sábado, 23 de agosto de 2025

Confesso que nasci


Nasci a 22 de agosto de 1977 na Maternidade Daniel de Matos, em Coimbra, fez ontem 48 anos: João Pedro Amaral Cabouco Rodrigues. A minha mãe ia fazer 25 anos e o meu pai 24. 

Ele estava a dar os primeiros passos na advocacia, então sindical, ela era professora de português e de francês, também a começar na escola pública, então em franca expansão, ambos originários do concelho de Penedono. 

Ele foi o primeiro da família a licenciar-se um ano antes do meu nascimento, um ano depois do pai, sapateiro transformado em operário da construção civil, ter falecido num acidente de trabalho em França. O Estado social já existia em França, graças à classe trabalhadora, e fez diferença. O meu avô materno, pequeno empresário, também já tinha falecido. 

Tive as minhas avós, em Penedono e na Granja, por menos tempo do que seria necessário, nunca é suficiente. Ficaram muitos verões azuis e natais com sincelo e muito mais, incluindo o exemplo do decoro, virtude beirã, sempre achei. E ficaram tios e tias e primas e primos solares. E paredes, sobretudo de granito e de vidro

Ao pé da minha primeira casa, quando havia controlo das rendas (antes destas serem liberalizadas para os novos contratos em 1990...), a caminho da escola primária dos Olivais, que fica ao lado da faculdade onde por acaso acabaria a ensinar, estava escrito numa parede: “não à lei Barreto/77”. Sempre me chamou a atenção por causa do ano. 

Essa lei foi o início de destruição da Reforma Agrária, essa grande conquista da Revolução, soube precocemente, letras maiúsculas. Que essa gente esteja hoje na direita pura e dura, diz tudo sobre certos e determinados percursos, materialmente pavimentadas pelas contrarreformas neoliberais. 

Isto não está nada fácil, mas não há alternativa que não passe por persistir. Memorizei um poema descoberto recentemente sobre o que se faz a quem tritura os sonhos. Memorizai também. 

Se olhar apenas em redor do meu umbigo e decidir não ver o resto, confesso que não me posso mesmo queixar, antes pelo contrário: filho, árvores e livros, por esta ordem; família, amigos, trabalhos e camaradas, sem ordem, está tudo entrelaçado por motivações predominantemente intrínsecas, creio. 

Não generalizo, no entanto, ensinaram-me com convicção a não o fazer desde muito cedo: análise concreta das situações concretas, muita atenção ao contexto, João (afinal de contas, a mobilidade social foi mesmo ascendente; do sindicato à empresa, da cidade ao regresso à aldeia, circulou por muitas esferas). Ouves o eco que faz o avô quando falo, Pedro? 

Como qualquer pessoa, faço o melhor de que sou capaz nas circunstâncias que são as minhas. Simplesmente, tive imensa sorte nas circunstâncias, a começar pela lotaria nacional-familiar. O mérito está tão sobrestimado. 

Se tive a oportunidade de desenvolver algumas capacidades, foi também graças à ação coletiva de muitos que me tocaram, direta e indiretamente, sem o saberem na maior parte dos casos, sem eu o saber demasiadas vezes. 

Nasci com uma imensa dívida social, sobretudo aos que resistiram durante 48 anos, aos que se lançaram na construção do socialismo, mesmo que “só” tenham conseguido um Estado de direito, democrático e social, de resto cada dia mais frágil. A fragilidade começou pela alteração das relações de propriedade, pelas privatizações, e continua com outras formas de ataque, com décadas, à soberania popular.

E ainda há algo para defender e sobretudo muito que (re)construir. Escrevi grande parte destas linhas numa biblioteca pública, luxo comunal à beira Tejo. Infelizmente, já não há a Mague aqui perto, um só exemplo. Ficaríamos todos mais seguros se houvesse uma classe operária mais organizada. Sabemos, pela história da democracia, que dependemos dela.

Penso no meu pai, falecido há 8 anos (feitos há dez dias atrás) e penso no amor comunista, penso em ti. Penso em muitas relações valiosas, num dia em que sempre me deu para a melancolia. Nunca gostei lá muito de fazer anos, de festas de anos. Nasci em agosto, está toda a gente de férias: há, mas são verdes. Ontem, houve telefonemas queridos e mensagens amigas, bacalhau e museu do azulejo, um bolo e amores. Houve tudo. 

Entretanto, alguém já disse que vê o meu pai na quinta, que fala com ele, e eu acredito nos que acreditam. Somos um elo numa cadeia do tempo sem fim, disse-o à minha irmã num momento importante. Enfim, sozinhos não somos nada, haja história e memória, terras e raízes. Haja economia mista e motivações mistas. 

