quinta-feira, 31 de julho de 2025
Agradar a patrões do século XIX
«O governo pretende alterar radicalmente a legislação laboral. E quer debater este terramoto durante as férias e a campanha autárquica. Diz que deseja “a dinamização da contratação coletiva, o combate à precariedade laboral e uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e a vida profissional”. Tudo ao contrário. A novilíngua é a maior arte deste governo. Toda a balança se desequilibra para o mesmo lado, com trabalhadores mais isolados, explorados e precários e sindicatos enfraquecidos. (...) Num país que assiste à fuga de trabalhadores para o exterior, por estarem fartos de salários baixos, ambientes tóxicos e ausência de qualquer horizonte de carreira, o programa desta ministra é mais uma desistência de futuro. A que chama, porque o recuo tem de parecer moderno, “Trabalho XXI”.».
Daniel Oliveira, Lei laboral: aproveitar a oportunidade para desequilibrar a balança (recomenda-se a leitura na íntegra, em «Ler Mais»).
Lei laboral: aproveitar a oportunidade para desequilibrar a balança
Daniel Oliveira (Expresso, 30 de julho de 2025)
O governo propõe uma reforma laboral muitíssimo ambiciosa que desequilibraria a já muito injusta relação entre trabalhadores e patrões. São mais de 110 artigos modificados. Um sexto (quase 90) do Código do Trabalho, mais as várias e importantes alterações a legislação conexa. Um autêntico terramoto.
Apesar da profundidade da mudança, a proposta é apresentada no fim de julho, para ser debatida durante as férias e a campanha autárquica e com o propósito provável de estar fechada antes do Orçamento de Estado. A AD, com a ajuda do Chega e da IL, não pretende dar tempo e espaço à reação dos sindicatos. Quer aproveitar a oportunidade histórica que as ultimas eleições lhe ofereceram. É de esperar, aliás, que depois de chegar às associações patronais a coisa ainda piore um pouco mais.
O caso mais falado tem sido o luto gestacional, talvez por ser tão chocante. O Ministério andou às voltas com justificações, tentando que a miséria humana fosse menos evidente, mas a verdade é que o pai perde, num momento tão traumático, a remuneração pelos dias que falta. Mas deixem-me que escolha alguns exemplos um pouco mais estruturais, para se perceber para que lado se inclina quase tudo o que é apresentado.
Na exposição de motivos da proposta, promete-se “o fomento e dinamização da contratação coletiva, o combate à precariedade laboral e, ainda, uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e privada e a vida profissional”. É extraordinário, por ser tudo ao contrário. Mas a novilíngua é a maior arte deste governo.
Isolar o trabalhador
Falemos da contratação coletiva. No que toca à caducidade das convenções coletivas, o poder volta para as mãos dos patrões. Os incentivos para uma negociação equilibrada desaparecem com a eliminação do sistema de arbitragens criado na última revisão laboral para limitar o uso da caducidade pelos patrões. A possibilidade do seu uso arbitrário como pressão para a abdicação negocial regressa em força.
“Remissão abdicativa” significa que o patrão, na hora da despedida e de pagar o que deve ao trabalhador (indemnização, férias, subsídios, créditos de formação, etc.) exige que este, num momento de aflição, aceite as suas contas como condição para receber o dinheiro, abdicando por escrito de quaisquer créditos em falta a que tenha direito. Uma das medidas mais emblemáticas da Agenda do Trabalho Digno foi eliminar esta disposição que facilitava a chantagem patronal, assegurando que o trabalhador não perderia os direitos por qualquer declaração que assinasse no acto do despedimento, excepto por acordo em tribunal. Agora, querem voltar atrás e repor a remissão abdicativa, deixando o trabalhador desprotegido perante a pressão para abdicar de tudo na hora de receber a indemnização.
Outra mudança introduzida na Agenda do Trabalho Digno e que irritara muito as associações patronais e a ministra enquanto juslaboralista fora a proibição de recorrer ao outsourcing para substituir trabalhadores, nos doze meses seguintes, que tivessem sido afastados por despedimento coletivo ou extinção de posto de trabalho. Irritou tanto que a Provedora de Justiça (atual ministra da Administração Interna) recorreu ao Tribunal Constitucional, sem sucesso. Mesmo depois de um acórdão histórico e recente que vale a pena ler, pela sua clareza, também querem revogar esta norma.
