foi líder do Partido Trabalhista, ter deixado que a posição sobre o Brexit fosse definida por Starmer, com a conversa do segundo referendo. E logo ele que foi contra a permanência na então CEE, no referendo de 1975, em linha com o imortal Tony Benn. Felizmente, o Reino Unido já está fora da UE: Many Thanks to the English Working Class, reafirmo. 

Já agora, por cá, um dos dramas de quem está à esquerda da social-democracia e pensa no antifascismo militante é este: com quem? Felizmente, há perguntas que a vida se vai encarregando de responder. Enfim, pela minha parte há muito que não me sentia tão pouco só, mesmo sabendo que ainda somos tão poucos. Haja evolução e esperança clarificadoras. Tudo muda.

sábado, 26 de julho de 2025

Anti-Centeno


Quem não quiser falar da política económica de Centeno, ou seja, da UE, a política de cativações e de quebra do investimento público, de aposta no nexo turismo-finança-construção, deve calar-se sobre a ascensão da extrema-direita. 

Pequei apenas por falta de imaginação quando defendi, em 2018, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, que não valia a pena tocar o sininho no Eurogrupo

Ver agora gente que se diz de esquerda a elogiar Centeno é bem revelador do estado de realismo capitalista a que chegámos. Não é só no PS que a ideologia pré-keynesiana das contas erradas para a maioria domina. Obviamente, há quem resista.

E não foi só como ministro das Finanças que Centeno, ou seja, a UE, deixou a sua marca negativa. Como governador do Banco que não é de Portugal, exibiu uma arrogância sem fim ao serviço de lucros privados e de prejuízos públicos, ao mesmo tempo que fazia declarações pífias para não tocar na banca e gemia em nome da austeridade sem fim, tudo competentemente denunciado por Paulo Coimbra. 

Nada disto é pessoal, claro. Não há nada mais político do que a política económica. A atuação de Centeno está em linha com as regras do jogo da sucursal do BCE. Não é defeito, é mesmo feitio. 

Naturalmente, com estes serviços ao Consenso de Bruxelas-Frankfurt, Centeno pode ambicionar um lugar lá fora.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Nós não temos que ser isto e somos melhores que isto


«Singh trabalha há dois anos e meio na mesma empresa portuguesa, tem contrato desde o início, ele e o patrão pagam mensalmente as contribuições à Segurança Social. Num processo kafkiano que mais parece ficção e que só pode envergonhar-nos, está desde sexta-feira privado de liberdade num “centro de instalação” gerido pela PSP no Porto. Terá passado a ser crime ser trabalhador estrangeiro? É mesmo isto que queremos ser como país?»

José Soeiro, Testemunho sobre a vergonha que sinto

É de leitura imprescindível, e na íntegra, o recente artigo de José Soeiro, que em boa hora o Expresso disponibilizou a não assinantes. Trata do caso de um trabalhador imigrante detido num centro de instalação, em consequência do atraso, por responsabilidade do Estado, no seu processo de regularização. A relação deste cidadão com diferentes entidades públicas, que não será de certeza caso único, assume contornos absolutamente indignos e ineceitáveis, refletindo o «ambiente de criminalização política dos trabalhadores imigrantes» que está a ser criado, ao arrepio da proclamação e do compromisso do governo com o «humanismo» nas políticas de acolhimento e integração.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Cadastrado económico


Álvaro Santos Pereira foi ministro da Economia durante o Governo da troika. Não é currículo, mas sim cadastro, como diria Miguel Beleza. 

Afinal de contas, a austeridade evitável, se o BCE tivesse feito o que lhe competia – controlar a taxa de juro – levou a taxa de desemprego aos 17% e centenas de milhares de compatriotas a emigrar. 

Pereira também emigrou, mas para a gaiola dourada da OCDE, onde certamente gemeu, enquanto outros fizeram força. Agora, gemerá em português. 

Seja como for, se Pereira fosse um keynesiano, ao invés de um sadomonetarista, isto pouco adiantaria perante o facto bruto que grande parte da esquerda prefere ignorar: o Banco não é de Portugal. Sim,  “mera sucursal do Banco Central Europeu”.

Isto não é um país para os mais relevantes efeitos de uma economia monetária de produção. Tenho pouca pachorra para politiquices que alimentam o enfadonho comentário político.

Aproximação ao Chega por todos os lados


A secretária de Estado da Habitação que referiu, na recente entrevista à RTP3 sobre as demolições do bairro do Talude, ser «preciso perceber de onde é que estas pessoas vieram, se estão a trabalhar, se vieram trabalhar, se têm contratos de trabalho que lhes permitam estar aqui», é a mesma secretária de Estado que, num ápice, nem pestaneja para assegurar, ipsis verbis, que a questão das barracas «é totalmente um problema ligado à imigração ilegal».

Questionada sobre a crise de habitação, o ressurgimento de barracas na AML ou a resposta a dar às famílias desumanamente desalojadas, não se ouviu de Patrícia Gonçalves Costa uma única referência ao impacto do turismo, ao investimento imobiliário estrangeiro ou aos efeitos da compra de casas para rentabilização de poupanças. Fatores que, no seu conjunto, são responsáveis pela subida vertiginosa dos preços e pelo seu desfasamento crescente face aos rendimentos das famílias, empurrando os mais frágeis para estas soluções precárias de alojamento.

Ao longo da entrevista, não se ouviu à responsável da AD pela habitação qualquer referência às verdadeiras causas da crise habitacional. Ter-lhe-ia bastado ler o recente artigo de Agustín Cocola-Gant no The Guardian, para perceber que não se compreende a crise sem «recuar ao período que se seguiu à crise financeira internacional de 2008» e sem relembrar os efeitos do «plano de choque para reanimar a economia», através do qual «Portugal adotou uma estratégia de liberalização agressiva, com o objetivo de colocar Lisboa - e o país – no mapa global do investimento imobiliário e do turismo». Nada que ver, portanto, na sua origem, com a questão da imigração.

Querer ver na imigração a causa da crise habitacional só pode, portanto, significar uma de duas coisas: um desconhecimento profundo ou a opção, sem escrúpulos, por uma aproximação ao Chega, visando dissimular o agravamento da situação desde que a AD formou governo e obter ganhos na disputa eleitoral com a extrema-direita. Como não é plausível que uma secretária de Estado da Habitação desconheça os fundamentos da crise habitacional, sobra a segunda hipótese. Nada de novo, aliás. Tem sido assim com o governo de Montenegro num número crescente de áreas, da própria imigração à educação, passando pela saúde.

