quinta-feira, 24 de março de 2011

A “esquerda” que se sujeita e a direita que mente


Parece-me que ganhamos alguma coisa se olharmos para a nossa crise política como resultado e início de uma nova fase, directamente política, da (Des)união Europeia em construção.

De Maastricht a Lisboa, a União Europeia trancou-se numa constituição e em tratados internacionais que procuravam tornar praticamente inviável qualquer alternativa que não seja a que “os mercados globais” determinam. A intenção era exactamente essa. Se alguma coisa caracteriza o liberalismo bastardo dos nossos dias é precisamente o seu desdém pela democracia e o propósito confessado de “libertar a economia” da política. Sabemos aonde isso nos levou, mas não aprendemos, ainda.

Paradoxalmente, essa arquitectura constitucional foi desenhada com a activa participação, quando não com o entusiasmo, da social-democracia europeia. Muitos socialistas portugueses dizem hoje reconhecer e lamentar essa deriva neoliberal da social-democracia.

O nó górdio da camisa de onze varas europeia situa-se na total dependência dos estados quanto às suas necessidades de financiamento das mega-instituições financeiras chamadas mercados (bancos e fundos de investimento). A mentira mais bem sucedida dos nossos dias condensa-se numa frase: “o dinheiro não cai do céu”. É verdade que para as famílias e para cada um de nós “o dinheiro não cai do céu”, mas na realidade o dinheiro cai do céu para os bancos: ele é criado pelos bancos, em última análise pelos bancos centrais. Acontece que os tratados, contrariamente ao que sucede por exemplo nos EUA, impedem o Banco Central Europeu de financiar os estados directamente, deixando-os entregues às instituições financeiras que por sua vez são generosamente financiadas pelo BCE para adquirir títulos de dívida soberana que depois o BCE recompra (nos mercados secundários) ou aceita como garantia de novos créditos. A ideia é simples: sujeitar os estados à “disciplina dos mercados” que é o mesmo que dizer impedir os estados de disciplinar os mercados.

Quando a crise bancária e a recessão chegou à Europa o dinheiro caiu do céu a rodos sobre os bancos, os “estabilizadores automáticos” dispararam, pacotes de estímulo orçamental foram adoptados, e as despesas e as dívidas públicas aumentaram, como não podia deixar de ser. Tudo isto foi decidido em cimeiras do G20 e da União Europeia e estaríamos bem pior se não tivesse sido, não exactamente assim, mas parecido.

Mas, ao primeiro sinal vindo da Grécia de que “os mercados” estavam relutantes em financiar os estados, e à falta de uma alternativa que os permitisse substituir, a “disciplina dos mercados” impôs-se ao bom senso e a Europa iniciou a viragem austeritária. A UE tirou o tapete aos estados endividados e os mais pequenos e vulneráveis (nem sempre os mais endividados) ficaram com a batata quente nas mãos. Agora, contrariada, a EU reinterpretava os tratados para permitir que o BCE comprasse dívida pública aos bancos e para providenciar a “ajuda” aos estados falidos. Mas, sob o signo da austeridade, a “ajuda” prestada à Grécia e à Irlanda veio a revelar-se letal.

É claro que se a camisa de onze varas não fosse o que é teria havido outro caminho: políticas orçamentais e monetárias amigas da recuperação, investimento público, até que os níveis de desemprego dessem sinais de abrandamento e a redução dos défices e da dívida pudessem ter lugar sem nova recessão. Agora todos sabemos, incluindo os nossos austeritários sem vergonha, que não há solução para a dívida que não passe pelo crescimento e que não há crescimento com esta dose austeritária.

O austeritarismo é na realidade todo um programa de destruição dos serviços públicos, dos direitos laborais, do Estado Social e a crise a oportunidade para o executar. É um programa incompatível com os valores mais básicos da esquerda, de que nenhuma força política de esquerda, ou vagamente de esquerda, pode ser executante sem que com isso se suicide. É também um programa que violenta algumas das aspirações mais sentidas da maioria dos europeus que nenhuma força política de direita pode assumir sem que com isso perca a menor das hipóteses de vir a governar em democracia.

Em resumo, o austeritarismo – o programa político que “os mercados globais” determinam – condena à morte qualquer “esquerda” que a ele se queira submeter e obriga a direita a ocultar as suas intenções sob uma retórica justicialista ou nacionalista. Forçados a “escolher” entre uma “esquerda” que se sujeita “aos mercados” (e não os sujeita) e uma direita hipócrita, só podemos desesperar da política. A “esquerda” que se sujeita afunda-se para ser substituída pela direita que mente enquanto a mentira não se torna patente para voltar a “esquerda” que se sujeita com promessas que não pode, ou nem mesmo quer, cumprir. O tempo político comprime-se. Os ciclos políticos tornam-se cada vez mais curtos. Isto é aquilo a que deveremos talvez chamar ingovernabilidade.

