segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Inimaginável

Imagine viver num mundo onde pode ser preso ou suspenso por dizer não mate crianças, porque dizê-lo pode ofender os sentimentos dos assassinos.

Foi publicada uma lista de dezenas de milhares de mortos, com nome, género, idade e identificação. As 14 primeiras páginas são de bebés com menos de um ano. O mínimo que podemos fazer é continuar a falar sobre o genocídio na Palestina. O colonialismo sionista tem de ser denunciado e relações com Israel têm de ser cortadas. 

Se este país tivesse uma elite do poder que se desse ao respeito, já tinha reconhecido o Estado palestiniano e expulso o embaixador de Israel por interferência na vida nacional e apoio ao genocídio. Ao invés, tem uma elitita cheia de cumplicidades e de duplicidades, função de uma linha de cor e de uma linha de classe. Basta aliás comparar, uma disciplina essencial na avaliação política.

domingo, 15 de setembro de 2024

Cantigas de embalar


Assinalando o 45º aniversário do Serviço Nacional de Saúde, Luís Montenegro envereda pela habitual conversa da direita, destinada a criar uma cortina de fumo que disfarce os objetivos de sempre: privatizar o SNS e promover o mercado da doença. Na lógica de um sistema de saúde - e não de um serviço público - que integra e financia os privados, o Primeiro-Ministro diz que «a saúde não se gere com preconceitos ideológicos», como se a sua visão de negócio para o setor, contrária aos princípios da provisão pública, não fosse por demais ideológica.

Nada mudou, portanto, num partido que - ao lado do CDS - votou contra a criação do SNS em 1979, e que, vinte anos depois, substituiu a consagração, na Constituição, do direito «universal, geral e gratuito» à saúde, por um acesso «tendencialmente gratuito». E que, na proposta de revisão constitucional de 2021 pretendia, num quadro de garantia minimalista, que o acesso a cuidados não pudesse «ser recusado por falta de meios económicos». Ou seja, começando a abrir a porta ao pagamento pelo utilizador, nos restantes casos.

É este o mesmo PSD que agora - no governo com o CDS - tem em curso um plano dito de emergência, mas que é, na verdade, de transformação da saúde, com uma abertura sem precedentes ao setor privado e que desinveste no SNS e nos seus profissionais. Plano em que a AD se prepara, por exemplo, para financiar com dinheiros públicos centros de saúde de gestão privada, concedendo-lhes um grau de autonomia que nega às unidades do serviço público. «Preconceitos ideológicos»? Sem tudo aquilo a que Montenegro chama de preconceitos ideológicos, o SNS e as suas conquistas nunca teriam visto a luz do dia.

Incentivos sem equívocos


Pedro Adão e Silva continua sem escrever sobre o genocídio perpetrado por Israel, com apoio dos EUA e da UE. As preferências revelam-se na escolha e os valores também.

Em coerência, dedica-se agora à modalidade preferida de antigos ministros do PS que prosperam na enviesada comunicação social: tentar puxar o partido cada vez mais para a direita, desta vez deixando ao Chega a tarefa de ajudar neste puxão. Agiganta um partido em queda neste momento.

Sérgio Sousa Pinto mostra, aliás, que nem sequer é preciso ser antigo ministro, nem sequer é preciso ter feito alguma coisa de jeito na vida. Basta ser de direita no PS e mal-educado. Apoiar o genocídio, com drinks de fim de tarde na embaixada israelita e tudo, não desajuda, imagino.

Influenciado pelo institucionalismo da escolha racional,  o politólogo Adão e Silva, vários furos acima de Pinto, sabe que o fundamental são os “incentivos”, como gosta tanto de dizer. O uso generalizado desta palavra é aliás todo um programa ideológico.

Entretanto, Carmo Afonso faz mesmo falta.

sábado, 14 de setembro de 2024

Pensar, sentir as pedras, atravessar os rios


Daniel Oliveira assinalou que “o mais brilhante dos libertadores faria hoje 100 anos”. Sem acesso a um brilhantómetro, creio que Cabral foi um dos mais importantes “marxistas orientais”, tragicamente assassinado antes de ter desenvolvido decisivamente a hercúlea tarefa de construção do Estado nacional, rumo ao socialismo. 

Permitam-me um momento de cinismo, nem sou dado a esta atitude: num certo pós-pós-marxismo, nada faz mais por uma reputação do que uma morte tragicamente precoce – Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, Amílcar Cabral... 

Pela minha parte, estes três pensadores-heróis, cada um à sua maneira, estão sempre na lista de leituras marxistas, ajudando a pensar. Mas confesso que tenho cada vez mais interesse pelos pensadores ainda mais malditos, os que tiveram mesmo que (re)construir um Estado nas mais duras condições, como as que os comunistas têm de enfrentar hoje em dia na Cuba sob bloqueio. 

Gosto mais do Lénine depois de 1917 do que do Lénine com ilusões, ainda que revolucionariamente produtivas, de O Estado e a Revolução, aprecio em particular o Lénine da NEP, do capitalismo de Estado, do socialismo com mercados, do diagnóstico de uma doença infantil, o esquerdismo. Dei algumas voltas políticas, mas estive sempre com o Nikolai Ivánovitch Bukhárine que é dado a ver pelo seu biógrafo norte-americano.

Gosto de pensar com Deng Xiaoping, com os que tiveram de enfrentar escolhas trágicas, definindo novos critérios e forjando novas distinções, tomando, por exemplo, “o desenvolvimento como o duro teste”, sobrevivendo e florescendo em tempos impossíveis e deixando, com o seus erros e acertos espetaculares, ensinamentos “práticos” de altíssimo valor “teórico”.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Alguém avise, por favor, o Dr. Marques Mendes...


... que foi induzido em erro, divulgando inadvertidamente números falsos, oriundos do atual Ministério da Educação. No seu espaço de comentário semanal, como já assinalado aqui, apresentou um gráfico em que era revisto, pela atual tutela, o número de alunos que iniciou o ano letivo anterior sem professor a uma disciplina (de cerca de 80 mil para uns exorbitantes 324 mil), estimando que no presente ano letivo esse valor caísse para 223 mil alunos, o que permitiria ao governo falar numa redução de 31% dos alunos sem aulas face a 2023.

