quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Falta de casas para quê e para quem?

Nos censos da população e da habitação o INE recolhe informação sobre a forma de ocupação dos alojamentos, distinguindo as situações de residência habitual (primeira habitação), residência secundária ou de uso sazonal e fogos devolutos. Sabemos que, na ponderação do número total de alojamentos pelo número de agregados familiares, o respetivo rácio quase não se alterou na última década, passando de um valor de 1,45 para 1,44 alojamentos por família.

Por si só, este dado deveria ser suficiente para fazer pensar os que continuam a defender, na direita que vai do Chega ao PSD, passando pela IL e pelo CDS-PP, que a atual crise de habitação resulta de uma mera falta de casas. Isto é, como se a subida vertiginosa dos preços na última década resultasse de um aumento significativo da população residente (procura) ou, em alternativa, de uma redução substancial do número de alojamentos (oferta), independentemente da diminuição do volume de construção.

Numa aproximação mais fina à evolução das carências habitacionais, podemos ainda ponderar, a partir dos dados censitários, a diferença entre o número de casas de residência habitual (primeiras habitações) e o número de famílias residentes, desconsiderando portanto, para o efeito, as segundas habitações e os fogos devolutos. Ao fazer essa análise, chegamos a uma conclusão clara: nunca a diferença entre o número de primeiras habitações e o número de agregados familiares foi tão reduzida como nos censos mais recentes, de 2021.


De facto, se em 1981 havia cerca de mais 155 mil famílias do que alojamentos de residência habitual, em 2011 essa diferença reduz-se para 53 mil, rondando, em 2021, o valor aproximado de 7 mil. Ou seja, em 2021 há apenas cerca de mais 7 mil famílias do que primeiras habitações, o que faz aproximar o respetivo rácio da unidade (uma habitação de residência habitual por família), ao contrário do que sucedia nos anos censitários anteriores.

Significa isto que não há um problema de falta de casas, como a escalada de preços claramente sugere? Sim e não. Ou melhor, não e sim. Na perspetiva das dinâmicas demográficas - em termos de evolução do número de famílias e alojamentos - o aumento de preços que se tem registado não tem sustentação. Mas se considerarmos que na génese da atual crise está o surgimento de novas formas de procura, que encaram as casas como meros ativos de investimento (nacional e internacional, a par da captura de habitações para fins turísticos), então sim, faltam casas e poderemos até, no limite, nunca conseguir construir o suficiente para satisfazer essas procuras.

Se não foi a demografia a provocar a subida dos preços, a verdade é que acabam por ser as famílias quem paga a fatura, dada a sua menor capacidade para disputar o acesso a uma casa para viver com as lógicas especulativas, que apenas procuram casas para investir. É por isso, aliás, que os retrocessos que o atual Governo já empreendeu, e que se prepara para aprofundar e alargar (eliminando as medidas de regulação do Alojamento Local e das procuras externas, a par do reforço das lógicas de subsidiação pública da procura e da oferta), têm tudo para agravar ainda mais a situação, instigando o aumento dos preços, em vez de os fazer descer ou, pelo menos, de os tentar conter.

5 comentários:

Anónimo disse...

Há um erro nesse racíocinio. Está a considerar que as casas que se constroem não vão para habitação porque são capturadas pela especulação e turismo. As casas que vão para especulação são construídas com esse fim. A pergunta que deve fazer é: porque é que não há construção para habitação.
Se formos ver onde mora a maioria das pessoas (na Grande Lisboa, por ex.), elas vivem sobertudo nos dormitórios dos concelhos limítrofes. A construção de luxo e para fins turísticos não é feita nesses concelhos logo não seria concorrente com a construção para primeira habitação, que no entanto não existe. O facto de existirem melhores margens na construção de luxo nunca impediu a construção para a classe média baixa, o que impede a construção para a classe média baixa é o facto desta não poder pagar, seja que margem for, devido aos baixos salários.
As casas não são caras, o pessoal é que ganha pouco.

Lowlander disse...

Anonimo, larga o vinho. O texto especificamente menciona que nao ha falta de casas para habitacao.

Anónimo disse...

Lowlander, aprende a ler!
O post diz que não há falta de casas para habitação porque as mesmas estão a ser destinadas a outros fins. O que eu digo é que se são destinadas a outros fins, então não são construídas para primeira habitação.
A pergunta deve ser: "Porque não são construídas casas para primeira habitação?"
Claro que temos a solução de nacionalizar os empreeendimentos de luxo e dar tudo aos pobres, mas não me parece uma situação viável no curto prazo.

Nuno Serra disse...

Caro anónimo,
O que o post procura demonstrar é que, do ponto de vista estritamente demográfico - e ao contrário do que se diz sobre a atual crise ser apenas um problema de falta de casas - não seria necessário aumentar a construção. A questão é que o surgimento de novas procuras, de natureza especulativa (que aliás, como diz, reconfiguram o tipo de casas que hoje se constroem), faz com que a tese dominante ignore a necessidade de regular essas mesmas procuras (mecanismo que se afigura incontornável para conseguir baixar preços).

Anónimo disse...

De que maneira é que regular a procura por casas de luxo ia aumentar a oferta de habitação a preços controlados?
Se a construção a preços controlados tivesse procura ela teria oferta. Com os valores de construção atuais e com os ordenados atuais, pura e simplesmente não dá.
Colocar casas no mercado a preços controlados e atacar a especulação imobiliária seria uma idéia, mas parece que não temos casas a mais, e a especulação imobiliária é sagrada, é o mercado.