Os chamados países periféricos da zona euro (e com eles toda a União Europeia) estão a ser empurrados para um trilema: ou se deixam transformar em protectorados com “governos” de turno efémeros, de direita ou de “esquerda”, a executar o programa austeritário até que a recessão, a divergência e a bancarrota os separe do continente; ou partem eles próprios à aventura; ou não se sujeitam e, coordenadamente entre eles e com outras esquerdas europeias que não se sujeitam, conseguem inflectir o rumo suicidário que foi imposto à Europa.

Por mim prefiro a reconstrução europeia e uma esquerda que não se sujeite em Portugal e que dê prioridade à construção de uma esquerda europeia que não se sujeita, representando-a em Portugal. Uma esquerda que tenha a sabedoria necessária para evitar as recriminações contra os que têm tido a coragem e a energia de dar o melhor de si e seja capaz de nos oferecer um lugar político abrangente e suficientemente poderoso para além da “esquerda” que se sujeita e da direita que mente.

15 comentários:

Diogo disse...

«Forçados a “escolher” entre uma “esquerda” que se sujeita “aos mercados” (e não os sujeita) e uma direita hipócrita, só podemos desesperar da política»


A "esquerda" e a "direita" constituem os dois braços de um mesmo poder: o poder financeiro. Este, dá-nos sempre duas "alternativas" para que tenhamos a ilusão de escolher em "liberdade" e sentir que vivemos em "democracia". É tudo uma enorme mentira.

João Carlos Graça disse...

Caro José Maria
De acordo no essencial. Com um corolário importante: a "UE" realmente existente não pode ser senão aquilo que é. Foi desenhada e foi parida precisamente para isso mesmo. Não é defeito, é feitio. Assunções de base: estabilidade dos preços über alles, primado da sacrossanta concorrência, pressões organizadas para a baixa dos salários através de "guerra de todos contra todos" dos assalariados, etc. No desenho propriamente político: irresponsabilidade do BCE, irresponsabilidade da CE face ao PE (que é, confessemo-lo, a folha de parra de pseudo-pudor, ou de hipocrisia, que não chega a tapar a falta de democraticidade do conjunto da "coisa"), quase-irrelevância orçamental da CE face aos governos nacionais, primado das jogadas diplomáticas de bastidores, ausência de um verdadeiro debate político europeu enquanto tal e por aí fora.
O pior dos cegos é, diz-se, o que não quer ver. Os cristãos chamam a isso, creio, "pecado da soberba"; os gregos antigos chamavam-lhe "hubris". A obsessão de "partidos únicos à esquerda" dos partidos da área do PS fez que eles: 1) não sejam únicos, 2) sejam cada vez menos verdadeiros partidos (muito mais networks clientelares...) e 3) decididamente não sejam - de todo em todo não sejam - de esquerda.
A situação é quanto a isso tão patética que opiniões sensatas e intelectualmente probas acabam por ser, hoje em dia, mais fáceis de encontrar em certos ambientes oficialmente de direita do que por essas paragens. Deixo-te aliás aqui um exemplo, sugerido por smithianos "libertários", a propósito da possível saída do Euro e da partida "à aventura", que até tu me parece neste momento temeres:
http://www.adamsmith.org/think-piece/economy/how-ireland-can-leave-the-euro/
Ah, sim, e em matéria de alinhamentos políticos e de diálogos, se me permites, uma sugestão: sim, de todo em todo sim, a acordos prévios BE-PC (se não houver isso, de resto, o PS vai continuar a tentar - e por vezes conseguir - cooptar sectores de cada um deles à vez...). Daí partir-se-á depois, se houver sucesso nessa "pré-eliminatória", para um "diálogo" com o PS, claro, ou aliás com quem na área do "pântano central" se mostrar sensato. Ah, mas se esses sinais acabarem por vir do lado do PSD, não te admires. Considera por favor o site "smithiano" que te deixei.
Saudações cordiais e votos do melhor.

João Carlos Graça disse...

Caro José Maria
De acordo no essencial. Com um corolário importante: a "UE" realmente existente não pode ser senão aquilo que é. Foi desenhada e foi parida precisamente para isso mesmo. Não é defeito, é feitio. Assunções de base: estabilidade dos preços über alles, primado da sacrossanta "concorrência", pressões para a baixa dos rendimentos do trabalho através da "guerra de todos contra todos" dos assalariados, etc. No desenho propriamente político: irresponsabilidade do BCE, irresponsabilidade da CE face ao PE (que é, reconheçamo-lo, a folha de parra de pseudo-pudor, ou de hipocrisia, que não chega para esconder a falta de democraticidade do conjunto da “coisa”), quase-irrelevância orçamental da CE face aos governos nacionais, precedência absoluta das jogadas diplomáticas de bastidores, ausência de um verdadeiro debate político europeu enquanto tal, e por aí fora.
O pior dos cegos é, diz-se, o que não quer ver. Os cristãos chamam a isso, creio, "pecado da soberba"; os gregos antigos chamavam-lhe "hubris". A obsessão de "partidos únicos à esquerda" dos partidos da área do PS fez que eles: 1) não sejam únicos, 2) sejam cada vez menos partidos, muito mais “networks” clientelares... e 3) decididamente não sejam - de todo em todo não sejam - de esquerda.
A situação é quanto a isso tão patética que opiniões sensatas e intelectualmente probas são, hoje em dia, mais fáceis de encontrar em certos ambientes oficialmente de direita do que por essas paragens. Fica aqui aliás um exemplo, sugerido por smithianos "libertários", a propósito da possível saída do Euro e da partida "à aventura" que até tu me parece neste momento temeres:
http://www.adamsmith.org/think-piece/economy/how-ireland-can-leave-the-euro/
Ah, sim, e quanto a alinhamentos políticos, se me permites, uma sugestão: sim, claro que sim, a entendimentos prévios BE-PC. Se isso não acontecer, de resto, se essa “frente comum” não emergir, parece-me ficarem ambos condenados a fornecer espaço de manobra às operações de cooptação parcial que o PS não deixará de tentar com ambos. Depois disso (se se passar nessa espécie de “pré-eliminatória”), “diálogo” com PS, claro, e aliás com toda a gente da área do “pântano central”… Mas se reacções de sensatez e de realismo acabarem por surgir primeiro do lado do PSD, não te admires. Considera o site que acima te sugeri.
Saudações cordiais e votos do melhor.