Sucede que, na sequência da audição do ex-ministro João Costa, o Polígrafo debruçou-se sobre o assunto, constatando que a atual equipa governativa «deu voltas e voltas ao número» (os tais 324 mil que constam do «Plano +Aulas +Sucesso»), na tentativa de o justificar. Afinal, em vez de contabilizar os alunos sem aulas a uma disciplina no início do ano letivo, o valor representaria, segundo a tutela, a «soma de todos os alunos que, em algum momento do mês de setembro, se encontraram nesta condição». Consultando os registos da DGEstE, relativos a três momentos de aferição do problema, o Polígrafo concluiu que o ministério continuou a incluir nas contas alunos cuja situação já estava resolvida, contabilizando-os «três vezes» e empolando, assim, o resultado final, classificado como falso pelo Polígrafo.

Preparava-se pois o Governo, recorrendo a um exercício de contabilidade criativa (fica por explicar, aliás, como chegou à previsão de 223 mil alunos sem aulas a uma disciplina no presente ano letivo), para dizer que, graças ao seu plano, a questão da falta de professores tinha melhorado face ao ano letivo anterior, contrariando dados que dão nota de um agravamento da situação. Tudo a fazer lembrar, portanto, a idêntica fabricação de ilusões e criação de falsas expetativas na saúde, em que a respetiva ministra foi obrigada pela realidade a reconhecer, eufemisticamente, que «nem tudo correu bem».

Na mesma linha, faria bem Fernando Alexandre em reconhecer o erro, em vez de dizer, como hoje na visita a uma escola (cito de memória), que independentemente do valor em causa, a situação é gravíssima, continuando assim a insistir na ideia, também ela falsa, de que foi o primeiro governante a identificar o problema. Não foi.

Texto da luta


Para os movimentos de libertação nacional, cuja tarefa é fazer a revolução, modificando radicalmente, pelas vias mais adequadas, a situação económica, política, social e cultural dos seus povos, o pensamento e a acção de Lénine têm um interesse especial (...) Lénine deu uma lição muito útil aos movimentos de libertação, aos combatentes da liberdade. Tinha uma nítida consciência do valor da unidade como meio necessário para a luta, mas não como um fim em si. Para Lénine, não se trata de unir todos em torno da mesma causa, por mais justa que ela seja, de realizar a unidade absoluta, de unir-se não importa com quem. A unidade, como qualquer outra realidade, está sujeita às transformações quantitativas, positivas ou negativas. A questão é descobrir qual é o grau de unidade suficiente que pode permitir o desencadear e garantir o avanço vitorioso da luta. E, posteriormente, preservar essa unidade contra todos os factores de dissolução ou divisão, tanto internos como externos.

Excertos do sábio discurso de Amílcar Cabral, em 1970, no centenário de Lénine, na URSS. Acho que acompanha bem a divulgação do lançamento do livro das Edições Avante! que se realiza hoje em Coimbra, no âmbito das magníficas comemorações do centenário. Sim, há mesmo quem insista em levar Cabral a sério. E que grande contraste ético-político com certas e desmemoriadas assinaturas...

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

OE 2025: Quanto do nosso dinheiro, afinal, podemos usar?

Em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, cifrou-se em 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 pontos percentuais. 

Em 2024, se as provisões disponíveis na Ameco se concretizarem, aquela diferença será ainda de 6,2 pontos percentuais. 

No período 1995-2024, nos últimos 29 anos, apenas em 3 anos, a despesa pública em % do PIB foi em Portugal mais elevada do que na zona euro. Em 2010 mais 0,9%, em 2011 mais 0,4% e em 2014, ano em que a direita governava, mais 2,1%. 

No que diz respeito a despesa pública com investimento, desde 2012 que esta é menor em Portugal, tendo esta divergência atingido o seu pico em 2016, ano em que o investimento público em Portugal foi apenas cerca de metade do realizado na zona euro. 


Para 2025, segundo o Expresso, o governo prevê um crescimento da despesa pública total de 4%. Assim sendo, se se realizar a previsão relativamente ao andamento do PIB disponibilizada pela Ameco e, por isso, se em 2025 o PIB nominal crescer cerca de 4%, isto significará que no próximo orçamento o peso da despesa no PIB não se alterará.

Uma despesa pública em % do PIB que será em 2024, confirmando-se as previsões, mais de 6% menor em Portugal do que na Zona Euro e que em 2025, com todas as carências que o país tem, não crescerá. 

Nada disto impede a Iniciativa Liberal (IL) de vir afirmar que Portugal “tem uma despesa demasiado elevada”. Demasiado elevada relativamente a quê? - Pergunto-me. 

E, claro, como a ‘literacia financeira’ da IL não deve permitir-lhes compreender que a poupança resulta do investimento – e não o contrário -, nem uma palavrinha para o facto das despesas públicas de investimento em % do PIB serem em Portugal, desde 2012, inferiores às da Zona Euro. 

Acresce que esta conclusão da IL surge num momento em que ainda não se conhece o orçamento, dado que a arbitrária e pós democrática Comissão Europeia, segundo (outra vez, link anterior) o Expresso, ainda não se dignou a informar-nos de quanto do nosso dinheiro, afinal, nos autoriza usar. Desconhecimento que a IL prontamente aproveitou para mostrar, como dizia Pedro Pratas, a sua ignorância, ou a sua desonestidade, ou (quem sabe?) as duas. 

De resto, como dizíamos aqui, se é certo que, quando a encenação acabar, saberemos, finalmente, que orçamento nos foi autorizado, não o é menos que nunca saberemos que pressupostos (crescimento de PIB e taxa de juro) usou a Comissão para chegar ao ditame. É segredo. Por design. O que devia ser inaceitável para um país que estime a sua soberania, para uma democracia que não seja um simulacro.

De facto, por que razão havia de se permitir o escrutínio nacional e democrático das arbitrárias imposições de uma instituição supranacional com legitimidade indirecta e viés neoliberal se podemos escudar-nos na ideia, obviamente enganosa, de que se trata de pressupostos técnicos para os quais não há alternativa?

