quinta-feira, 10 de julho de 2025

Zohranomics: Lisboa pode aprender com Nova Iorque?

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Há duas semanas, as primárias para eleger o candidato do Partido Democrata à câmara de Nova Iorque tiveram um vencedor surpresa. Zohran Mamdani, associado à ala progressista do partido, ganhou com uma margem confortável, contrariando a maioria das sondagens divulgadas nas semanas anteriores.

Com uma campanha assente em pequenas doações dos apoiantes, Zohran Mamdani conseguiu vencer o candidato centrista Andrew Cuomo, que, além do reconhecimento por já ter sido governador de Nova Iorque, contava também com o apoio dos segmentos mais influentes do partido Democrata e de bilionários, fundos de investimento e outros grupos económicos que contribuíram com doações generosas para a sua campanha.

Mamdani ganhou a nomeação com um conjunto de propostas centrado no combate à crise do custo de vida, desde o controlo de rendas à gratuitidade dos transportes públicos e das creches. O slogan da campanha era tornar a cidade acessível a quem nela vive e trabalha. É possível encontrar algumas semelhanças - e diferenças - entre o caso de Nova Iorque e o de Lisboa, pelo que, numa altura em que se aproximam as eleições autárquicas, vale a pena olhar com atenção para esta campanha e para as propostas apresentadas.


O custo de vida é mesmo um problema?

Nova Iorque é uma cidade particularmente desigual, mesmo para os padrões dos EUA, como descreve o historiador económico Adam Tooze num post recente. O seu índice de Gini - que mede a disparidade de rendimentos - é o mais elevado entre as principais cidades, tendo inclusivamente aumentado desde a pandemia. Enquanto os rendimentos dos 3% mais ricos dispararam, os salários dos restantes grupos dificilmente chegam para acompanhar o custo de vida da cidade mais cara dos EUA.


Esta é uma tendência que não é nova nos EUA, mas que é particularmente expressiva em Nova Iorque. Entre 1980 e 2022, a percentagem do rendimento total recebida pelo 1% mais ricos dos EUA - por outras palavras, a sua fatia do bolo - passou de 10% para 24%. Em Nova Iorque, o aumento foi bastante mais expressivo: passou de 12% para 36%.

Além da desigualdade, a pobreza também é um problema sério na cidade. Um em cada quatro residentes não têm capacidade para suportar a despesa em bens essenciais como a alimentação e a habitação. Metade das pessoas abaixo da linha de pobreza encontram-se em situação de pobreza extrema - isto é, o seu rendimento é inferior a metade do limiar de pobreza.

Fonte: Center for New York City Affairs - NYC’s 2025 Economic & Budget Outlook

O fosso entre a maioria da população e os mais ricos tem aumentado e a acessibilidade é um problema real para muitos dos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Desde a pandemia, a cidade tem registado uma inflação acima da média nacional e o custo das rendas ou das creches tem subido de forma particularmente acentuada. Neste contexto, não surpreende que um programa direcionado para combater o custo de vida tenha gerado entusiasmo entre os eleitores democratas e permitido a nomeação de um candidato improvável.


Como tornar uma cidade acessível?

As propostas de Zohran Mamdani dirigem-se às principais despesas da maioria das pessoas. Na habitação, a principal medida é o fim dos aumentos de rendas para o arrendamento a custos controlados, que abrange cerca de metade das casas na cidade, ao mesmo tempo que se inicia um plano de construção pública para aumentar a oferta, construindo 200.000 casas na próxima década. Em relação aos transportes, o programa propõe torná-los gratuitos e aumentar a frequência. Na alimentação, é proposto um projeto-piloto de supermercados públicos para venda de bens alimentares a preços mais baixos. Por fim, nas creches, a proposta passa por assegurar um serviço gratuito para todas as crianças até aos 5 anos.

Além do entusiasmo dos eleitores, o programa também reuniu apoio entre os principais economistas progressistas. Ainda assim, há questões que se levantam sobre as condições para a sua aplicação. Num texto publicado há poucos dias, o economista JW Mason discute os desafios que o programa enfrenta e os riscos associados a algumas das medidas.

Começando pela habitação, uma das propostas de Zohran Mamdani é a de eliminar algumas das regulações atualmente existentes, como a obrigatoriedade de construção de lugares de estacionamento nos novos empreendimentos, para estimular a construção privada. No entanto, esta é uma medida com impacto limitado sobre os preços, tendo em conta as taxas de retorno que os privados requerem para construir e que seriam difíceis de compaginar com a ausência de aumentos das rendas. Neste aspeto, a construção pública é indispensável: a autarquia não se rege pelos mesmos parâmetros dos privados e pode construir sem expectativas de rentabilidade elevada, assegurando a habitação a custos acessíveis, como demonstram os exemplos de Viena ou Paris.

