terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O relatório de Wyplosz sobre a zona euro pós-pandemia: uma medida do viés do nosso debate económico


A pedido do comité para os assuntos económicos e monetários do Parlamento Europeu, Charles Wyplosz redigiu um relatório (aqui) sobre o papel dos governos nacionais e do BCE nos anos que se irão seguir à crise pandémica. Charles Wyplosz não é um nome menor no debate sobre a economia da zona euro. O livro que coordenou em conjunto com Richard Baldwin e Francesco Giavazzi em 2015, The Eurozone Crisis: A Consensus view of the causes and a few possible solutions, é provavelmente o mais influente livro sobe a crise europeia.

A análise e as propostas feitas no relatório divulgado em novembro são notáveis pelo seu arrojo, vindo de um economista que, nunca tendo alinhado com a ortodoxia europeia quanto ao sucesso do desenho da zona euro, está longe de ser um heterodoxo: a independência da política monetária e as reformas estruturais foram sempre uma parte importante das suas preocupações.

O ponto de partida do autor é o seu ceticismo quanto a uma recuperação rápida das economias europeias. Na sua visão, apenas o esforço concertado da ação dos governos nacionais e do BCE pode evitar uma crise prolongada. No seu relatório, vale a pena destacar dois pontos principais.

Em primeiro lugar, a tese de que a política orçamental será essencial para a resposta a esta crise. Os governos devem aproveitar ao máximo a excecionalidade histórica de terem a possibilidade de usar, em simultâneo, política monetária e orçamental para fazer face à crise sem temer a aceleração de preços. Isto é, os governos nacionais devem fazer uso dos graus de liberdade de política orçamental concedidos pela intervenção extraordinária do BCE através da expansão do seu balanço. Wyplosz é perentório ao afirmar que tentar cumprir os critérios do défice ou do rácio da dívida neste momento seria um erro de política económica, com reflexos numa recessão mais prolongada.

Por outro lado, é reconhecida a urgência de reforma da política monetária do BCE. Perseguir um objetivo de inflação em torno dois porcento seria um erro. O autor sugere que o BCE estabeleça um target situado entre os 3% e 4% de inflação, de maneira a pôr lentamente termo ao clima deflacionário e assim estimular a atividade económica privada.

A perda de instrumentos do BCE é também reconhecida. A ideia de fixar uma taxa de juro diretora para guiar a atividade económica, consensual por mais de vinte anos, parece hoje um anacronismo: há mais de uma década que os mais importantes bancos centrais do mundo têm as suas taxas diretoras próximas de zero. Também a compra de ativos no mercado secundário é um instrumento com limites, mais óbvios à medida que o tempo passa e o balanço dos bancos centrais vai aumentando e começa a existir o risco de escassez de oferta de títulos de dívida de alguns países. A solução proposta passaria por permitir que o BCE emitisse os seus próprios títulos de dívida, criando um instrumento financeiro seguro á escala europeia que funcionasse como colateral. Esta proposta é mais polémica, porque o BCE deixaria de fazer compras de títulos de dívida pública dos países soberanos. No entanto, o autor reforça que esta reforma não deve ser feita no imediato. E vai mais longe, ao propor que o BCE se coloque como prestamista de último recurso do novo fundo de recuperação europeu. Isso abriria margem a um programa com menos riscos de ataque especulativo nos mercados financeiros.

Nem tudo o que consta da proposta de Wyplosz é passível de ser subscrito por quem se bate por uma resposta mais progressista à crise. O autor insiste no risco de haver uma influência nefasta da política orçamental no condicionamento da política monetária, agora que o BCE detém um grande volume de títulos de dívida pública. A meu ver, esse não é um risco substancial. Na verdade, é até positivo que esse condicionamento exista: o facto de o BCE ter hoje consciência de que as suas ações têm uma consequência imediata na solvabilidade da dívida pública dos países soberanos é um fator importante. Foi essa clarividência que faltou na crise anterior. De igual modo, não responde ao problema de os países soberanos que irão financiar uma parte importante do programa de recuperação por meio de empréstimos continuarem com a ameaça de receberem um ataque especulativo por essa via, o que limita o potencial das medidas de estímulo orçamental nacionais. Por último, é omisso quanto à possibilidade de financiamento direto dos estados pelo BCE, crescentemente advogado, que permitiria uma resposta à crise não sustentada no fardo da dívida e que, em contexto deflacionário, dificilmente traria uma espiral de preços.

Ainda que o relatório não contenha medidas que seriam centrais na resposta à crise, não se pode deixar de assinalar a importância do seu conteúdo. Há escassos anos, seria impensável ouvir uma voz tão escutada em Bruxelas como Wyplosz a defender a centralidade da reposta orçamental, a apelar explicitamente ao não cumprimento dos critérios de Maastricht e a reconhecer que o financiamento indireto do Banco Central aos estados nacionais  não levanta riscos de inflação

Ler este relatório é também útil para solidificar a perceção de que o debate económico português travado no espaço público está muito enviesado.

Imagine, por um segundo, que alguém se atrevia a defender no espaço público nacional uma resposta mais expressiva do ponto de vista orçamental, com o argumento de que o défice e a dívida não são variáveis fundamentais neste momento. Imagine ainda que essa pessoa dizia que, no atual quadro macroeconómico, o risco de subida das taxas de juro ou da inflação é inexistente. Logo viria um coro numeroso, guiado pelo comentador José Gomes Ferreira, na SIC, coadjuvado pelo Diretor do jornal Expresso, João Vieira Pereira, declarar a irresponsabilidade do juízo. Que isso nos levaria à situação de 2011. Que a Troika está ali já à esquina. Que lá estamos nós de novo a querer viver acima das nossas possibilidades. A narrativa do medo, sempre ela, pronta a cilindrar qualquer tipo de debate profundo e sério.