Como diria o outro, enfim. Tudo isto aponta simbolicamente para aquilo que bem poderia ser um provérbio liberal: No cair das pontes é que está o ganho

No fim, o neoliberalismo, sendo uma distopia desumana, não passará. 

Tempos perigosos

 
O perigo ameaça tanto o corpo da tradição como aqueles que a recebem. Para ambos, esse perigo é só um: o de nos transformarmos em instrumentos das classes dominantes. Cada época deve arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para a dominar (...) Só terá o dom de atiçar no passado a centelha de esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. 

Walter Benjamin, “Sobre o Conceito da História” [1940], in O Anjo da História, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017, p. 11.   

Cabral sobrevive

Amílcar Cabral discursou no centenário de Lénine na URSS (roubado a Marcela Magalhães).

Pedro Delgado Alves e Fernanda Câncio são apoiantes do colonialismo sionista e contam-se entre os subscritores de um apoio a uma justa manifestação antirracista em memória de Amílcar Cabral. Também há nesse abaixo-assinado outros apoiantes da NATO e do imperialismo, mas prudentemente silenciosos em relação ao genocídio em curso na Palestina, com suporte dos EUA e da UE. 

Não imagino, nem me interessa, o que os terá levado a assinar. O que acho absolutamente incompreensível é alguém pedir a sua assinatura neste contexto, misturando-os com tanta gente boa. Política unitária não é isto.

O que vale é que sei que Amílcar Cabral sobrevive indomitamente a toda esta desmemória, até porque há quem o tenha acabado de editar, como as edições Avante!, e o leia e discuta, use e mobilize, hoje em dia.

Cabral inscreveu-se criativamente na tradição marxista-leninista, partindo da situação histórico-geográfica concreta que era a do seu povo e indo para lá dela, digamos. Isto foi precisamente sublinhado anteontem por Flávio Almada, numa oficina realizada no âmbito das celebrações do centenário, em Coimbra. 

Cabral morreu pela libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, nacionalista revolucionário que era, dando um contributo maior para a luta internacionalista contra o colonialismo e contra o imperialismo, logo contra o racismo. 

É o racismo que leva hoje à desvalorização das vidas palestinianas ou que serve para tentar dividir a classe trabalhadora desta semicolónia.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

As iniciativas liberais matam


Na primeira fila do Chile de Pinochet (quarto a contar da esquerda): “pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático a quem falte liberalismo”, disse F. A. Hayek (1899-1992) ao jornal chileno El Mercurio, em 1981, parte de uma longa e consistente intervenção a favor da ditadura neoliberal chilena. 

Chega, IL e -liberdade, de onde vieram governantes do PSD, filiam-se explicitamente nesta tradição de economia política, de eterna desconfiança em relação à democracia dita “ilimitada”.

Uma tradição que vem dos anos 1920, quando o neoliberalismo começa a ser forjado, em reação ao socialismo e à crise do liberalismo dito clássico. Hayek foi discípulo de Ludwig von Mises (1881-1973), embora tenha discretamente rompido com ele em questões teórico-metodológicas e de política pública (agenda e não-agenda do Estado, como disse na esteira de Bentham). 

Cada pensador tem o seu cunho, num feixe de ideias neoliberais em movimento, com o pluralismo necessário, como em qualquer ismo dinâmico, já o defendi em artigos académicos e em livro. Mises e Hayek partilham, no entanto, a mesma aversão às implicações socializantes da democracia militante e igualitária. Em 1927, no livro Liberalismo, Mises afirmou: 

“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história.”

Não são aberrações, são consistentes e pensados expedientes violentos de classe. Milton Friedman, defensor de Pinochet desde a primeira hora, alinhou pelo mesmo diapasão e os seus discípulos chilenos também, claro. As iniciativas liberais matam por ação e omissão. Repito o que escrevi há um ano.

O livro Pinochet’s Economists de Juan Gabriel Valdés é a história intelectual da formação da economia política neoliberal no Chile, do nascimento dos Chicago Boys, da formação doutoral bem financiada durante décadas no Departamento de Economia da Universidade de Chicago à transferência de homens armados com essa formação para o bem conectado Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

O programa económico neoliberal da ditadura militar, o “tijolo”, foi ali criado. Os quadros económicos da ditadura militar foram ali recrutados. Um dos personagens mais sinistros desta economia que matou chama-se Sergio de Castro, de professor a ministro, depois da “imensa alegria” de ver La Moneda ser bombardeada. Teve a imensa alegria de ser um a cortar as despesas de educação, de saúde ou de habitação em mais de 50% e de ver a economia a afundar 12% em 1975 e a colapsar ainda mais em 1982-1983. Em 1986, o PIB per capita chileno era ainda inferior ao do início da década anterior, como sublinha José Luís Fiori

Durante a ditadura, o emprego e o poder de compra dos salários nunca recuperaram da desvalorização social imposta a tiro. A ditadura teve de socializar as perdas dos bancos na crise dos anos 1980. A indústria também não recuperou. A pobreza chegou a atingir mais de metade dos chilenos e o Chile tornou-se um dos países mais desiguais do mundo. Houve uma maciça transferência de rendimentos do trabalho para o capital. 

As iniciativas liberais, que começaram na prática há cinquenta anos, matam. São um desastre para a grande maioria. E eles sabem isso, até porque trabalham para a minoria.

E como explicar isto?

No seu espaço de comentário semanal, Luís Marques Mendes apresentou um gráfico, com dados do Ministério da Educação, segundo o qual 223 mil alunos vão iniciar o próximo ano letivo sem aulas a uma disciplina. Um valor que reflete, alegadamente, uma redução de 31% face ao ano letivo anterior, quando eram cerca de 324 mil - de acordo com a atual tutela - os alunos que se encontravam nessa situação.

Sucede, porém, que à data (setembro de 2023), o governo do PS então em funções estimou que o número de alunos a iniciar o ano letivo sem professor a pelo menos uma disciplina rondaria os 80 mil. Ou seja, um valor substancialmente abaixo do agora estimado pelo atual governo, e que foi inscrito, de resto, no próprio «Plano +Aulas +Sucesso».