Em relação à regulação de rendas, o principal argumento contra é o de que cria uma distorção no mercado: ao limitar o preço, reduz o incentivo para os senhorios e acaba por reduzir a oferta de casas e desincentivar a construção. No entanto, as experiências dizem-nos que o impacto não é linear. Os estudos sobre os casos de Massachussets ou São Francisco concluem que o controlo de rendas teve pouco impacto na oferta total de casas e foi eficaz na uma redução das rendas, embora tenha incentivado os senhorios a reconverter imóveis e dar outro uso a casas inicialmente disponíveis para arrendar.

Isso não significa que o controlo de rendas seja inútil. Significa que uma estratégia eficaz é necessariamente mais ampla e tem de incluir outras medidas para evitar a saída de casas do mercado de arrendamento. O controlo de rendas não é uma bala de prata, mas pode ser parte de uma estratégia de combate à crise da habitação: limita o poder dos proprietários para cobrar preços especulativos e ajuda a combater a gentrificação das cidades enquanto se aplicam outras medidas estruturais.

Quanto à gratuitidade dos transportes e das creches, a principal questão que se coloca tem a ver com a forma de os financiar. Zohran Mamdani defende o aumento de 1 ponto percentual do imposto sobre rendimentos acima de 1 milhão de euros, que geraria uma receita de 2 mil milhões de euros. É uma proposta modesta para uma cidade com níveis de riqueza e desigualdade tão acentuados como Nova Iorque. A tese de que os mais ricos deixariam a cidade não se tem verificado: os aumentos de impostos aprovados em 2017 e 2021 não levaram a um êxodo de pessoas nos escalões de rendimento mais altos.

Finalmente, em relação ao projeto-piloto para a criação de supermercados públicos, a principal crítica à medida é que será pouco eficaz, uma vez que as lojas privadas existentes operam com margens de lucro reduzidas e que os ganhos se concentram nos produtores dos bens alimentares. Embora seja uma preocupação legítima, há dois aspetos a ter em conta: por um lado, a proposta é criar uma alternativa pública em zonas em que os privados nem sequer operam por não ser rentável, como já acontece noutras cidades norte-americanas; por outro lado, o Estado pode ter força para negociar preços mais baixos com os produtores (o que não significa que não se devam considerar outras formas de intervenção pública ao nível da produção).


O que é que Lisboa tem em comum com Nova Iorque?

É difícil ignorar as semelhanças entre a crise do custo de vida em grandes cidades como Nova Iorque e Lisboa, em especial no caso da habitação. O preço das casas em Lisboa tem crescido muito acima da média nacional. Entre 2014 e 2024, enquanto o salário médio em Portugal cresceu 36%, o preço das casas subiu 135% no país e 176% em Lisboa. No caso das rendas, só desde 2017, o valor mediano dos novos contratos aumentou 64% no país e 82% na Área Metropolitana de Lisboa. Lisboa já é uma das cidades com as casas mais caras da Europa e tem-se tornado cada vez mais inacessível para boa parte das pessoas.


No entanto, os determinantes desta crise não são necessariamente os mesmos. Em Lisboa, a crise da habitação ganha outra dimensão devido à procura externa e à expansão desenfreada do turismo. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, através do investimento estrangeiro, dos incentivos fiscais para residentes não-habituais e da expansão do alojamento local e dos hotéis, contribuiu para alimentar a bolha no mercado imobiliário. O preço médio das casas compradas por não-residentes em Lisboa é 82% superior ao dos residentes, muito acima da média verificada no país. No peso do alojamento local, Lisboa já ultrapassou Nova Iorque há alguns anos.

Gráfico publicado por Nuno Serra noutro post do blog

Neste contexto, os incentivos à construção privada estão longe de garantir uma contenção dos preços, mesmo que a oferta aumente, uma vez que a procura externa é bastante elástica e não dá sinais de abrandar. Para estancar os preços da habitação - a principal variável que define o custo de vida na cidade -, medidas como o controlo de rendas e a construção pública são úteis, mas não suficientes. É necessário atuar não apenas no lado da oferta, mas também no da procura, com medidas para travar a compra de casas por não-residentes e a expansão do alojamento local e dos hotéis.

Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).

Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.

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