Estar lá


Cristo não está ausente de Gaza. Está lá – crucificado nos feridos, enterrado sob os escombros e, no entanto, presente em cada ato de misericórdia, em cada luz que brilha na escuridão, em cada mão estendida aos que sofrem. 

Cardeal Pizzaballa, 22 de julho de 2025. 

Reparai como a hierarquia da Igreja Católica tem sido sistematicamente mais decente do que a social-democracia europeia realmente existente, destruída pelo euro-liberalismo, pelo imperialismo, pelo colonialismo sionista. 

É mesmo difícil ter esperança no meio do holocausto palestiniano, já nem falo de fé. O que fazer? Há uma obrigação, um imperativo, para lá da escrita que denuncia: vir para a rua lutar. 

Os últimos serão os primeiros naquela terra que vai do rio ao mar e que um dia será livre; Palestina vencerá.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Chegano Leão és um aldrabão

Face às mentiras divulgadas pelo presidente da Câmara Municipal de Loures, Ricardo Leão, cabe ao movimento Vida Justa revelar os factos sobre as atuações da Câmara, ao longo do ano, neste bairro.

No dia 27 de Março, técnicos da Câmara Municipal de Loures realizaram marcações de casas no Talude Militar, tendo informado os moradores que iriam proceder a demolições generalizadas. Oralmente, os fiscais da Câmara Municipal justificaram este procedimento alegando que as casas se encontravam em terreno público, sobre o qual não podia existir qualquer construção. 

Durante os primeiros meses de 2025, a Câmara fez diversas operações de marcação das casas, tendo procedido à demolição com marretas e moto-serras de algumas dessas casas. Fê-lo sem afixação de editais, informando oralmente os moradores presentes (quando presentes) na hora da demolição. 

Nessa altura, os moradores recorreram ao tribunal, alegando a não existência de um procedimento administrativo que justificasse tais demolições. O tribunal aceitou as providências cautelares e, mais tarde, julgou-as procedentes, intimando a autarquia à abstenção de qualquer ato de demolição. 

No dia 13 de Maio foi entregue, nas instalações da Câmara Municipal, uma segunda carta, agora assinada por 109 moradores do Talude, a convidar o atual executivo para uma reunião, a fim de debater o processo de demolição em curso. A carta foi ignorada, outra vez, pela autarquia. 

Recorde-se que o artigo 13.º da Lei Geral da Habitação obriga o Estado e as autarquias a terem alternativas habitacionais para as famílias cujas casas são demolidas e as pessoas despejadas.

O restante texto do justo comunicado do colectivo Vida Justa pode ser lido aqui

Não esquecer a sólida fundamentação invocada por Fernando Alexandre

Volksvargas (outubro 2024)

«Antes de prosseguir qualquer argumentação, que me espanta ser ainda necessária, recomendo vivamente (...) a leitura do livro “Jovens e Educação Sexual. Contextos, Saberes e Práticas”. (...) Talvez a leitura deste estudo (...) tivesse sido importante para a tomada de decisão, antes de se vociferar chavões sobre “amarras ideológicas” e de se retirar, de forma quase total, a referência à sexualidade da educação formal dos jovens. (...) A educação sexual tem provas dadas no combate à violência no namoro, à gravidez na adolescência, à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, à homofobia. A violência doméstica continua a fazer vítimas mortais, é normalizada nas famílias e é na escola que se podem quebrar os ciclos de normalização destes comportamentos.
(...) Não surpreende completamente que, num arranque de legislatura em que praticamente todas as prioridades de Luís Montenegro sejam as mesmas da extrema-direita, este movimento irresponsável seja mais uma etapa da fusão integral das agendas do Governo com as dos radicais da direita antidemocrática. (...) Querem voltar aos tempos em que a pornografia era a única fonte de conhecimento dos jovens sobre sexualidade? É esse o modelo?
Prefere-se o empreendedorismo à educação sexual. Mas esquece-se que, muito dificilmente, uma adolescente grávida, uma namorada sistematicamente agredida, um jovem vítima de bullying pela sua orientação sexual ou um jovem adulto com HIV terão a liberdade para poderem criar o seu negócio, porque o seu tempo estará ocupado com as consequências daquilo que lhes foi amputado. As amarras ideológicas não estão numa escola que promove conhecimento e liberdade. Estão no atavismo e no retrocesso de uma proposta que pode amarrar muitos jovens a um futuro sem esperança, porque menos esclarecido e mais sofrido
».

João Costa, Educação sexual. Querem amarrar os jovens à gravidez indesejada, à doença e à violência?

Anti-Amorim


Paula Amorim é a pessoa mais rica de Portugal e logo das mais poderosas. Vivemos em capitalismo e com cada vez menos freios e contrapesos à grande ameaça à democracia: o poder do capital, o que pode bem conduzir ao fascismo. 

Paula Amorim encarna o capitalismo fóssil, graças à Galp, herdada do pai, mérito de uma privatização ruinosa, e da Amorim Luxury, mimalhice tão reveladora. Encarna por isso também o porno-riquismo, ou seja, o consumo conspícuo na era das desigualdades pornográficas. 

Com regularidade, o seu serviço de relações públicas coloca-a na primeira página de jornais e revistas cada vez mais submissas, como aconteceu agora com a Sábado

Aliás, é para toda a ação política que colocou ideólogos liberais como Adolfo Mesquita Nunes na vice-presidência da Galp ou que o apelido Amorim paga parte do Eco Patronal. Paula Amorim já “escreveu” na revista do Eco Patronal e tudo (23 de novembro de 2023). E que escrita, como argumentei na altura no Le Monde diplomatique – edição portuguesa

Ficámos então a saber que é tudo uma questão de “atitude”, “com resiliência e espírito positivo”. Infelizmente, segundo Amorim, os “empreendedores” vivem no medo de existir: “No temor do Estado, das suas possíveis represálias e da sua permanente oscilação”, “sepultados numa teia de burocracia, regulamentações excessivas, impostos extraordinários e provisórios que persistem em permanecer”. 

Nem um só exemplo concreto é dado ao longo do texto para justificar tal distopia intervencionista, até porque esta é inexistente. Afinal de contas, Paula Amorim sabe muito bem o poder que tem num país onde nem sequer existe imposto sucessório, quanto mais regulamentações que a impeçam de transferir custos sociais para terceiros, por exemplo encerrando refinarias ou apropriando-se de rendas fundiárias na Comporta, pagando os impostos que bem entende, beneficiando da total liberdade de circulação de capitais, graças ao mercado único, à moeda única e, logo, à política tendencialmente única. 