Sucede ainda, por outro lado, que os 324 mil alunos (em setembro de 2023), diferem também, e de forma igualmente muito significativa, de outras estimativas vindas a público. É o caso da insuspeita FENPROF, que estimou à data um valor de 92 mil alunos; do movimento Missão Escola Pública (120 mil alunos), ou do Expresso, que na edição da semana passada apontou para cerca de 137 mil alunos sem professor a pelo menos uma disciplina em 2023, revelador de um agravamento da situação, em 30%, no presente ano letivo.


Estamos pois, nestes casos, perante valores relativamente próximos (a oscilar entre 80 mil e 137 mil) e que contrastam de forma abissal com os 324 mil alunos que, segundo o atual governo, não tinham aulas a pelo menos uma disciplina no início do ano letivo anterior. Tal como estamos, também, perante estimativas de evolução de sentido contrário, em que apenas o governo prevê que o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desça (para 223 mil) no ano letivo que agora se inicia.

São, de facto, diferenças demasiado exorbitantes para que possam ser explicadas pela volatilidade dos dados, própria dos dias que antecedem o início de cada ano letivo. Ou seja, não sendo explicitados os critérios em que assentam os valores divulgados pela tutela, é legítimo pensar que o governo apenas pretendeu, num exercício de contabilidade criativa, inflacionar o número de alunos sem aulas em 2023, para agora poder dizer, recorrendo a esses números, que o seu plano funcionou.

¡Allende, presente! ¡Unidad Popular, ahora y siempre!


Trabajadores de mi Patria, tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo en el que la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor. 

¡Viva Chile! ¡Viva el pueblo! ¡Vivan los trabajadores! 

Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición.

Salvador Allende, Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O que dizer, o que fazer?


O que dizer do concerto de Sérgio Godinho, com Capicua, do passado sábado, na Festa do Avante!? Foi em crescendo, agarrando a multidão e fazendo dela, e com ela, coro. Sentem-se as décadas em cada fibra de Godinho, um orgulho, sente-se a bela passagem de testemunho para Capicua e para tantas outras. Sente-se que foi “o primeiro dia do resto da nossa vida”. Sentiu-se, sentir-se-á para todo o sempre. 


O que dizer da apresentação do livro Cinema e Dialética, de Sérgio Dias Branco? Talvez possa parafrasear o Padre António Vieira: compreendem-no os que não sabem e têm muito que compreender os que sabem. Um velho perguntou francamente: explicas-me isso da dialética? E ele explicou tão bem, mas tão bem. Os muitos jovens também ouviram, com toda a atenção. E “quem quer mandar uma mensagem não faz cinema, envia uma carta”: há mais, muito mais, para lá da mensagem na arte em movimento histórico, aprendi. 


O que dizer da feira do livro e do disco, da comida deliciosa nos pavilhões de Coimbra e da Madeira, das horas de conversa bem regada, dos encontros fraternos, das pessoas que já não via há décadas e que nem sempre reconheço à primeira, da memorável intervenção de Manuel Loff sobre política de memória de abril, das bancas da cidade internacional, onde não estamos sós, dos doces que esgotaram logo no meu turno em Coimbra, no final da Festa? “Lamento, mas já não temos o delicioso arroz doce”.


O que dizer, o que fazer? Sempre as mesmas questões. Haja esperança nas respostas da ação coletiva, deste coletivo, condição necessária, embora naturalmente não suficiente, para qualquer alternativa digna para este país. E, sim, precisamos de ir escrevendo um romance do comunismo em Portugal, talvez sem tantas mágoas, ao contrário do norte-americano. Afinal de contas, neste país houve uma revolução democrática e nacional.

Um jornal pelo jornalismo


Nas estruturas mais frágeis, onde não existem sequer as instâncias de auto-regulação capazes de oferecer alguma resistência e impor valores editoriais, como os conselhos de redacção ou uma massa crítica profissionalizada, multiplicam-se os atropelos éticos e a desfiguração do jornalismo atinge uma dimensão quase grotesca.

Carla Baptista, Tudo pelos «media», pouco pelo jornalismo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, setembro.  

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Para uma comunicação social

Festa do Avante! em destaque num jornal que não é público...

Pov: que grande comício, carago! Jornais nacionais: qual comício? As capas dos jornais diários de hoje demonstram bem o grau de desinformação a que estamos expostos. Este não é um problema "apenas" de informação, é do próprio regime democrático.

Infelizmente, a imprensa dominante já só pode ser designada de burguesa. Os proprietários dos meios de produção da informação controlam a linha editorial sem mediações, em parte devido à acentuada proletarização dos jornalistas, por via da precariedade e dos baixos salários. 

As desigualdades entre a correia de transmissão do patrão no topo e a base são avassaladoras, sem falar das “estrelas” que colaboram e que ganham mais do que muitos jornalistas somados. Enfim, a realidade tem mesmo um viés desgraçadamente marxista. 

Para contrariar este processo, e tal como noutras áreas decisivas da vida nacional, precisamos de mesmo de uma economia genuinamente mista, condição necessária para que a comunicação possa voltar a ser mais social e para que democracia possa avançar, como já defendi em polémica com Vital Moreira. 

Isto exige sindicatos fortes, nacionalizações e apoios públicos, mas, neste último caso, apenas a projetos cooperativos, ou seja, a projetos que reconheçam a importância do controlo pelos jornalistas do processo de produção da informação.  

Sentir a ação e a opção coletivas


A Festa! só nos faz sentir desta forma porque nela cabe tudo o que mais nos é significativo, tudo o que mais queremos: os afectos, os projectos, a gentileza pronta, a porta escancarada para a realidade de que é possível vivermos de olhos postos uns nos outros, de braços estendidos uns para os outros. Recomeçamos sempre mais prontos. Feliz ano novo!

Ou se está com os que querem aprofundar a política de direita e concluir o processo contra-revolucionário, ou se está com as forças de Abril e da Constituição. Ou se governa para a maioria, ou se está ao serviço de uma minoria que se apropria de grande parte da riqueza que é criada. É este o desafio mais importante e a opção que está colocada aos democratas e patriotas.

domingo, 8 de setembro de 2024

Ignorância ou desonestidade?

