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Com uma campanha assente em pequenas doações dos apoiantes, Zohran Mamdani conseguiu vencer o candidato centrista Andrew Cuomo, que, além do reconhecimento por já ter sido governador de Nova Iorque, contava também com o apoio dos segmentos mais influentes do partido Democrata e de bilionários, fundos de investimento e outros grupos económicos que contribuíram com doações generosas para a sua campanha.
Mamdani ganhou a nomeação com um conjunto de propostas centrado no combate à crise do custo de vida, desde o controlo de rendas à gratuitidade dos transportes públicos e das creches. O slogan da campanha era tornar a cidade acessível a quem nela vive e trabalha. É possível encontrar algumas semelhanças - e diferenças - entre o caso de Nova Iorque e o de Lisboa, pelo que, numa altura em que se aproximam as eleições autárquicas, vale a pena olhar com atenção para esta campanha e para as propostas apresentadas.
O custo de vida é mesmo um problema?
Nova Iorque é uma cidade particularmente desigual, mesmo para os padrões dos EUA, como descreve o historiador económico Adam Tooze num post recente. O seu índice de Gini - que mede a disparidade de rendimentos - é o mais elevado entre as principais cidades, tendo inclusivamente aumentado desde a pandemia. Enquanto os rendimentos dos 3% mais ricos dispararam, os salários dos restantes grupos dificilmente chegam para acompanhar o custo de vida da cidade mais cara dos EUA.
Esta é uma tendência que não é nova nos EUA, mas que é particularmente expressiva em Nova Iorque. Entre 1980 e 2022, a percentagem do rendimento total recebida pelo 1% mais ricos dos EUA - por outras palavras, a sua fatia do bolo - passou de 10% para 24%. Em Nova Iorque, o aumento foi bastante mais expressivo: passou de 12% para 36%.
Além da desigualdade, a pobreza também é um problema sério na cidade. Um em cada quatro residentes não têm capacidade para suportar a despesa em bens essenciais como a alimentação e a habitação. Metade das pessoas abaixo da linha de pobreza encontram-se em situação de pobreza extrema - isto é, o seu rendimento é inferior a metade do limiar de pobreza.
Fonte: Center for New York City Affairs - NYC’s 2025 Economic & Budget Outlook
O fosso entre a maioria da população e os mais ricos tem aumentado e a acessibilidade é um problema real para muitos dos que vivem e trabalham em Nova Iorque. Desde a pandemia, a cidade tem registado uma inflação acima da média nacional e o custo das rendas ou das creches tem subido de forma particularmente acentuada. Neste contexto, não surpreende que um programa direcionado para combater o custo de vida tenha gerado entusiasmo entre os eleitores democratas e permitido a nomeação de um candidato improvável.
Como tornar uma cidade acessível?
As propostas de Zohran Mamdani dirigem-se às principais despesas da maioria das pessoas. Na habitação, a principal medida é o fim dos aumentos de rendas para o arrendamento a custos controlados, que abrange cerca de metade das casas na cidade, ao mesmo tempo que se inicia um plano de construção pública para aumentar a oferta, construindo 200.000 casas na próxima década. Em relação aos transportes, o programa propõe torná-los gratuitos e aumentar a frequência. Na alimentação, é proposto um projeto-piloto de supermercados públicos para venda de bens alimentares a preços mais baixos. Por fim, nas creches, a proposta passa por assegurar um serviço gratuito para todas as crianças até aos 5 anos.
Além do entusiasmo dos eleitores, o programa também reuniu apoio entre os principais economistas progressistas. Ainda assim, há questões que se levantam sobre as condições para a sua aplicação. Num texto publicado há poucos dias, o economista JW Mason discute os desafios que o programa enfrenta e os riscos associados a algumas das medidas.
Começando pela habitação, uma das propostas de Zohran Mamdani é a de eliminar algumas das regulações atualmente existentes, como a obrigatoriedade de construção de lugares de estacionamento nos novos empreendimentos, para estimular a construção privada. No entanto, esta é uma medida com impacto limitado sobre os preços, tendo em conta as taxas de retorno que os privados requerem para construir e que seriam difíceis de compaginar com a ausência de aumentos das rendas. Neste aspeto, a construção pública é indispensável: a autarquia não se rege pelos mesmos parâmetros dos privados e pode construir sem expectativas de rentabilidade elevada, assegurando a habitação a custos acessíveis, como demonstram os exemplos de Viena ou Paris.
Em relação à regulação de rendas, o principal argumento contra é o de que cria uma distorção no mercado: ao limitar o preço, reduz o incentivo para os senhorios e acaba por reduzir a oferta de casas e desincentivar a construção. No entanto, as experiências dizem-nos que o impacto não é linear. Os estudos sobre os casos de Massachussets ou São Francisco concluem que o controlo de rendas teve pouco impacto na oferta total de casas e foi eficaz na uma redução das rendas, embora tenha incentivado os senhorios a reconverter imóveis e dar outro uso a casas inicialmente disponíveis para arrendar.