Num contexto onde o justificado temor está concentrado na base da pirâmide social, a empresária ainda se julga no direito de nos dar lições: “Acrescentei valor ao meu património e ao meu Portugal”. E isto quando são os trabalhadores que criam tudo o que tem valor, como no fundo saberá. 

Entretanto, a 23 de julho de 2025, todos temos a obrigação de saber que o dinheiro procura comprar tudo, ocultar a verdade, algo que o jovem Marx tinha já explicado em 1844 nuns manuscritos económico-filosóficos. A obsessão de Paula Amorim é alardear, comprar, aquilo que não tem: mérito. 

Para isso, tudo é impecavelmente coreografado. Afinal de contas, o seu marido-sócio já tinha metido a pata na poça uma vez, quando verbalizou parte da violenta verdade de classe ao Expresso: “não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados”. 

O exibicionismo de Amorim é só um dos mais poderosos sinais de que a classe dominante, rentista até à medula, não tem medo, nem pudor. Pode ser que se engane. Já se enganou no fascismo, afinal de contas. Uma palavra: nacionalização; outra, vá: socialismo. A história não acabou.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Lá se foi a urbanidade de Fernando Alexandre


Num governo marcado por diversas figuras de duvidosa competência técnica e capacidade política, como aliás se viria a confirmar, Fernando Alexandre foi de início destacado como exemplo das poucas boas escolhas de Luís Montenegro. O facto de vir do mundo universitário e da investigação, a par do registo cordial e sereno, conferiam-lhe uma imagem de moderação, capacidade, pensamento próprio e urbanidade.

João Rodrigues já aqui dissecou devidamente, contudo, o indisfarcável entrincheiramento neoliberal de Fernando Alexandre. Entre outros aspetos assinalados, não é à toa, de facto, que se participa no insalubre e dissimulado menos liberdade, desfazendo a ideia de estarmos perante um social-democrata ou até, como se chegou a dizer no momento da sua nomeação, perante um defensor da escola pública.

Já enquanto ministro, a primeira brecha na imagem de moderação, seriedade e competência de Fernando Alexandre surge no modo como geriu a questão dos alunos sem aulas. Depois de ter alinhado num número de propaganda rasca, prometendo resolver o problema num ápice, o ministro não hesitou em manipular dados e inventar uma nebulosa de números para disfarçar o fracasso e, no final, preferir não saber sequer responder ao básico: quantos alunos iniciaram e chegaram ao final do ano letivo sem aulas a pelo menos uma disciplina?

Esvaziada a imagem de moderação na economia, e de rigor científico e seriedade académica, Fernando Alexandre sucumbe agora em matéria de urbanidade e cidadania, ao remover irresponsavelmente os conteúdos sobre saúde reprodutiva e sexualidade dos currícula, numa cedência sem escrúpulos à agenda medieval da direita conservadora e da extrema-direita. Depois de alinhar com a IL, Fernando Alexandre revela agora a sua sintonia com o Chega.

Tudo brutalmente previsível


É sabido que Sérgio Sousa Pinto nunca trabalhou na vida, incluindo trabalho político sério, e não é agora que vai começar. Passos Coelho trabalhou afincadamente para a troika, sendo que antes andou por esquemas negocistas com Miguel Relvas e fundos europeus. 

Enfim, esta dupla vai “coordenar” um estudo para patrões do Porto sobre reforma do Estado e do sistema político, o que teve logo eco no Eco Patronal

Obviamente, o trabalho propriamente dito será feito por um bando de economistas neoliberais, que tratarão de propor a enésima forma de Estado-garantia, expressão usada por Passos Coelho quando era Primeiro-Ministro, a enésima parceria público-privada para garantir politicamente lucros privados e prejuízos públicos. 

Tudo isto será acompanhado pela proposta de redução da representatividade do sistema político. Já se sabe: neoliberalização é igual a desdemocratização. 

Pinto e Coelho farão cara séria, enquanto ganham umas massas: há que fazer sacrifícios, façam força que nós gememos, etc. Tudo brutalmente previsível, incluindo o fim do P sem S.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Uma turma de crianças mortas todos os dias


«Nos últimos 21 meses de guerra, mais de 17 mil crianças foram mortas e 33 mil ficaram feridas em Gaza. Uma média de 28 crianças foram mortas por dia, o equivalente a uma sala de aula inteira. Pensem nisto por um momento... uma sala de aula inteira de crianças mortas todos os dias durante quase dois anos. Estas crianças não são combatentes - estão a ser mortas e mutiladas enquanto fazem fila para receber alimentos e medicamentos que lhes salvam a vida».

Catherine Russell, Diretora Executiva da UNICEF

Custa muito a perceber, e mais ainda a aceitar, que meses a fio a União Europeia permaneça muda e queda - na sua insuportável complacência e duplicidade de critérios - perante o horror e a carnificina do genocídio, que escalam para níveis de barbárie cada vez mais intoleráveis. Para que se tenha uma ideia, as cerca de 17 mil crianças mortas em Gaza desde 7 de outubro de 2023 equivalem ao total de crianças a frequentar os jardins de infância em Lisboa.

Quantos pacotes de sanções não teriam sido já aprovados, fosse outro o país, que não Israel? Com as raras exceções, não percebem os líderes europeus - a começar pelos mais altos responsáveis das instituições europeias - que este fechar de olhos, cruel e irresponsável, ao atropelo dos mais elementares princípios do direito internacional e do direito humanitário, abre um precedente da maior gravidade, que consolida o retrocesso civilizacional em curso? Como podem ter o despudor de, nos discursos, continuar a invocar os alegados «valores europeus»?

Um fundamentalista de mercado


‘Governo eliminou sexualidade das aprendizagens essenciais” da disciplina de Cidadania’, informa o Público. Em reação a isto, Seixas da Costa declarou que “esperava melhor de alguém como Fernando Alexandre”. 

Quem nos lê sabe que só se pode esperar o pior deste fundamentalista de mercado, bastando atentar no seu currículo político e não só desde o tempo de Passos Coelho: da administração interna – menos Estado social, mais Estado penal – ao mais liberdade para explorar, passando por variadas sinecuras bem pagas, incluindo a comissão do novo aeroporto – anti-Alexandre.    

Do ponto de vista económico, tem proferido um chorrilho de asneiras, de erros, sem fim, do salário mínimo às pensões, passando pela inflação. O anti-iluminismo tem agora poder: mais obscurantismo neoliberal, por via do reforço da chamada literacia financeira, menos educação sexual. Haja coerência e convergência com o fascismo. Já foi assim nos anos 1920.