No quadro plurianual das despesas públicas apresentado pelo governo na passada sexta-feira pode-se ler que a receita prevista de impostos para 2025 seria de quase 294 mil milhões, um aumento de mais de 50 mil milhões e de 21% face a 2024. 

Quem conhece minimamente os dados económicos do país chegaria facilmente à conclusão de que estes valores não se poderiam referir exclusivamente a impostos (em contabilidade nacional os impostos cobrados em 2023 foram de cerca de 67 mil milhões e as contribuições para a segurança social 33 mil milhões). De facto, como mais tarde esclareceu o governo, estes valores incluem outras receitas assim como financiamento obtido por emissão de dívida pública. 
 
Perante estes dados, a iniciativa das liberdades censitárias reagiu da seguinte forma:


Das duas uma, ou o partido que faz dos impostos a questão central de praticamente toda a sua ação política não tem a mínima noção do seu tema de eleição ou então decidiu, conscientemente, cavalgar uma terminologia infeliz do governo para iludir os portugueses. Qualquer uma destas alternativas não surpreende.

Balanço de uma privatização em curso

Na passada semana, a ministra da Saúde deu uma conferência de imprensa para, alegadamente, proceder a um balanço da execução do plano da saúde. Mas mais que o plano e a sua execução, o momento terá servido sobretudo para tornar públicas duas medidas, manifestamente lesivas para o SNS (como Tiago Santos já aqui assinalou), que evidenciam o empenho do Governo na privatização do setor. Ou seja, o balanço do plano parece ter sido apenas um pretexto, uma espécie de papel de embrulho, para ofuscar o significado e alcance político dessas medidas.

Para esse objetivo, até a assunção, por parte da ministra, de que «nem tudo correu bem» - com apenas 8 das 15 medidas urgentes do plano concluídas nos três meses previstos - ajudou a dar um ar de boas intenções e a preparar o anúncio das tais boas notícias: a criação de 20 centros de saúde com gestão privada e financiamento público (aprovada no dia seguinte), e a atualização dos preços das ecografias obstétricas convencionadas com o setor privado.

No caso das ecografias pagas aos privados, estamos a falar de aumentos muito expressivos, como ilustra o gráfico seguinte: de 55€ por cada ecografia realizada no 1º e 3º trimestre da gravidez, e de cerca de 80€ por cada ecografia realizada no 2º trimestre. Globalmente, está em causa uma despesa a rondar os 3,6M€, que poderia e deveria ser investida no próprio SNS, capacitando-o e reforçando a sua autonomia na realização destes exames.


No caso dos 20 centros de saúde privados com financiamento público - já sintomaticamente saudada pelo presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (em linha com a satisfação do diretor executivo da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo, pelo aumento dos valores por turma nos Contratos de Associação) - a lógica é a mesma. Em vez de investir no SNS, o Governo paga com o dinheiro de todos o surgimento de novas unidades privadas, com a agravante de lhes oferecer condições de gestão que nega às unidades de saúde familiar públicas. Para além de, não menos grave, esta medida incentivar a entrada de médicos mais jovens no privado, em vez de os fixar e atrair para o serviço público de saúde.

É claro que a conversa para dissimular a «ida ao pote» (lembram-se?), e fazer da saúde um negócio patrocinado com recursos públicos, é a de sempre. Em vez de assumirem com clareza ao que vêm, argumentam, com a sonsice habitual, que o privado apenas está a complementar o serviço público e que o importante é assegurar o acesso à saúde, não importando quem presta os cuidados. Tudo isto enquanto se procede à transfega de recursos para os agentes privados, financiando a sua expansão, os seus lucros e a sua capacidade para ir buscar mais médicos e outros profisisonais ao SNS, deixando-o simplesmente definhar. Até que seja tarde demais.

sábado, 7 de setembro de 2024

Com drama


Carmo Afonso foi saneada da última página do Público. Era uma das cronistas mais populares e nenhuma explicação foi dada, logo a mais óbvia permanece. Foi substituída por Pedro Adão e Silva, mais conforme à sabedoria convencional, a que não passa sem verberar contra “o populismo”. Por exemplo, até na TAP conseguiu convocar umas supostas “instrumentalizações populistas desastrosas”, mas sem dizer quem, quando ou porquê. 

Mais importante, muito mais importante, desde que começou a escrever há meses na última página, Adão e Silva ainda não encontrou oportunidade para se debruçar sobre o genocídio em curso na Palestina, mas já escreveu várias vezes sobre Kamala Harris, incluindo sobre os seus gostos musicais. É uma das principais apoiantes do mortífero colonialismo sionista e já garantiu que vai persistir na linha de sempre dos EUA. 

Carmo Afonso escreveu no Público que “a desdramatização daquilo que é dramático é uma modalidade nacional”. É uma modalidade que Adão e Silva pratica, tal como o surf, sobre o qual de resto já escreveu bem. Será que Pedro Adão e Silva vai continuar a desdramatizar também pelo seu silêncio?

Era tudo tão simples, não era?


Tal como no Plano de Emergência da Saúde, apresentado em maio, com objetivos manifestamente irrealistas que criaram falsas expetativas (como o próprio Presidente da República viria a assinalar), também na educação, com o Plano +Aulas +Sucesso, o Governo nunca deixou de estar em campanha, fixando objetivos de credibilidade mais que duvidosa e alimentando assim, de novo, expetativas inverosímeis.

Concretamente, com as medidas do plano, o ministro Fernando Alexandre prometeu uma redução, até ao final do 1º período, «em pelo menos 90% do número de alunos sem aulas desde o início do ano letivo», e «todos os alunos sem interrupções prolongadas» no final do ano letivo. O que se sabe, neste momento, é que, apesar das medidas adotadas, a situação da falta de professores se agravou face ao ano letivo anterior. De acordo com o Expresso, a poucos dias do início das aulas, «há mais 30% de alunos com professores em falta».

