quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Jogo de sombras


O Presidente da República continua a mandar recados ao Governo sobre a manutenção do “rigor orçamental” e, ao mesmo tempo, a necessidade de acelerar o crescimento económico. Por seu turno, o primeiro-ministro insiste na garantia de que vai cumprir a meta dos 2,5%. Segundo Teresa de Sousa, “Costa quer provar fidelidade ao euro aceitando as regras do jogo de Bruxelas”.

O debate no espaço público sobre o défice orçamental é deprimente. Não se ouve uma única voz que mostre algum conhecimento básico sobre a economia política dos défices (sim, no plural). Como é possível que tantos jornalistas de assuntos económicos, tantos licenciados ou doutorados em economia, dominem os media com um discurso contabilista sobre o orçamento, ignorando a natureza sistémica da economia, onde várias causalidades se entrelaçam tornando interdependentes os saldos financeiros do Estado, do Sector Privado, e do país com o Resto do Mundo?

Apesar dos alertas do Alexandre Abreu, João Rodrigues, e outros, domina a ideia de que o défice depende da boa gestão do Ministro das Finanças e da sua capacidade de controlar o despesismo dos seus colegas de governo. E faz-se crer que um défice baixo, desejavelmente um excedente, é bom para a economia. Lembrando Krugman, um economista muito convencional, nos media só temos direito à teoria económica da idade das trevas.

No entanto, as primeiras páginas dos manuais convencionais de introdução à macroeconomia dizem-nos que o défice do Orçamento depende das decisões do Governo quanto à despesa e tributação que se conjugam com as decisões de despesa do sector Privado do país, e com as dos actores privados e Estado nos países com quem temos relações económicas e financeiras. É essa interdependência que está na origem do sistemático incumprimento das metas orçamentais dos governos e da periódica revisão das previsões das organizações internacionais. A verdade é esta, e a esquerda devia dizê-lo com toda a clareza: os governos não têm o poder de determinar o défice do orçamento do Estado.


Tal interdependência significa ainda que, numa conjuntura em degradação, o saldo externo piora, tornando mais difícil a redução do défice público porque tal exige um maior endividamento do sector privado quando este ainda está reticente. Vejamos os saldos financeiros dos sectores institucionais da economia portuguesa no segundo trimestre de 2016 (% do PIB):

Administração Pública (-3,4) + S. Privado (+4,3) = Resto do Mundo (+0,9)

Assim, se (por hipótese) nos trimestres seguintes a conjuntura internacional vier a anular o saldo externo, então, para que o défice público se situe nos 2,5%, o sector privado (onde se inclui a banca) terá de reduzir a sua poupança para 2,5%:

Administração Pública (-2,5) + S. Privado (+2,5) = Resto do Mundo (0)

Nesta hipótese, para que a meta do défice público seja alcançada, o Sector Privado terá de fazer o contrário do que preconizam os economistas “sérios”; terá de poupar muito menos. Aritmética simples, quase sempre ignorada.

Por conseguinte, o saldo orçamental deste ano depende muito do que os restantes sectores fizerem até ao fim do ano. Na medida do possível, este governo (tal como os anteriores) recorrerá à maquilhagem contabilística das contas para camuflar a derrapagem que possa ocorrer, mas que não pode impedir (os impostos dependem do produto; boa parte da despesa depende da evolução do subsídio de desemprego e outras prestações sociais). Como a Comissão Europeia faz de conta que o governo pode ter o défice que quiser, o que é falso, o folclore do Semestre Europeu, das previsões para todos os gostos, e das ameaças de sanções torna-se num verdadeiro jogo de sombras que dissimula o verdadeiro objectivo da UE: impedir uma política orçamental expansionista e subtrair à escolha democrática tudo o que diga respeito à política económica (ver aqui).

É politicamente defensável, até um certo ponto, que as esquerdas queiram sustentar este jogo em nome do ‘mal menor’. Mas, por favor, não rejubilem com um défice de 2,5% porque sabem muito bem que, para tirar o país desta morte lenta, é necessária (entre outras) uma fortíssima política orçamental expansionista, ou seja défices grandes e continuados (ver aqui). Ao menos, enquanto sustentam o governo do ‘mal menor’, preparem os cidadãos para a necessidade de sairmos do euro. Expliquem-lhes que a permanência na moeda única vincula o país a uma política económica errada, com consequências catastróficas bem conhecidas (ver aqui). Digam-lhes que esta política foi executada nos anos trinta do século passado e deu origem aos fascismos e que, desde há décadas, tem sido imposta pelo FMI por todo o mundo, com os resultados desastrosos que Stiglitz há muito denunciou. Não tenham medo das palavras, sejam frontais, porque a alternativa só se afirma com um discurso de verdade, o único que conquista a confiança e prepara para o passo seguinte.

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom texto

Há que quebrar este jogo de sombras que os economistas da ordem nos tentam impingir para manter a sua ordem.
Há que assumir que "a alternativa só se afirma com um discurso de verdade, o único que conquista a confiança e prepara para o passo seguinte".
Há que não ceder a chantagens.

Mas prepare-se caro Jorge Bateira para o que as carpideiras impolutas virão dizer

Anónimo disse...