A esquerda, a direita e a política da imigração


Há quem defenda o controlo da imigração por motivos que nada têm de xenófobo ou securitário. À esquerda, houve sempre quem fosse favorável a uma regulação dos fluxos migratórios para evitar o agravamento da exploração laboral, a degradação das condições sociais e o crescimento de tensões comunitárias. Este argumento parte da ideia de que a imigração, se for deixada ao sabor do mercado, tende a beneficiar alguns sectores patronais à custa dos trabalhadores — tanto os que chegam como os que já cá estão. Defender a dignidade de quem migra implica garantir condições de acolhimento, integração e protecção laboral — o que dificilmente se compatibiliza com uma política de movimentos sem restrições.

Por sua vez, à direita há quem se oponha ao controlo apertado das fronteiras. A direita liberal vê na imigração uma extensão natural da liberdade de circulação. Os migrantes, nesta lógica, são agentes económicos racionais, que procuram oportunidades e respondem a incentivos. O papel do Estado, como é habitual por essas bandas, deve ser mínimo: permitir a mobilidade e não interferir com o funcionamento dos mercados. Esta posição é coerente com uma visão do mundo em que o sucesso se mede pela eficiência alocativa e a diversidade é apenas o resultado natural de uma alocação óptima do factor trabalho.

Para a extrema-direita, a imigração é sobretudo uma ameaça à segurança e ao modo de vida ― como se em Portugal todos vivessem, e sempre tivessem vivido, do mesmo modo. Este discurso recorre sistematicamente à desinformação e à exploração do medo, fomentando o ódio. Mas, na verdade, a extrema-direita não se opõe, de forma geral, à vinda de imigrantes. O objectivo é antes mantê-los numa situação de direitos reduzidos: autorizações de permanência em território nacional limitadas ao trabalho em empresas específicas, por períodos definidos por essas mesmas empresas; impossibilidade de um imigrante procurar outras oportunidades de emprego no país, mesmo que elas existam; limitação dos apoios sociais e dos direitos laborais; e fortes restrições ao reagrupamento familiar. Dentro destas condições, a extrema-direita ― e, por contágio, uma parte crescente do centro-direita ― não se preocupa assim tanto com o volume de imigrantes no país. O importante é que estejam limitados nos seus direitos e na sua autonomia, podendo ser expulsos assim que deixarem de ser úteis para os empregadores que deles necessitaram.

Esta lógica é oposta à construção de uma sociedade coesa. Em vez de famílias integradas, com filhos nas escolas e ligações duradouras ao país de acolhimento, promove-se a permanência no país de homens jovens isolados, desenraizados e vulneráveis. Em vez de pessoas que adoptam Portugal como seu, cria-se uma população de cidadãos de segunda, sujeitos à exclusão, ao ressentimento e ao medo.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

domingo, 20 de julho de 2025

Sei que ajudei


Há um quarto de século que não participava numa jornada de trabalho da Festa do Avante, uma construção política ímpar em Portugal, feita com trabalho militante, algo que os liberais de tantos partidos nunca compreenderão. 

Apesar de não ser militante, e em linha com alguns apoiantes, fi-lo ontem e com o meu filho. A elisão da separação entre trabalho manual e intelectual e o espírito comunitário de entreajuda e fraternidade mantêm-se. Ele ficou genuinamente satisfeito com o resultado final e com o seu afincado contributo para que um terreno relativamente grande tivesse ficado limpo de palha: “quando vier cá, sei que ajudei a fazer isto”. 

A pedagogia sempre política deve passar pelo cultivo desta consciência social, contra o individualismo possessivo do neoliberalismo: só somos verdadeiramente livres quando trabalhamos para propósitos comuns, quando somos resgatados pela primeira pessoa do plural.

sábado, 19 de julho de 2025

Haja memória


Através de Raquel Ribeiro, fiquei a saber que o Governo da direita assinalou o dia internacional Nelson Mandela com o oportunismo dos que cultivam a desmemória.

A direita portuguesa, ao tempo de Cavaco Silva, votou na ONU ao lado dos EUA de Reagan e do Reino Unido de Thatcher contra uma resolução que exigia a libertação imediata de Mandela. Os EUA só deixaram de considerar Mandela um terrorista em 2008. 

É aliás por estas e por muitas outras que nunca se deve apodar os movimentos de resistência anti-colonial de terroristas, mesmo quando não se concorda com os seus métodos, uma boa prática política que está em linha com o que faz a esmagadora maioria do mundo. A esquerda eurocêntrica dominante, tíbia em relação ao colonialismo sionista, por exemplo, não segue esta e outras boas práticas. 

Já agora, sabem qual foi um dos primeiros países que Mandela visitou quando saiu da prisão? Foi Cuba. Ele sabia que o internacionalismo cubano nunca lhe tinha faltado quando contava. Haja memória.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Da Galiza, fraternalmente


Os fascistas do Vox nunca conseguiram penetrar na Galiza. Através de Maurício Castro, fiquei a saber que os próprios reconhecem que a “Galiza não é fácil por causa do nacionalismo”. Há um Bloco Nacionalista Galego.

A conclusão, em que também temos insistido desde há anos a esta parte, impõe-se: “A consciência nacional e de classe, melhor antídoto contra o fascismo”, afirma Castro neste contexto. 

No livro que será lançado na Festa do Avante! reafirmo esta hipótese política. Infelizmente, no campo intelectual dito progressista, esta posição é absolutamente minoritária em Portugal, ao contrário do que acontece na Galiza. Valoriza-se mais o que não se tem. Nós também não temos na prática muito do que ainda hoje julgamos ter.

Enfim, por cá é mais europeísmo, com toda a tralha cada vez mais inaceitável: tibieza perante o genocídio, aceitação “pragmática” da corrida armamentista, novo pretexto para escavacar ainda mais o Estado social, adaptação à viragem para a direita, sobredeterminada pela integração neoliberal indissociável da UE e do seu euro, com o intuito de manter posições mediáticas, unidade performativa sem substância nacional, de classe, programática, etc. 

Há muita distinção e clarificação a fazer para um programa democrático e logo anti-imperialista, de recorte keynesiano e desenvolvimentista na economia, com mínimos de decência social.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Editar, alertar


Se mais livros não houvesse, mas há, só estas duas obras, primorosamente editadas, da tradução à paginação, passando pelo grafismo e pela qualidade do papel, fariam com que estivesse imensamente agradecido a Vasco Santos

Ando a pensar num cruzamento entre estes dois relativamente breves, mas tão fecundos, ensaios. Deixarei registo escrito dele. 