Mas não se critique apenas a ambição irrealista do ministro da educação, quando é o próprio Primeiro-Ministro a ter que travar a fundo e inverter o que disse há um ano atrás, quando sugeriu que bastaria mudar de governo para que tudo se resolvesse. Agora, já assume não ser possível superar o problema de um dia para o outro, reconhecendo a sua natureza estrutural, para a qual contribuiu bastante, aliás, a redução de cerca de 30 mil professores no ensino público, da última vez que a direita esteve no governo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Não dar cavaco à saúde


Num daqueles alinhamentos cósmicos que nada deve ter de acidental, com o anúncio da criação de 20 Unidades de Saúde Familiar com gestão privada (USF-C) reaparece da penumbra de onde nunca deveria ter saído o grande representante da introdução do neoliberalismo tatcheriano em Portugal, Cavaco Silva.

Em mais um artigo miserável, Cavaco Silva, com a sua habitual cagança que manda os políticos meterem coisas na cabeça que apenas ele, o iluminado, pode ensinar, discorre sobre uma restrição orçamental do Estado que não é mais do que uma conta de um fraco merceeiro. Cavaco Silva dá mau nome à economia, mas isso já sabíamos.

Cavaco Silva interessa aqui por ser exatamente o representante do tal neoliberalismo que desemboca nas ditas USF-C.

Um dos discursos mais conhecidos de Margaret Thatcher, e mais repetido desde sempre pelos seus seguidores neoliberais, encaixa na perfeição com o artigo de Cavaco Silva:
«Não esqueçamos nunca esta verdade fundamental: o Estado não tem outra fonte de dinheiro que não seja o dinheiro ganho pelos próprios cidadãos. Se o Estado quiser gastar mais, só o pode fazer pedindo emprestado as suas poupanças ou cobrando-lhe mais impostos. Não vale a pena pensar que outra pessoa vai pagar - essa “outra pessoa” és tu. Não existe dinheiro público, existe apenas o dinheiro dos contribuintes.»
Esta passagem encarna a ideia de que o Estado não cria valor, o Estado apenas drena valor que é criado no setor privado, em particular pelos patrões que investem. Por isso, dizem-nos, é preciso retirar o Estado da economia e deixar florescer o empreendedorismo privado.

Depois surgem as Unidades de Saúde Familiar com gestão privada e uma pessoa percebe o paradoxo: quando são públicas não criam valor, são apenas um sorvedouro do dinheiro dos contribuintes. Ao tornarem-se privadas, passam a ser parte de um mercado e aí sim, é criar valor em barda. Percebemos que nesta mundividência, o valor é uma noção dependente do título de propriedade.

As faculdades de economia ajudam. Basta lembrar que a equação do produto é sempre apresentada como Y=C+I+G+E-I. O setor privado “investe”, mas o Estado “gasta”.

Se o Estado usar o seu dinheiro para criar, gerir e desenvolver a atividade das USF, é um gasto e como ensina Cavaco Silva, cuidado com os impostos. Se isto for entregue a um privado, vai aparecer nas revistas e jornais como uma nova oportunidade de negócio, pujante, com perspetivas de crescimento, CEO premiados pela sua visão, conferências cheias de glamour para apresentação das perspetivas futuras do setor e jornalistas babados com mais uma oportunidade de exploração para alimentar o nosso porno-riquismo.

Obviamente que “o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada aplaude com ênfase esta medida” e já esfrega as mãos enquanto diz que é “o início do caminho para a privatização” e que é “a primeira articulação entre o público e privado”. Já sabemos que antevê muito mais “oportunidades”.

Quem trabalha com a saúde pública numa ótica de prestação de cuidados a toda a população já apontou os problemas.

Constantino Sakellarides, talvez quem mais sabe de saúde pública neste país, aponta o óbvio: que se trata da abertura à privatização dos cuidados de saúde primários e que que estas USF-C vão retirar recursos ao SNS.

O presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), André Biscaia fala na "tentativa de privatização de uma área que tem estado sempre sob a esfera pública, com muito bons resultados".

Mas quem aponta mesmo melhor o paradoxo são o presidente e o vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, respetivamente, Nuno Jacinto e António Luz Pereira, que afirmam:
«nestas unidades vamos criar condições mais atrativas para os profissionais e equipas se fixarem…. Mas se assim é, a questão principal é a de perceber se temos capacidade para oferecer condições mais atrativas por que é que não o fazemos em relação às unidades atuais, aos profissionais que estão no SNS, por que não aplicamos esse modelo de financiamento de uma forma generalizada e vamos só aplicá-lo a unidades que são geridas pelo setor provado e social. É isto que nos gera muita confusão!»
«se é possível dar melhores condições, porque não dar essas mesmas condições aos profissionais que já estão atualmente no SNS e alargar as USF modelo B que já existem de forma a cobrir toda a população?»
Mas o que é que eles entendem disto? São médicos e estão preocupados em garantir que as famílias portuguesas têm todas cuidados de saúde de qualidade. Não entendem que apenas o setor privado cria valor. Não entendem que a saúde, provida para todos por um SNS gratuito, financiado por impostos, é um fardo para todos. Mas se for explorada por privados e der lucro, é criação de riqueza, é empreendedorismo, é iniciativa, é valor acrescentado.

Valha-nos Cavaco Silva para explicar.

Três dias


A Festa do Avante! começa hoje. Lembremos que é a festa do jornal que tem o recorde mundial na clandestinidade e que ainda hoje cobre, como nenhum outro, as lutas sociais de norte a sul do país. Pela minha independente parte, irei os três dias, comprei a EP, como costumo fazer. 

No sábado, pelas 10h, estarei no pavilhão de Coimbra a debater o futuro de Abril com Francisco Queirós. Pregaremos aos convertidos mais disciplinados, imagino, mas mesmo estes precisam de debater e de trocar argumentos, até para persuadir outros. 

No domingo, pela primeira vez neste milénio, farei um turno de trabalho na Festa, a vender doces típicos da minha região. Não há melhores. Não é preciso ser militante para trabalhar em festa. 