Por um instante, podemos perguntar-nos por que motivo isso sucederia. Afinal, o que contribui para a cristalização do debate económico português neste equilíbrio subótimo, que impede qualquer progresso na discussão?

Podem apontar-se alguns motivos. Desde logo, parte de uma certa fauna híbrida de jornalistas-comentadores notabilizou-se a partir de uma narrativa de legitimação da austeridade. José Gomes Ferreira, Camilo Lourenço e tantos outros criaram as suas personagens públicas à custa da sua posição contra “os políticos que gastaram mais do que o país tem”. Abandonarem essa narrativa é desacreditarem-se a si mesmos e perderem o seu poder. Por outro lado, há atores políticos que também dependem da narrativa da austeridade para legitimar o seu percurso. Em que posição ficaria o PSD se viesse reconhecer que a expansão orçamental é uma resposta credível à crise? Por último, o próprio governo. Ficou claro na discussão do último Orçamento de Estado que o governo não hesitará em usar a bandeira da irresponsabilidade orçamental do BE e do PCP para condicionar o seu poder negocial. O facto de ter comprometido a aprovação do orçamento pelo BE devido a medidas com impacto orçamental marginal é a prova disso.

De forma inesperada, divulgar o debate económico que é tido à escala internacional, em particular o papel que a política orçamental e os Bancos Centrais como a FED e o BCE podem desempenhar na resposta à crise tornou-se hoje uma importante forma de combater este viés no debate económico nacional.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tudo isto se resume à tentativa de manter o status-quo, tentando evitar que o regime colapse.
Nos anos 1930s o colapso foi evitado pela alternativa desenhada por Keynes e aceite por Roosevelt, pela mudança da política orçamental do foco na oferta para o campo da procura.
A política fiscal expansionista, necessária para o conseguir, é um pecado na religião neoliberal, pelo que é com grande pesar que aqueles ortodoxos que já perceberam o beco sem saída onde estão metidos, vão timidamente dizendo que é necessário mudar alguma coisa, tentando que tudo fique na mesma.
Mas, para além da crise económica (que acumula à crise iniciada em 2008 e que nunca foi ultrapassada) temos ainda a crise climática, a crise pandémica, a crise agrícola e a crise da burguesia.
A evolução da crise pandémica é uma incógnita, mas a crise climática é bem conhecida e incógnitos são os caminhos necessários para a ultrapassar (muito devido ao déficit tecnológico, causado pela destruição do sistema público de ensino universitário).
A crise agrícola ainda não é muito visível na europa, mas considerem aquilo que se passa no Brasil, chamado agora de "quintal da China" e a devastação que a procura de alimentos pelos asiáticos está a causar à maior floresta do mundo.
Mas há ainda uma outra crise a coincidir com estas crises todas: a crise da burguesia.
O modelo económico burguês foi distorcido pela globalização (o produto "made in china", que trouxe lucros fabulosos a muitos, acabou por os levar à falência, ao transformá-las em marcas vazias e sem compradores) e agora a burguesia anda a cozinhar o "great-reset", que mais não é que o grito "salve-se quem puder".
Muitos mantêm-se no ativo porque os Estados decidiram fazer a segurança social dos ricos, à custa da Segurança Social dos pobres, mas isso não vai durar para sempre.
Perante estas crises todas, não bastará um novo Keynes aparecer e dizer que o desemprego, afinal, não é voluntário.
É preciso muito mais que isso.
É preciso, antes de mais, recuar a Marx.
Marx foi o único que não construiu fábulas para sustentar dogmas.
E depois de Marx, é preciso ir mais além, para ultrapassar a armadilha estalinista.
Mas a UE não o vai conseguir.

Paulo Marques disse...

Num momento em que os bancos centrais admitem que não ficam sem capital e que definem as taxas de juro, a proposta não é progressiva, é o mínimo de racionalidade para que tudo continue a funcionar como está.
E, sim, isso quer dizer que o discurso em Portugal é de destruição do país por gente que afirma uma oportunidade de produzir não se sabe para quem como se não tivesse que ser pago em 5 anos.

Jose disse...

«a expansão orçamental é uma resposta credível à crise»

Ninguém discorda até que se lhes diga qual orçamento.

Vai daí...onde estão as propostas?

Jose disse...

«déficit tecnológico, causado pela destruição do sistema público de ensino universitário»
Com as universidade dedicadas à competição no comércio de graus académicos?
Com a tecnologia centrada em empresas?

TINA's Nemesis (Geringonço) disse...

Esperem lá...
O "Jose" já admite que o problema não é se há ou não dinheiro mas onde/ como se vai gastar o dinheiro?!?!

É UMA EVOLUÇÃO POSITIVA!

É isso mesmo "Jose", o dinheiro não é o problema, é como o gastamos que interessa.

Mas aposto que as propostas do "Jose" passam por entregar o dinheiro que o Estado cria aos tipos dos colégios e hospitais privados...

De qualquer maneira, é sempre bom que o "Jose" tenha vergonha em usar a frase "o socialismo acaba quando acaba o dinheiro dos outros".

Vamo-nos focar naquilo que interessa, melhorar a vida da população mas para isso temos que parar com as nefastas fantasias como "não há dinheiro" e "bancarrota".

Paulo Marques disse...

Sim, Jose, com a universidade a trabalhar para as empresas e a deixar a ciência de base cada vez mais para trás. Foi sorte termos vacinas de RNA invés da cientista não ter sido despedida por perder tempo e dinheiro.