Por agora, dizer apenas que o realismo capitalista no novo milénio, o registo cultural deprimente de um mundo despojado de alternativas sistémicas, se cruza com a denúncia fulgurante do colonialismo genocida e que este último poderá, qual novo bumerangue, regressar à Europa por via do fascismo, agora promovido pelo neoliberalismo, em linha com a hipótese histórica de Césaire. 

Sim, somos todos Palestinianos.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sim, uma crise ainda por enfrentar atira pessoas para barracas


1. Valha-nos Helena Roseta (aqui e aqui), para lembrar o óbvio e dizer o que é preciso: «o Artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação (...) diz muito claramente que não pode ser feito o despejo administrativo sem garantia prévia de solução alternativa». A solução para situações precárias não é, de facto, «colocar pessoas na rua, com a hipocrisia de dizerem que o fazem, porque as situações são indignas. (...) Irem para a rua ainda é mais indigno», acrescenta.

2. Há um dado relevante nas demolições ordenadas pelo município «socialista» de Loures. Talvez pela primeira vez, uma autarquia escusa-se, de forma deliberada e ostensiva, a proceder ao acompanhamento prévio das famílias e a assegurar alternativas de alojamento antes de demolir. As declarações da vereadora «socialista» são lapidares a este respeito e só depois de arrasar as construções e destruir bens das pessoas, forçadas entretanto a pernoitar na rua e na igreja, é que a autarquia começa a procurar alternativas para famílias que ficaram sem casa. Mais selvático é difícil.

3. Em junho passado, o Expresso identificou 27 bairros de barracas, localizados em metade dos concelhos da Grande Lisboa, onde vivem cerca de 3 mil famílias. Curiosamente, não há notícia de procedimentos semelhantes aos que estão em curso nos municípios «socialistas» de Loures e da Amadora. Com as autárquicas no horizonte, a aproximação destes dois municípios ao Chega, por palavras e demolições, é indisfarçável. Circula por aí um vídeo do deputado «socialista» Ricardo Lima, presidente da concelhia de Loures, que é simplesmente abjeto.

4. Em 2019 o Expresso tinha já procedido a um primeiro mapeamento de bairros de lata, contabilizando na altura um total de 13, onde viviam cerca de 1.800 famílias. A expansão desta forma precária de alojamento - a derradeira solução para pessoas que trabalham e deixam de conseguir pagar renda -, num contexto de aumento consecutivo dos preços da habitação, não surpreende. Apenas torna as demolições de Loures ainda mais bárbaras, desumanas e cobardes. Um fenómeno que persistirá, claro, até que se perceba - ontem já era tarde - que a atual crise de habitação não se resolve sem medidas robustas, e articuladas entre si, de regulação das dinâmicas especulativas do mercado.

Meia dúzia de notas sobre os extremos existentes – centro e direita


1.
O ministro da guerra alemão “social-democrata” garante, em entrevista ao Financial Times, que os mercadores da morte “já não se podem queixar”, uma vez que o governo já desbloqueou centenas de milhares de milhões de euros. Felizmente, há cada vez mais contestação na Alemanha, incluindo no seio do que resta do moribundo SPD. Também há cada vez mais repressão.

2. Há toda uma tradição belicista “social-democrata” que mergulha nas páginas mais negras da história do movimento de reforma, o que apoiou o colonialismo alemão com Bernstein e outros, o que alinhou com o crime contra a humanidade que foi a Primeira Guerra Mundial (assim designado num dos primeiros decretos do governo soviético, o da paz), o que hoje apoia o genocídio na Palestina, só para dar três exemplos. 

3. Em linha com a sua política de sempre, Macron, extremista do centro e antigo banqueiro da Rothschild, promete brutais cortes na despesa social e eliminação de feriados, tudo para aumentar brutalmente a despesa militar no contexto dos velhos e novos constrangimentos da UE e do seu ordoliberalismo armado. Haverá resistência popular, de frente, aposto, a única forma de evitar o caminho para o fascismo que Macron sempre abre, como insistimos desde a sua primeira eleição. 

4. Por cá, Santana Lopes, qual lebre, afiança que a ferrovia será sacrificada no altar de uma corrida armamentista que tem cumplicidades objetivas para lá das direitas e que vão dos verdes com bombas, vulgo Livre, ao P sem S e em breve sem P: troca-se despesa socialmente útil por despesa inútil. Podemos sempre circular de F-35...

5. Fora da UE, no Reino Unido, Corbyn ainda não formalizou o novo partido e já aparece empatado com os chamados “trabalhistas” nas sondagens. Um exemplo para todos os social-democratas: vale a pena ter um percurso consistente, tão genuinamente social-democrata – sem aspas, sem traições, ainda que com erros, naturalmente –, quanto anti-imperialista. 

6. De resto, só o iluminismo radical, entre a razão comunista, a social-democrata e a ecologista, entre Marx e Keynes, pode travar os extremismos realmente existentes. Verde-vermelho são as cores, incluindo da nossa bandeira. Como o social-democrata e anti-imperialista Lula mostra uma vez mais, agora no contexto do chamado tarifaço, só quem empunha a bandeira nacional, sem prescindir do internacionalismo, pode vencer.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Clareza neste momento


A Constituição é muita clara sobre competências do Presidente da República, bem como do Governo e da Assembleia da República, em matéria de guerra: “Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República.” 

O negocista Luís Montenegro declarou ontem que estamos em guerra. Não me lembro de terem sido acionados os procedimentos que a Constituição prevê. Obviamente, não estamos em guerra, nunca saímos, isso sim, da cada vez mais intensa guerra de classes. 

Montenegro pretendeu só meter medo aos de baixo para justificar os negócios estrangeiros mais sórdidos e corruptos que existem. Faz em novos moldes o que aprendeu com a troika: transferir recursos de baixo para cima e de dentro para fora. 

Proferiu tal despautério numa conferência organizada pela sociedade indigente de comunicação, onde participou entre outros, o vice-presidente de “campanhas estratégicas” (o nome diz tudo) da norte-americana Lockheed Martin, uma das principais mercadoras da morte. Montenegro falou de retorno para o país. Os EUA são o país para estes vende-pátrias, claro, e, dentro dos EUA, a sua classe dominante. 