Afinal de contas, “esta vida são dois dias, a Festa do Avante! são três”. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Plano neoliberal


Desculpai a repetição, mas com a entrega de centros de saúde a capitalistas da doença, confirma-se, uma vez mais, que este é o Governo da CUF, para a CUF, pela CUF. E tem um plano em 7 passos, revelado por Vítor S. (sim, o neoliberalismo não passa sem plano; “plano para a liberdade”, chamou-lhe Hayek, em 1944): 

“1. Criam a imagem de caos no SNS; 2. Apregoam na campanha que a salvação está no privado; 3. Ganham eleições; 4. Esvaziam o SNS com saneamentos políticos; 5. Provocam um verão caótico nas urgências; 6. Vende-se o SNS aos privados; 7. Saem do governo para grupos privados.” 

Um outro grande teórico do neoliberalismo, Pedro Passos Coelho, defendeu que o plano neoliberal passa por uma forma de Estado particular: o Estado-Garantia, ou seja, a garantia estatal da colononização da saúde pelo capitalismo da doença. 

Este capitalismo é viral e espalha-se por todos os sistemas de provisão socializados. Retomo uma reflexão de 2016 sobre batalhas educativas, publicada no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, até porque este Governo tem igualmente, e em coerência, um plano para a deseducação: 

Este vírus espalha-se na educação sempre que subsidiamos, seja através de contratos, seja através de benefícios fiscais, as moralmente distorcidas preferências elitistas das famílias em matéria de educação privada. Estas têm externalidades negativas para o conjunto da comunidade, por exemplo através da criação de barreiras de classe cada vez mais intransponíveis. 

Mas este vírus espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão. Isto acontece quando os trabalhadores da educação e os seus sindicatos são tratados como alvos abater, fazendo-se convergir as relações laborais na esfera pública com a maior desigualdade e precariedade que campeia na privada. Isto também acontece quando a lógica cooperativa dos mecanismos democráticos de gestão colegial das escolas é substituída pela lógica do comando empresarial, na figura de um director todo-poderoso, associada à perversa promoção da concorrência entre escolas. 

Esta última tendência é igualmente favorecida pelo perigo da crescente municipalização do ensino público no nosso país. A escola, mesmo que formalmente pública, tenderá assim a ficar refém de directores pouco escrutinados e da lógica clientelar de muitos municípios. Em conjunto poderão ter no futuro poder para contratar e despedir pessoal docente e não-docente cada vez mais precário. 

O vírus liberal emerge também na selecção e exclusão dos alunos pelas escolas públicas, imitando as práticas das escolas privadas, de acordo com o capital económico e cultural das famílias, determinante no sucesso escolar, ou com as necessidades dos alunos. O reforço da uniformização das escolas – escolas para ricos e escolas para pobres –, num país desigual e com taxas recorde de pobreza infantil, tem de ser travado através de batalhas em múltiplas frentes. 

A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. As parcerias público-privadas na saúde ou o cheque-dentista são outros tantos exemplos, desta vez no sistema de provisão de saúde, deste vírus, aí ainda mais potente pelos lucros poderem ser ainda maiores. 

As esquerdas que queiram ganhar os debates em torno dos sistemas de provisão de saúde, de educação e de outros não podem perder de vista o projecto global subjacente ao neoliberalismo, recusando a ilusão da liberdade de escolha que alimenta todas as desigualdades. Isto exige argumentos à altura do inimigo. Todas as batalhas têm de ser mesmo educativas.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Falta de casas para quê e para quem?

Nos censos da população e da habitação o INE recolhe informação sobre a forma de ocupação dos alojamentos, distinguindo as situações de residência habitual (primeira habitação), residência secundária ou de uso sazonal e fogos devolutos. Sabemos que, na ponderação do número total de alojamentos pelo número de agregados familiares, o respetivo rácio quase não se alterou na última década, passando de um valor de 1,45 para 1,44 alojamentos por família.

Por si só, este dado deveria ser suficiente para fazer pensar os que continuam a defender, na direita que vai do Chega ao PSD, passando pela IL e pelo CDS-PP, que a atual crise de habitação resulta de uma mera falta de casas. Isto é, como se a subida vertiginosa dos preços na última década resultasse de um aumento significativo da população residente (procura) ou, em alternativa, de uma redução substancial do número de alojamentos (oferta), independentemente da diminuição do volume de construção.

Numa aproximação mais fina à evolução das carências habitacionais, podemos ainda ponderar, a partir dos dados censitários, a diferença entre o número de casas de residência habitual (primeiras habitações) e o número de famílias residentes, desconsiderando portanto, para o efeito, as segundas habitações e os fogos devolutos. Ao fazer essa análise, chegamos a uma conclusão clara: nunca a diferença entre o número de primeiras habitações e o número de agregados familiares foi tão reduzida como nos censos mais recentes, de 2021.


De facto, se em 1981 havia cerca de mais 155 mil famílias do que alojamentos de residência habitual, em 2011 essa diferença reduz-se para 53 mil, rondando, em 2021, o valor aproximado de 7 mil. Ou seja, em 2021 há apenas cerca de mais 7 mil famílias do que primeiras habitações, o que faz aproximar o respetivo rácio da unidade (uma habitação de residência habitual por família), ao contrário do que sucedia nos anos censitários anteriores.

Significa isto que não há um problema de falta de casas, como a escalada de preços claramente sugere? Sim e não. Ou melhor, não e sim. Na perspetiva das dinâmicas demográficas - em termos de evolução do número de famílias e alojamentos - o aumento de preços que se tem registado não tem sustentação. Mas se considerarmos que na génese da atual crise está o surgimento de novas formas de procura, que encaram as casas como meros ativos de investimento (nacional e internacional, a par da captura de habitações para fins turísticos), então sim, faltam casas e poderemos até, no limite, nunca conseguir construir o suficiente para satisfazer essas procuras.

Se não foi a demografia a provocar a subida dos preços, a verdade é que acabam por ser as famílias quem paga a fatura, dada a sua menor capacidade para disputar o acesso a uma casa para viver com as lógicas especulativas, que apenas procuram casas para investir. É por isso, aliás, que os retrocessos que o atual Governo já empreendeu, e que se prepara para aprofundar e alargar (eliminando as medidas de regulação do Alojamento Local e das procuras externas, a par do reforço das lógicas de subsidiação pública da procura e da oferta), têm tudo para agravar ainda mais a situação, instigando o aumento dos preços, em vez de os fazer descer ou, pelo menos, de os tentar conter.