Atentemos nas ligações. Somos seres em relação, como se diz na Igreja quando é verdadeira, e temos a obrigação de olhar e de ver para lá das nossas circunstâncias pessoais, sem, no entanto, descurar a introspeção, até porque ela é sempre necessária, talvez mais para os que têm de trair a sua classe, começando por tentar evitar ser da esquerda brâmane, a posição mais fácil neste caso, neste percurso. Tenta-se.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Um plano para acabar com um plano


É um plano. É nacional. É de leitura. Três palavras que os liberais até dizer chega, os do mais liberdade para explorar, menos liberdade para florescer, abominam. Três palavras que Fernando Alexandre e Luís Montenegro odeiam. O obscurantismo desta gente é cada vez mais claro. Para isso, precisam de um plano. Eles têm têm um plano antinacional. Haja, pela nossa parte, iluminismo radical, indissociável de um antifascismo militante.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Inesgotável?


Quem supunha que a pressão da procura do investimento imobiliário estrangeiro teria desaparecido, com as alterações introduzidas nos regimes dos Vistos Gold e Residente Não Habitual (RNH), tem razões para ficar inquieto. De acordo com o Expresso, «os fundos de investimento portugueses elegíveis para obtenção de Autorização de Residência para Investimento (ARI), ou visto gold, têm visto a procura disparar este ano», com um dos beneficiários (o 3CC Portugal Golden Income Fund), a registar no primeiro semestre um acréscimo no investimento de 1,2M€ para 16,8M€.

De facto, apesar de as alterações sugerirem uma desvinculação do investimento estrangeiro ao setor imobiliário, o efeito gerado no aquecimento da procura (e dos preços) parece manter-se. Como refere ao Expresso Sara Sousa Rebolo, da Prime Legal, «Portugal apresenta-se como um plano B para os norte-americanos que querem não só uma diversificação financeira como uma hipótese de nova residência», acrescentando que o interesse se intensificou após as eleições nos EUA, com «muitas famílias a virem para cá, já com os filhos nas escolas internacionais em Portugal».

Sabemos bem que o investimento imobiliário estrangeiro é apenas uma das novas formas de procura de habitação (a par do turismo e da procura nacional na lógica de investimento especulativo em ativos), que conferem à atual crise uma natureza distinta. Tal como sabemos que o efeito destas procuras na génese da atual crise habitacional, e na constante subida dos preços, continua a ser negligenciado no debate público, insistindo-se na ideia de que tudo se resolve, apenas, com a construção de mais casas e consequente aumento da oferta.

Bastará pensar, contudo - e uma vez reconhecido o efeito de arrastamento dos preços, decorrente do maior poder aquisitivo da procura imobiliária estrangeira -, que estamos perante uma fonte de procura potencialmente inesgotável, até ao eventual e estrepitoso rebentamento de uma bolha. Isto é, uma procura que, a manter-se, revela não só uma significativa capacidade de absorver, direta ou indiretamente, o aumento da construção como, também, de contribuir para manter os preços da habitação em patamares demasiado elevados para os rendimentos das famílias.

Leitura com vistas


A biblioteca de Vila Franca de Xira é um lugar de esperança, de possibilidade de luxo comunal à beira Tejo. As vistas do edifício são para todos e os livros também. Trabalha-se bem ali. E comecei a ler um livro de Sahra Wagenknecht, uma das referências políticas alemãs, oportunamente traduzida por nuestros hermanos: os “arrogantes” ou “presunçosos”. 

Do que já li, fala de cultura cívica, de coesão social e de racionalidade política, da reancoragem material dos valores da esquerda na classe trabalhadora realmente existente, de uma esquerda que não se confunde com a “esquerda do estilo de vida”, o que já se designou também por esquerda brâmane, antes valorizando a defesa e reconstrução de instituições igualitárias, garantidas pelo Estado-Nação, contra os liberalismos de esquerda e de direita que alimentam a extrema-direita.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Haja fotos, haja memória


Helena Ferro Gouveia faz parte da “escumalha da humanidade”, de que falava um célebre hino da resistência antifascista na Segunda Guerra Mundial. Tem o poder que lhe conferem as ligações à embaixada israelita e a Mário Ferreira, o pirata laboral do Douro que controla a TVI e a CNN. 

Militante recente do CDS, foi até há pouco assessora de Inês Medeiros, do PS, na Câmara Municipal de Almada, e está ligada à candidatura de extrema-direita de um almirante, apoiado publicamente por Mário Ferreira, que quer enviar jovens portugueses para as guerras da NATO. O genocídio é um bom negócio, como se vê na foto. 

Houve uma saudável reação de repúdio quando se soube que este monstro moral é candidato, em quarto lugar, à Assembleia Municipal de Lisboa pela coligação das direitas liderada por Moedas. 


Infelizmente, a rede da embaixada israelita não fica circunscrita às direitas da linha de cor, já que chega ao P sem S, como se vê na foto. Em pleno genocídio, Pedro Delgado Alves, vice-presidente do grupo parlamentar de amizade Portugal-Israel, e Sérgio Sousa Pinto foram a uma reveladora despedida a um embaixador que devia ter sido expulso e foram candidatos do PS às legislativas; o primeiro até foi cabeça de lista por Coimbra, lembrai-vos. 

Haja fotos, haja memória.