TG disse...

Tremendamente bem escrito, mas e soluções? Está tudo mal segundo o autor do texto, mas como podemos mudar? Nunca serei de esquerda,aliás sou sem reservas do CDS-PP, mas neste momento discutir esquerda ou direita pouco me importa, importa Portugal. Logo, pergunto, e soluções? Porque só dizer mal tb o meu irmão de 9 anos diz!

andré disse...

concordo inteiramente.

era essa a esquerda que queria, mas não é essa a esquerda que vejo.

e escapa-me como há duas coisas que surgem fora do debate:

1. que a solução política de uma europa unida vai muito para lá da economia. é antes de mais uma almofada de conflitos.

2. as duas grandes guerras começaram na europa do centro-leste. se uma união europeia (com minusculas pq não falo deste edifício institucional especificamente) cai, a coisa complica-se novamente para aqueles lados.

3. uma solução como a proposta no post é a ideal. não entendo como não se fala dos partidos europeus em todo este debate e ainda bem que isso veio aqui ao de cima.

andré disse...

já agora, o 3º ponto estaria em cima, antes dos outros dois. peço desculpa por não ter revisto logo.

Anónimo disse...

Deixo aqui um repto a João Carlos Graça e ao autor do artigo: Se os países do Sul propuseram a sua saído do euro segu do ukm modelo semelhante ao concebido por Sapir a Alemanha at´agradece. Quem é que não deseja e por quê? Em primeiro lugar Papandreou e Trichet. E muitos mais? Alguém mes expliva isto? Não me parece grande mistério. As "elistes alemãs" não precisam de nós para nada. A patranha do made in Germany já não pega. Nós não vamos pagar o que compramos e eles já sabem disso.


Jorge Rocha

Anónimo disse...

Lula faz parte dessa esquerda que se agachou aos mercados? Bem me parecia o biltre...

Miguel Fabiana disse...

Caro José Castro Caldas,

Estendo aqui o meu protesto/reclamação que já tive a oportunidade de partilhar com o Jorge Bateira.

Só é pena que tenhamos que bater tão fundo (e ainda não batemos NO fundo) para nos lembrarmos que afinal TODAS as Esquerdas PODEM e DEVEM unir-se em torno de uma causa nobre e milenar: PORTUGAL.

Respondia-me o José Manuel Pureza, à minha proposta de união da Esquerda Portuguesa: "alimentar equívocos é o pior que podemos fazer para combater o rotativismo ao centro."Unidade à esquerda", "construção de um pólo eleitoral à esquerda" - eis o vosso desafio. Vou a ele com frontalidade. Para vos dizer que o que importa é a identificação de orientações políticas de fundo para o país - no emprego, na garantia de uma efectiva universalidade dos serviços públicos, nas prioridades para as políticas orçamentais, na adopção de uma reforma fiscal orientada para a justiça e para a responsabilização dos sempre beneficiados, no combate eficaz à precariedade e aos falsos recibos verdes. É na convergência em torno de opções sobre isto que se construirá (ou não) uma governação de esquerda. Somas de siglas sem clareza programática são um embuste".

Como é óbvio, não vou responder agora e aqui a estas afirmações do José Manuel Pureza, mas elas são, para mim, o exemplo daquilo que é a preocupação em determinar e afirmar o que "separa" as várias esquerdas Portuguesas em vez da procura daquilo que DEVE UNIR TODA a Esquerda Portuguesa: Portugal.

Diz a história e validam os factos históricos que um dia o PCP "recomendou" o voto, numas eleições Presidenciais, no Mário Soares...

A Esquerda Portuguesa vai assistir impávida e serena, lavando as mãos como Pôncio Pilatos, á união da Direita naquele que é o maior ataque da história dos direitos do Trabalho, dos últimos 50 anos?!?!?

É tão cínico e hipócrita aquilo que une a Direita parlamentar como é aquilo que separa TODA a Esquerda Portuguesa!!!

A Liderança da actual política Portuguesa está cheia de egos mitómanos self-narcísicos!

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