Isso não significa que o controlo de rendas seja inútil. Significa que uma estratégia eficaz é necessariamente mais ampla e tem de incluir outras medidas para evitar a saída de casas do mercado de arrendamento. O controlo de rendas não é uma bala de prata, mas pode ser parte de uma estratégia de combate à crise da habitação: limita o poder dos proprietários para cobrar preços especulativos e ajuda a combater a gentrificação das cidades enquanto se aplicam outras medidas estruturais.
Quanto à gratuitidade dos transportes e das creches, a principal questão que se coloca tem a ver com a forma de os financiar. Zohran Mamdani defende o aumento de 1 ponto percentual do imposto sobre rendimentos acima de 1 milhão de euros, que geraria uma receita de 2 mil milhões de euros. É uma proposta modesta para uma cidade com níveis de riqueza e desigualdade tão acentuados como Nova Iorque. A tese de que os mais ricos deixariam a cidade não se tem verificado: os aumentos de impostos aprovados em 2017 e 2021 não levaram a um êxodo de pessoas nos escalões de rendimento mais altos.
Finalmente, em relação ao projeto-piloto para a criação de supermercados públicos, a principal crítica à medida é que será pouco eficaz, uma vez que as lojas privadas existentes operam com margens de lucro reduzidas e que os ganhos se concentram nos produtores dos bens alimentares. Embora seja uma preocupação legítima, há dois aspetos a ter em conta: por um lado, a proposta é criar uma alternativa pública em zonas em que os privados nem sequer operam por não ser rentável, como já acontece noutras cidades norte-americanas; por outro lado, o Estado pode ter força para negociar preços mais baixos com os produtores (o que não significa que não se devam considerar outras formas de intervenção pública ao nível da produção).
O que é que Lisboa tem em comum com Nova Iorque?
É difícil ignorar as semelhanças entre a crise do custo de vida em grandes cidades como Nova Iorque e Lisboa, em especial no caso da habitação. O preço das casas em Lisboa tem crescido muito acima da média nacional. Entre 2014 e 2024, enquanto o salário médio em Portugal cresceu 36%, o preço das casas subiu 135% no país e 176% em Lisboa. No caso das rendas, só desde 2017, o valor mediano dos novos contratos aumentou 64% no país e 82% na Área Metropolitana de Lisboa. Lisboa já é uma das cidades com as casas mais caras da Europa e tem-se tornado cada vez mais inacessível para boa parte das pessoas.
Fonte: The Economist
No entanto, os determinantes desta crise não são necessariamente os mesmos. Em Lisboa, a crise da habitação ganha outra dimensão devido à procura externa e à expansão desenfreada do turismo. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, através do investimento estrangeiro, dos incentivos fiscais para residentes não-habituais e da expansão do alojamento local e dos hotéis, contribuiu para alimentar a bolha no mercado imobiliário. O preço médio das casas compradas por não-residentes em Lisboa é 82% superior ao dos residentes, muito acima da média verificada no país. No peso do alojamento local, Lisboa já ultrapassou Nova Iorque há alguns anos.
Neste contexto, os incentivos à construção privada estão longe de garantir uma contenção dos preços, mesmo que a oferta aumente, uma vez que a procura externa é bastante elástica e não dá sinais de abrandar. Para estancar os preços da habitação - a principal variável que define o custo de vida na cidade -, medidas como o controlo de rendas e a construção pública são úteis, mas não suficientes. É necessário atuar não apenas no lado da oferta, mas também no da procura, com medidas para travar a compra de casas por não-residentes e a expansão do alojamento local e dos hotéis.
Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).
Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.
Em relação aos transportes, embora os passes gratuitos sejam uma medida positiva, dificilmente serão suficientes para atrair as pessoas e reduzir o número de carros na cidade se não forem acompanhados de investimento público para reforçar a oferta. Aumentar a frequência dos autocarros, expandir o metro para zonas da cidade para as quais as ligações têm sido adiadas e investir seriamente na ferrovia nas linhas de Sintra e Setúbal (o que implicaria colaboração entre municípios e governo) são condições necessárias para que o transporte público seja a melhor opção para quem vive e trabalha na área metropolitana. Estes investimentos têm de ser complementados com medidas que desincentivem o uso dos carros, de forma a reduzir o trânsito na cidade (que atualmente contribui para a lentidão dos autocarros).
Um programa de combate à crise do custo de vida na cidade tem de se confrontar com os problemas colocados pela expansão do turismo e precisa de colocar em causa o padrão de especialização económica da cidade, cujo crescimento tem sido assente em serviços de baixo valor acrescentado e pouco potencial produtivo. Alterações estruturais são uma condição necessária para tornar Lisboa acessível para a maioria.
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