Outra alteração para pior é no núcleo reduzido de matérias que o Código de Trabalho ainda sujeita ao princípio do tratamento mais favorável, ou seja, em que nenhuma negociação colectiva pode impor condições menos favoráveis ao trabalhador do que os direitos estabelecidos na lei. Agora, querem retirar do âmbito de aplicação deste princípio o teletrabalho e o trabalho suplementar, abrindo campo aos abusos patronais e à imposição de condições abaixo da lei.
Mais precários, mais explorados
Falemos do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Os bancos de horas podem ser acordados por negociação colectiva ou com um carácter grupal se aplicado a um grupo de trabalhadores de uma empresa (equipa, secção, unidade económica), desde que aprovado por referendo, tendo em conta as necessidades de produção e o direito ao descanso. Com eles, o período normal de trabalho pode ser aumentado dentro de certos limites, e as horas a mais compensadas com redução equivalente do tempo de trabalho, mais férias ou dinheiro. Os bancos de horas individuais, ou seja, por acordo directo entre trabalhador e patrão, estavam eliminados desde 2019. Regressam agora na proposta do Governo, como os patrões também exigiam.
Falemos de combate à precariedade. Os prestadores de serviços, muitos deles falsos “recibos verdes”, eram considerados “trabalhadores independentes economicamente dependentes” se tivessem pelo menos metade dos rendimentos anuais vindos da mesma empresa, o que lhes assegurava mais direitos laborais. Agora, o limite passa para 80%, reduzindo significativamente o universo dos trabalhadores protegidos.
Quanto aos trabalhadores das plataformas digitais, a proposta implica o desmantelamento quase completo do sistema de protecção legal criado na revisão de 2023, revogando quase todo o extenso e conhecido artigo que regulava a presunção de laboralidade, ou seja, a existência de um contrato de trabalho com maiores direitos em comparação com o regime precário da prestação de serviços. A proposta torna muito mais difícil a verificação desta presunção. Boa notícia para as plataformas digitais, péssima para os trabalhadores. As Uber desta vida levam a melhor, depois de muito lóbi e pressão.
Quanto aos contratos a prazo, o primeiro contrato, renovável, podrá durar um ano, quando actualmente não pode exceder seis meses. A duração máxima acumulada dos contratos a termo certo passa a ser de três anos, em vez dos dois actuais e, no caso dos contratos a termo incerto, o limite máximo passa de quatro para cinco anos. Uma das poucas melhorias claras nas condições de trabalho, na última década, foi a redução da precariedade, num dos países com mais precários na Europa. Atirado para o lixo.
A proposta do governo também acaba com a criminalização do trabalho não declarado, o que tem, por exemplo, forte incidência no trabalho doméstico, onde se verificaram, a partir da revisão de 2023, dezenas de milhar de inscrições na Segurança Social. É mais um estímulo ao trabalho dito "informal". A proposta revoga a norma do regime geral das infracções tributárias que desde a revisão de 2023 obrigava os empregadores a comunicarem à Segurança Social a admissão de trabalhadores no prazo de seis meses, sob pena de serem punidos com prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. Um dos vetores centrais desta contrarreforma é um mundo do trabalho precário, de prestadores de serviços, de contratados a termo e de trabalho clandestino, sendo o contrato de trabalho permanente e com direitos um anacronismo que não cabe nesta visão "modernizadora" para o retrocesso.
Tudo para o mesmo lado
Deixo de fora as propostas restritivas do direito de greve e da ação sindical nas empresas, tão populares em quem não percebe que é por fraqueza crescente dos sindicatos que os trabalhadores têm perdido direitos a cada década que passa. Nunca ninguém ofereceu nada a quem não se organiza para exigir o que é seu.
Podemos concordar ou discordar de cada mudança. Mas é impossível não ver que quem deveria governar para todos se empenha em desequilibrar a balança sempre para o mesmo lado. Avisei, desde o primeiro dia do governo anterior, que esta ministra tinha uma agenda radical. O seu trabalho académico era conhecido e não surpreende ninguém. É competente? Sim. A questão é ao serviço de quem está, em exclusivo, a sua competência.
Num país que assiste à fuga de trabalhadores para o exterior, por estarem fartos de salários baixos, ambientes tóxicos e ausência de qualquer horizonte de carreira, o programa desta ministra é mais uma desistência de futuro. A que chama, porque o recuo tem de parecer moderno, “Trabalho XXI”.
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