Reduzir a poupança pode ser útil se a massa for aplicada em investimento produtivo ou consumo de bens não importados ou ainda para amortizar dividas.
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Ora, sabemos que 60% do consumo são importações. Sabemos que o investimento não sobe se não se perspectivarem lucros na cabeça dos empresários; o mesmo é dizer que os impostos devem descer sobre as empresas, o nível de preços perspecrivados deve ser a um nível que motive investimentos, a produtividade do trabalho deve melhorar.
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O governo pode controlar duas destas três últimas variáveis: o nível de impostos, os custos do trabalho.
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Os custos do trabalho devem ser competitivos. Por outro lado melhorar o valor que se acrescenta aos produtos deve ser conseguido promovendo melhor educacao, focada e pragmática, especializada. É tempo de pensar a educacao como uma dotação orçamental e melhorias no hardware. Escolas boas e bonitas não é factor hoje que precise de atenção. A atenção deve ser para o software da educação, chamemo-lhe assim. Para os conteúdos. Para a preparação profissional. Ao nível do desenvolvimento de produto, investigação, marketing, marca etc.
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Parece-me que está quase tudo mal a este nível na educação.
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Anónimo disse...

"... o défice do Orçamento depende das decisões do Governo quanto à despesa e tributação que se conjugam ..."
Conjugam-se, é verdade, mas o défice também depende das decisões do Governo. O que nos leva a concluir duas coisas:
- Fora ou dentro do Euro (embora por mecanismos diferentes) estaremos sempre dependentes "dos actores privados e Estado nos países com quem temos relações económicas e financeiras". Se é para falar verdade (o que acho muito bem) convém não iludir os cidadãos dizendo-lhes que com a saída do Euro deixaremos de estar dependentes delas ou deixarão de existir constrangimentos e contingências externas que nos limitam a acção;
- É dentro dos constrangimentos e contingências externas (que não controlamos e existirão sempre), que o défice do Orçamento depende de decisões do Governo quanto à despesa e tributação. Ou seja, se os Governos não têm o poder de determinar o défice do orçamento do Estado, as suas decisões contribuem para o influenciar.

Concluindo, não vale a pena raciocinar como se não existissem constrangimentos e contingências externas (com ou sem Euro), defendendo ilusões como "é necessária (entre outras) uma fortíssima política orçamental expansionista, ou seja défices grandes e continuados". São precisamente estas ilusões de facilidade ('se o governo quisesse e fosse bom para as pessoas') que depois, confrontadas com a realidade, conduzem à desilusão que alimenta fascismos e xenofobias.

Jorge Bateira disse...

Caro anónimo das 9:04

Agradeço que não deturpe o que escrevi:
- Dizer que "o Estado não determina o orçamento" não significa dizer que não o influencia.
- Dizer que "o Estado não determina o orçamento" é uma afirmação válida para todos os países, dentro e fora da zona euro.

Não disse em lugar algum que não há constrangimentos fora da zona euro. Porém, há constrangimentos dentro da zona euro que tornam o país um protectorado pobre da Alemanha e, fora da zona euro, há constrangimentos que, não sendo tão gravosos, permitem ao país adoptar políticas de desenvolvimento. Tal não significa uma garantia de sucesso, mas a saída do euro é uma condição indispensável.

Não encontra em nenhum dos meus textos qualquer sugestão de facilidades, nem a descrição de calamidades infundadas.

Anónimo disse...

"Agradeço que não deturpe o que escrevi:
- Dizer que "o Estado não determina o orçamento" não significa dizer que não o influencia."

Eu concluí, precisamente:
"se os Governos não têm o poder de determinar o défice do orçamento do Estado, as suas decisões contribuem para o influenciar."

Ou seja, concordei com o que afirmou. Não percebo porque acha que deturpei o que escreveu.

Por outro lado, se é verdade (e eu concordo consigo) que há "previsões para todos os gostos" ainda assim não deixa de ser necessário fazer orçamentos com previsões de receitas, despesa, crescimento, ... Falíveis, claro. Previsões.
A questão é se o Estado, na medida das previsões (falíveis) que faz para o ano seguinte, prevê ou não logo à partida um défice, e qual a dimensão desse défice. Ou que, precisamente na lógica de que não pode determinar o défice mas o pode influenciar, não formule orçamentos rectificativos ao longo do ano para acomodar desvios às previsões iniciais. Ou não preveja "almofadas orçamentais".

Isto presumindo que não esteja a sugerir que pura e simplesmente o Estado deixe de fazer planeamento do orçamento para o ano seguinte.

Anónimo disse...

Mas como, se o capital financeiro rejeita planeamentos e pretende andar a´ rédea-solta?
E não me venham falar do Exterior e Interior se quase por unanimidade afirmam que somos U.E., que não controlamos os fluxos cambiais por não termos soberania, moeda própria… e etc. e tal. E que ao longo destes últimos 35 anos tudo tem sido feito para que, aporreando aqui, cortando ali, o povo fique “agarrado” qual drogado..?
Todos sabemos por termos lido e ouvido e por sentir na pele o crime hediondo cometido pelo “Centrao” aos nos enviar – sem consulta prévia – para o regaço da Barbárie Kapitalista centro europeia.
Não acredito no “livre arbítrio” sem ser companheiro de escola de Spinoza, mas sei que a Flor se alimenta da Lama!
De Adelino Silva