Determinante de cultura

Não sei se já reparastes, mas, no Portugal dos Pequenitos, um intelectual público que se preze não vê, não visita e não lê, antes revê, revisita e relê. Já nasceu visto, visitado e lido, ouça. E a repensar, claro, a repensar. Pensar é que não.

Estava a reler umas páginas de um formativo livro – O Fardo do Homem Negro, do historiador Basil Davidson, editado, em 2000, pela saudosa Campo das Letras – e deparei-me com duas passagens; dois intelectuais a sério, dos que viram, visitaram, leram e lutaram, em diálogo, a pensar:


Cabral vive


Os factos dispensam-nos de provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitamos o princípio segundo o qual a luta de libertação é uma revolução e que esta não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há, nem pode haver, libertação nacional sem utilização da violência libertadora por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo.
Amílcar Cabral, Textos Políticos de Amílcar Cabral, Cadernos Maria da Fonte, Lisboa, 1974, p. 25.

O centenário do nascimento de Amílcar Cabral (1924-1973), um dos grandes marxistas e nacionalistas africanos, celebra-se em Coimbra, entre hoje e o dia 13 de setembro. Hoje, às 18h, na Biblioteca Municipal de Coimbra, discute-se o livro O Mundo de Amílcar Cabral. Seguem-se mais debates, uma exposição, oficinas, teatro ou música

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Parece


Quem não quiser falar de capitalismo puro e duro, de privatizações sem fim, deve calar-se sobre a corrupção. Há muito que se sabe da sua natureza sistémica, indissociável de processos de neoliberalização entranhados. Por exemplo, em 2009, quando escrevia no Jornal de Negócios, perguntava: É o tempo da corrupção geral? Hoje, parece que é.

Privataria


Inspecção-Geral de Finanças conclui que TAP foi comprada com empréstimo com garantia da própria empresa O relatório da auditoria da Inspecção Geral de Finanças (IGF) às contas da TAP concluiu que a compra de 61% da companhia aérea ao Estado, em 2015, por um consórcio liderado por David Neelman foi financiada com um empréstimo de 226 milhões de dólares concedido pela Airbus, com a compra de 53 aviões à construtora pela TAP como contrapartida, e com a companhia aérea portuguesa a prestar garantia por esse crédito. Ou seja, a IGF estabelece que a TAP foi comprada com garantia da própria TAP.
 

Esta comprovada privataria é a enésima demonstração da natureza antipatriótica do Governo da Troika. Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque terão muito de explicar, espera-se, sem esquecer o inevitável Miguel Pinto Luz. Por falar nesta figura sombria, também com responsabilidades políticas neste negócio, recupero uma nota que aqui deixei quando se soube que ia a ministro e logo das Infraestruturas e Habitação.

Anti-Luz

Para lá da famosa carta de conforto na vergonhosa privatização da TAP, aposto que um jornalista de investigação passaria horas de diversão a escrutinar a polémica Fundação Alfredo de Sousa, a cujo Conselho de Administração Miguel Pinto Luz ainda preside, creio. Fica no concelho de Cascais, que não pertence ao distrito do Algarve. 

É parte do mamarracho capitalista académico da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (vulgo Nova School of Business and Economics...). Gere, com os “parceiros corporativos”, ou seja, com grandes empresas que financiam, muito capital ligado ao campus de Carcavelos e atividades conexas, incluindo os terrenos cedidos pela Câmara Municipal de Cascais para a construção. Pinto Luz também faz parte do executivo camarário, como Vice-presidente. 

Ainda há almoços grátis, sob a forma de rendas fundiárias e não só?

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Exemplar


Aparentemente, a única coisa moral que resta aos palestinianos é morrer. A única coisa legal que nos resta é vê-los morrer. E em silêncio. Caso contrário, arriscamos as nossas posições académicas, financiamentos e modo de vida. 

A única coisa que moral que nos resta é arriscar, como sempre fez esta engajada escritora indiana. Sigamos o seu exemplo.

domingo, 1 de setembro de 2024

Anti-Câncio

Fernanda Câncio, com todo o carácter de quem nada sabia antes e tudo sabia depois, “se fizesse ideia”, declarou há uns tempos que este blogue já não é “respeitável”. 



O que dizer de pessoas que só criticam outras quando estas caem em desgraça? 

Já agora, José Sócrates não foi responsável pela “bancarrota”. E isto por três razões. 

Porque um Estado nunca entra em bancarrota, porque a inação objectivamente golpista do BCE foi responsável pela transmutação de uma crise financeira do liberalismo numa crise da dívida denominada na moeda que o BCE controla, se decidir controlar, e porque havia a alternativa da reestruturação liderada pelo devedor num país que, em 2011, tinha dinheiro para fazer face aos seus compromissos internos.

Além disso, escandalosos dez anos depois de ter sido preso para ser investigado, num directo televisionado que degradou a democracia, ainda não julgado, José Sócrates já mais que pagou a eventual dívida à sociedade. E isto caso se prove que tinha, de facto, dívida. 

anticomunismo primário de Câncio levou-a a colocar no mesmo plano ético Hugo Soares e Paulo Raimundo, como se desconhecesse a diferença entre estar indeciso perante o fascismo de Trump e o liberalismo que financia, arma e permite o genocídio de Kamala, ou recusar os termos dessa falsa escolha numa eleição onde, obviamente, os portugueses não votam, mas, se votassem, teriam alternativas não enterradas nesta distopia. 

Enfim, Câncio representa tudo o que está mal numa certa intelectualidade luso-liberal que se diz de esquerda, mas que adora a política de direita: do deslumbramento com o poder e da arrogância moral com pés de barro à empatia selectiva com o colonialismo sionista

Ao contrário de outras rubricas anti, esta não merece mais linhas.

A melancolia de esquerda pode esperar...


... já que “a vida são dois dias e a Festa do Avante! são três”!