É preciso ser-se muito corrupto moralmente para apresentar a economia da destruição como uma oportunidade de desenvolvimento, ainda para mais no contexto de alterações climáticas e de tantas necessidades sociais por satisfazer. O desenvolvimento é o processo coletivo da vida que aumenta as liberdades positivas, como defendeu Amartya Sen. A economia de guerra é o desenvolvimento do subdesenvolvimento, a erosão das potencialidades nacionais. 

Entretanto, há sempre dinheiro para o que os dominantes querem fazer, nunca se esqueçam, a restrição nunca é financeira, mas sim de mobilização de recursos reais para propósitos de vida ou de morte. O conhecimento deste facto dá toda a confiança económica que é necessária para o combate socialista contra esta barbárie televisionada. 

Por falar em combate necessário, lede o discurso que António Filipe fez na apresentação da sua candidatura presidencial. Tive o privilégio de assistir, com uma imensa alegria. Está lá tudo o que importa, com a clareza que importa neste momento.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Assinar e ler o jornal, lanchar e tertuliar


Importa lembrar com rigor que as presentes vontades de criar uma nova identidade jusconstitucional para o país seguem na senda da tradição daqueles que cedo — logo na composição da Comissão Constitucional e na revisão de 1982 — se opuseram às opções estruturais de uma Lei Fundamental solidária, coletivista e pluralista. O rearranjo retrotópico a que temos assistido resgata tal pretensão revogatória dos mecanismos de igualdade. Essa retropia, isto é, uma utopia em sentido regressivo, tem raízes históricas nos antimodernos do século XVIII que reagiram contra a mudança de estruturação de valores que fulminara a antiga hierarquia moral de uma suposta ordem natural perversa de privilégios.

Excerto do excelente artigo do jurista Sérgio Maia Tavares Marques no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de julho. Pode dar o mote para o debate. Lembro também o que Vicente Ferreira aqui escreveu: O que muda na economia com a revisão da Constituição? Lembrete: assinar e ler o jornal, lanchar e tertuliar.

Pulsões


A Lockheed Martin é uma das principais empresas de morte, parte do complexo militar-industrial norte-americano ou não tivesse 73% das suas receitas garantidas pelo governo federal dos EUA. A PLMJ é uma empresa de advocacia fundada pelo fascista José Miguel Júdice, parte do ecossistema de facilitadoras dos grandes negócios em Portugal.

O que têm em comum? São patrocinadoras da conferência “a nova defesa”. Organizada pela Sociedade Indigente de Comunicação (SIC), esta conferência garante que “2% de gastos em defesa não chegam, 5% só a prazo”. 

A guerra é o grande negócio e o Grupo Impresa precisa de grandes negócios garantidos pelo Estado para esconjurar a falência. O negocista Montenegro falará, claro. A pulsão de morte dos negocistas será televisionada. É tudo brutalmente claro nesta forma de economia política. O marxismo mais simples explica o essencial. 

Por coincidência, ou talvez não, esta conferência foi marcada para o mesmo dia/hora da apresentação da candidatura de António Filipe, que terá lugar na Voz do Operário, em Lisboa. O contraste ético-político não podia ser maior: pulsão de guerra e de morte versus pulsão de paz e de vida.

domingo, 13 de julho de 2025

Pela Paz


«Nós, cidadãos do mundo, defendemos que Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os Territórios Palestinianos Ocupados, e os médicos que salvam vidas em Gaza, merecem, pelo seu trabalho, o Prémio Nobel da Paz».

Promovida pela Avaaz, está a decorrer uma petição internacional para que seja atribuído o Prémio Nobel da Paz a Francesca Albanese e aos Médicos de Gaza. Subscrever aqui.

Um imortal

O imortal Vasco Granja fez cem anos a dez de julho. Vive em todas as servidoras públicas da educação e da cultura por essas escolas, teatros, museus, cinematecas, bibliotecas ou televisão pública afora, detestadas pelo neoliberalismo e pelo seu plano B, o fascismo. Deixo uma nota que escrevi em julho do ano passado, singela homenagem a “uma das figuras mais marcantes da cultura em Portugal”.

Ficha da PIDE de Vasco Granja

Faz parte da minha memória mais querida, de tantas horas passadas em frente ao pequeno grande ecrã, em liberdade. Tenho uma dívida política e cultural imensa. Temos. Era um tempo em que os nossos pais, felizmente para eles e para nós, não tinham “escolha”, algo muito sobrestimado hoje em dia, mas em que havia mais diversidade. 

Era um tempo em que o serviço público de televisão podia ser visto como um prolongamento da melhor ideia de escola pública: educar o gosto, formar, interpelar e, claro, divertir. E a escola era para todas as idades, naturalmente.  

Este tempo não foi totalmente derrotado, ainda faz parte de uma parte tão liberalmente apoucada do nosso presente, bem sei. Mas se tivesse deixado sempre o meu filho sozinho à frente do ecrã, com tanta “escolha” em torno do mesmo no cabo, ele teria acesso a muito menos diversidade e sobretudo a deseducação. A desigualdade aumentou, portanto. 

Atentai no facto bruto, que só pode ser superado pela ação coletiva: quando as crianças dependem mais das “escolhas” dos pais retrocedemos civilizacionalmente. A direita egoísta não quer outra coisa. 

Lembro-me das explosões “fáceis” de cor e de desenhos “difíceis”, com um ponto e um traço ao lado, que se mexiam ocasionalmente. Lembro-me do que vinha dos EUA, mas também da animação que vinha do socialismo onde fazia frio frio (União Soviética) e do socialismo onde fazia calor (Cuba). 

Lembro-me da voz e do olhar de Vasco Granja, um amigo e camarada que nunca conheci pessoalmente. E não, não é no sentido partidário, caro a este militante do PCP desde os anos 1950, mas no sentido talvez mais profundo, partindo da definição dada por Jodi Dean: “alguém com quem contas”. 

A luta pelo florescimento humano, pelo acesso aos bens culturais, nunca termina. É uma luta contra o mercado sem fim, contra as preferências dadas, como defendeu Russell Keat num livro raro, que podem encontrar em acesso livre por aí. Sim, é uma luta contra a “ciência” mais esquálida, a que ofusca que as “preferências” são sempre formadas ou deformadas pelos aparelhos sempre ideológicos; e que preferências não são valores. 

É sabido que a luta por bens culturais, acessíveis a todos, fez parte da vida de Vasco Granja. E luta melhor não houve, há ou haverá.

sábado, 12 de julho de 2025

Ligações e distinções


O nacionalismo de esquerda é uma potente bateria política, alimentando ligações populares e o internacionalismo mais consequente. Enésimo exemplo em Bilbau deste padrão: em cada andar, em cada esquina, somos todos Palestina. 

Na quarta-feira passada, o El Pais trazia um artigo de Lula – “no hay alternativa al multilateralismo”. Em linha com o que tem afirmado desde há meses, o Presidente brasileiro usou a palavra genocídio para se referir ao que Israel está a fazer na Palestina. As palavras são mesmo importantes. Ao mesmo tempo, denunciou os défices de ajuda ao desenvolvimento, no contexto das alterações climáticas, por parte de países ricos: “o recente aumento de gastos militares pela OTAN” faz com que esses défices só aumentem, garantiu. 

A social-democracia com algum poder a sul, e que não prescinde do soberanismo de recorte anti-imperialista, é mais clara do que certos e determinados setores euro-progressistas sem poder por cá. Esta falta de clareza não ajuda as causas palestiniana e da paz. A direita e setores ditos socialistas, todos com ligações sionistas, agradecem.

No fio da crise


Com Luís Mendes, participei num episódio do podcast Sur le fil, da Agência Francesa de Imprensa (AFP), dedicado à questão de habitação em Portugal. Da minha parte, procurei sublinhar a natureza distintiva da atual crise face a crises anteriores, indissociável do surgimento de novas procuras nacionais e internacionais, responsáveis, a par do turismo, pela subida vertiginosa dos preços e pelo seu distanciamento em relação aos rendimentos das famílias.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Será preciso relembrar as verdadeiras causas da crise de habitação?


«Na última década, Lisboa sofreu uma transformação drástica, deixando de ser uma das capitais europeias mais acessíveis para se tornar na mais inacessível. (...) Para perceber como se chegou aqui, é preciso recuar ao período que se seguiu à crise financeira internacional de 2008. No âmbito do plano de choque para reanimar a economia, Portugal adotou uma estratégia de liberalização agressiva, com o objetivo de colocar Lisboa - e o país – no mapa global do investimento imobiliário e do turismo. O governo adotou a fórmula neoliberal clássica: flexibilizou as leis do arrendamento, facilitando os despejos e reduzindo a duração dos contratos; introduziu generosos incentivos fiscais para compradores estrangeiros, incluindo os agora controversos Vistos Gold e regime de Residente Não Habitual; os fundos de investimento foram ativamente incentivados a entrar no mercado imobiliário, beneficiando de isenções fiscais adicionais. Ao mesmo tempo que tanto o setor hoteleiro como o do arrendamento de curta-duração foram estimulados, a par de iniciativas para atrair turistas, nómadas digitais, estudantes internacionais e jovens profissionais de outros países. (...) Estas mudanças ocorreram num contexto global de baixas taxas de juro, incentivando as pessoas a recorrer cada vez mais à habitação para alocar as suas poupanças».

Agustín Cocola-Gant, How Lisbon put itself on the map for real estate and tourism - and become Europe's least affordable city

Bem pode o governo tentar ofuscar o agravamento da crise, de que é responsável, insistindo na tese simplista da falta de casas (contrariada, desde logo, pela quase inalteração do rácio entre alojamentos e famílias ao longo da última década), ou continuando - como assinalou recentemente Sandra Marques Pereira no Público - a imputar a sua persistência «aos governos que o antecederam» e ao «aumento das taxas de juro e da imigração».

Em artigo no The Guardian que merece ser lido na íntegra, Agustín Cocola-Gant assinala de forma certeira o contexto e as opções políticas concretas que, incentivando as novas procuras - potencialmente inesgotáveis -, e convertendo a habitação num ativo de investimento financeiro, deram início à subida vertiginosa dos preços, que se foram afastando cada vez mais dos rendimentos da generalidade das famílias.

Esqueçam pois o ilusório «choque de oferta» e o reforço da subsídiação, que apenas agravará ainda mais o problema. E não tentem atribuir à descida das taxas de juro, ou ao aumento recente da imigração, a responsabilidade por um processo que teve início há mais de uma década. Se querem mesmo encontrar um governo responsável pela crise habitacional no nosso país, recuem a 2011 e ao memorando da troika. Encontrarão a maioria de direita de Passos e Portas, com Luís Montenegro a presidir à bancada do PSD.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Zohranomics: Lisboa pode aprender com Nova Iorque?

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Há duas semanas, as primárias para eleger o candidato do Partido Democrata à câmara de Nova Iorque tiveram um vencedor surpresa. Zohran Mamdani, associado à ala progressista do partido, ganhou com uma margem confortável, contrariando a maioria das sondagens divulgadas nas semanas anteriores.

Com uma campanha assente em pequenas doações dos apoiantes, Zohran Mamdani conseguiu vencer o candidato centrista Andrew Cuomo, que, além do reconhecimento por já ter sido governador de Nova Iorque, contava também com o apoio dos segmentos mais influentes do partido Democrata e de bilionários, fundos de investimento e outros grupos económicos que contribuíram com doações generosas para a sua campanha.

Mamdani ganhou a nomeação com um conjunto de propostas centrado no combate à crise do custo de vida, desde o controlo de rendas à gratuitidade dos transportes públicos e das creches. O slogan da campanha era tornar a cidade acessível a quem nela vive e trabalha. É possível encontrar algumas semelhanças - e diferenças - entre o caso de Nova Iorque e o de Lisboa, pelo que, numa altura em que se aproximam as eleições autárquicas, vale a pena olhar com atenção para esta campanha e para as propostas apresentadas.


O custo de vida é mesmo um problema?

Nova Iorque é uma cidade particularmente desigual, mesmo para os padrões dos EUA, como descreve o historiador económico Adam Tooze num post recente. O seu índice de Gini - que mede a disparidade de rendimentos - é o mais elevado entre as principais cidades, tendo inclusivamente aumentado desde a pandemia. Enquanto os rendimentos dos 3% mais ricos dispararam, os salários dos restantes grupos dificilmente chegam para acompanhar o custo de vida da cidade mais cara dos EUA.


Esta é uma tendência que não é nova nos EUA, mas que é particularmente expressiva em Nova Iorque. Entre 1980 e 2022, a percentagem do rendimento total recebida pelo 1% mais ricos dos EUA - por outras palavras, a sua fatia do bolo - passou de 10% para 24%. Em Nova Iorque, o aumento foi bastante mais expressivo: passou de 12% para 36%.

Além da desigualdade, a pobreza também é um problema sério na cidade. Um em cada quatro residentes não têm capacidade para suportar a despesa em bens essenciais como a alimentação e a habitação. Metade das pessoas abaixo da linha de pobreza encontram-se em situação de pobreza extrema - isto é, o seu rendimento é inferior a metade do limiar de pobreza.

Fonte: Center for New York City Affairs - NYC’s 2025 Economic & Budget Outlook

O fosso entre a maioria da população e os mais ricos tem aumentado e a acessibilidade é um problema real para muitos dos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Desde a pandemia, a cidade tem registado uma inflação acima da média nacional e o custo das rendas ou das creches tem subido de forma particularmente acentuada. Neste contexto, não surpreende que um programa direcionado para combater o custo de vida tenha gerado entusiasmo entre os eleitores democratas e permitido a nomeação de um candidato improvável.


Como tornar uma cidade acessível?

As propostas de Zohran Mamdani dirigem-se às principais despesas da maioria das pessoas. Na habitação, a principal medida é o fim dos aumentos de rendas para o arrendamento a custos controlados, que abrange cerca de metade das casas na cidade, ao mesmo tempo que se inicia um plano de construção pública para aumentar a oferta, construindo 200.000 casas na próxima década. Em relação aos transportes, o programa propõe torná-los gratuitos e aumentar a frequência. Na alimentação, é proposto um projeto-piloto de supermercados públicos para venda de bens alimentares a preços mais baixos. Por fim, nas creches, a proposta passa por assegurar um serviço gratuito para todas as crianças até aos 5 anos.

Além do entusiasmo dos eleitores, o programa também reuniu apoio entre os principais economistas progressistas. Ainda assim, há questões que se levantam sobre as condições para a sua aplicação. Num texto publicado há poucos dias, o economista JW Mason discute os desafios que o programa enfrenta e os riscos associados a algumas das medidas.

Começando pela habitação, uma das propostas de Zohran Mamdani é a de eliminar algumas das regulações atualmente existentes, como a obrigatoriedade de construção de lugares de estacionamento nos novos empreendimentos, para estimular a construção privada. No entanto, esta é uma medida com impacto limitado sobre os preços, tendo em conta as taxas de retorno que os privados requerem para construir e que seriam difíceis de compaginar com a ausência de aumentos das rendas. Neste aspeto, a construção pública é indispensável: a autarquia não se rege pelos mesmos parâmetros dos privados e pode construir sem expectativas de rentabilidade elevada, assegurando a habitação a custos acessíveis, como demonstram os exemplos de Viena ou Paris.

Em relação à regulação de rendas, o principal argumento contra é o de que cria uma distorção no mercado: ao limitar o preço, reduz o incentivo para os senhorios e acaba por reduzir a oferta de casas e desincentivar a construção. No entanto, as experiências dizem-nos que o impacto não é linear. Os estudos sobre os casos de Massachussets ou São Francisco concluem que o controlo de rendas teve pouco impacto na oferta total de casas e foi eficaz na uma redução das rendas, embora tenha incentivado os senhorios a reconverter imóveis e dar outro uso a casas inicialmente disponíveis para arrendar.

Isso não significa que o controlo de rendas seja inútil. Significa que uma estratégia eficaz é necessariamente mais ampla e tem de incluir outras medidas para evitar a saída de casas do mercado de arrendamento. O controlo de rendas não é uma bala de prata, mas pode ser parte de uma estratégia de combate à crise da habitação: limita o poder dos proprietários para cobrar preços especulativos e ajuda a combater a gentrificação das cidades enquanto se aplicam outras medidas estruturais.

Quanto à gratuitidade dos transportes e das creches, a principal questão que se coloca tem a ver com a forma de os financiar. Zohran Mamdani defende o aumento de 1 ponto percentual do imposto sobre rendimentos acima de 1 milhão de euros, que geraria uma receita de 2 mil milhões de euros. É uma proposta modesta para uma cidade com níveis de riqueza e desigualdade tão acentuados como Nova Iorque. A tese de que os mais ricos deixariam a cidade não se tem verificado: os aumentos de impostos aprovados em 2017 e 2021 não levaram a um êxodo de pessoas nos escalões de rendimento mais altos.

Finalmente, em relação ao projeto-piloto para a criação de supermercados públicos, a principal crítica à medida é que será pouco eficaz, uma vez que as lojas privadas existentes operam com margens de lucro reduzidas e que os ganhos se concentram nos produtores dos bens alimentares. Embora seja uma preocupação legítima, há dois aspetos a ter em conta: por um lado, a proposta é criar uma alternativa pública em zonas em que os privados nem sequer operam por não ser rentável, como já acontece noutras cidades norte-americanas; por outro lado, o Estado pode ter força para negociar preços mais baixos com os produtores (o que não significa que não se devam considerar outras formas de intervenção pública ao nível da produção).


O que é que Lisboa tem em comum com Nova Iorque?

É difícil ignorar as semelhanças entre a crise do custo de vida em grandes cidades como Nova Iorque e Lisboa, em especial no caso da habitação. O preço das casas em Lisboa tem crescido muito acima da média nacional. Entre 2014 e 2024, enquanto o salário médio em Portugal cresceu 36%, o preço das casas subiu 135% no país e 176% em Lisboa. No caso das rendas, só desde 2017, o valor mediano dos novos contratos aumentou 64% no país e 82% na Área Metropolitana de Lisboa. Lisboa já é uma das cidades com as casas mais caras da Europa e tem-se tornado cada vez mais inacessível para boa parte das pessoas.


No entanto, os determinantes desta crise não são necessariamente os mesmos. Em Lisboa, a crise da habitação ganha outra dimensão devido à procura externa e à expansão desenfreada do turismo. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, através do investimento estrangeiro, dos incentivos fiscais para residentes não-habituais e da expansão do alojamento local e dos hotéis, contribuiu para alimentar a bolha no mercado imobiliário. O preço médio das casas compradas por não-residentes em Lisboa é 82% superior ao dos residentes, muito acima da média verificada no país. No peso do alojamento local, Lisboa já ultrapassou Nova Iorque há alguns anos.

Gráfico publicado por Nuno Serra noutro post do blog

Neste contexto, os incentivos à construção privada estão longe de garantir uma contenção dos preços, mesmo que a oferta aumente, uma vez que a procura externa é bastante elástica e não dá sinais de abrandar. Para estancar os preços da habitação - a principal variável que define o custo de vida na cidade -, medidas como o controlo de rendas e a construção pública são úteis, mas não suficientes. É necessário atuar não apenas no lado da oferta, mas também no da procura, com medidas para travar a compra de casas por não-residentes e a expansão do alojamento local e dos hotéis.

Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).

Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.