A vassalagem foi mesmo fotografada

Instagram da Casa Branca, via Raquel Ribeiro

terça-feira, 19 de agosto de 2025

A única virtude de Trump


Trump tem uma só virtude e é epistémica: revela a realidade do poder, a realidade da vassalagem da elite do poder da UE aos EUA. Isso incomoda muito os euro-liberais, dado que pode levar a urgentes rebeliões anti-imperialistas dos povos dos estados europeus, recusando os indissociáveis militarismo, neoliberalismo e federalismo.

Adenda. A foto foi retirada de uma notícia do Financial Times (só acessível a assinantes), e continua lá, embora não se encontre a foto na fonte indicada pelo jornal. É sabido que circulam muitas fotos falsas, pelo que todo o cuidado é pouco. Aguardemos serenamente pela eventual correção.

Entretanto, o The Telegraph tem uma notícia com a mesma foto e outra tirada de outro ângulo. Custa mesmo a crer em tamanha vassalagem fotografada.


Relações de poder


“Sempre houve influência do poder económico sobre o poder político. Mas nunca foi tão evidente como agora”, informa-nos Augusto Santos Silva em entrevista, tomando como pretexto o seu livro sobre poder, esse bem posicional e relacional por excelência: mais para uns é menos para outros.

Nem sequer é caso para dizer mais vale tarde do que nunca, porque Santos Silva considera a globalização inevitável e porque está a referir-se apenas aos EUA, como se a União Europeia, a do Consenso de Bruxelas-Frankfurt, não fosse um exemplo, tão ou mais acabado, do reconhecido processo de desdemocratização, indissociável da globalização que essa mesma UE promoveu como ninguém. Como se Portugal, em crescente periferização, não fosse um exemplo, com as peculiaridades que são as suas.

No caso português, intelectuais como Santos Silva ainda não estão preparados para reconhecer um facto bruto, porque isso implicaria uma ética da responsabilidade, com a correspondente autocrítica: a subordinação do poder político ao poder económico tem nas privatizações um dos seus principais esteios. Afinal de contas, o PS, onde Santos Silva teve poder nas últimas décadas, privatizou mais do que o PSD. 

A esmagadora maioria dos deputados constituintes reconheceu, há quase cinquenta anos, que as nacionalizações eram conquistas democráticas, esteio da subordinação do poder económico ao poder político. Tinham uma noção adequada das relações de poder. Houve um imenso recuo intelectual. Santos Silva participou dele, lamento dizê-lo.

E que dizer de quem fala de relações de poder cientificamente, mas não fala de luta de classes, a principal relação de poder que se pode cientificamente prever? Falar dessa relação, partindo do caso português e não só, implicaria, por exemplo, analisar a redução dos direitos laborais, correlativa do aumento dos direitos patronais. Estes últimos confundem-se com a inflação dos direitos, com cada vez menos deveres e funções sociais, associados à propriedade privada dos meios de produção.

O incremento da exploração passou por aqui, não é um dado natural, como os intelectuais do P sem S no fundo sabem, ou não tivessem defendido aquelas alterações regressivas na estrutura de direitos e de deveres subjacente às relações laborais. 

E já que Santos Silva está tão atento aos EUA, lembro Warren Buffet, num momento de enorme lucidez: “a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la”. A social-democracia contribuiu para essa vitória e exauriu-se nesse processo com décadas dos dois lados do Atlântico Norte.

E que dizer das relações de poder entre Estados, mas também entre Estados e organizações supranacionais, como a UE? Santos Silva teria de analisar a forma como este Estado democrático perdeu poder ao perder instrumentos de política, transferidos para cima, para Bruxelas-Frankfurt, ou simplesmente eliminados, com a crescente irrelevância económica da fronteira política, essa grande regressão económico-política. Fazê-lo implicaria, uma vez mais, falar da responsabilidade do P sem S e, em breve, sem P.

Não, não é questão de pureza ter-se uma visão radical do poder, como parece insinuar no fim. É questão de realismo, incluindo do realismo brutalmente científico.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Como se o blogue fosse um diário: haja rostos, haja povos


Vila Franca de Xira, 17 de agosto de 2025

Acordo cedo, com boas notícias no meio da catástrofe: o fogo de Penedono foi extinto, salvou-se a encosta, o lugar inicial e final, mas tudo à volta é negro, incluindo em concelhos limítrofes – de São João da Pesqueira a Sernancelhe, passando pela Mêda. Estou com medo de ir lá, confesso. Estava tudo tão bonito e produtivo. Há-de voltar a ficar, com tempo, com trabalho paciente. Haja plano e apoio públicos.

Por razões familiares, vim para sul ontem à noite. Hoje, decidimos ir passear. Fomos pela nacional dez, passámos por Alverca, ali onde era a Mague, uma grande empresa metalomecânica, parte de um grupo que empregava mais de quatro mil trabalhadores nos anos 1980 (2700 só nas instalações de Alverca, segundo os Restos de Colecção). Foi vendida a uma multinacional holandesa que acabou por encerrá-la nos fatídicos anos 1990. 

Os antigos terrenos, onde o trabalho criava valor, são hoje um condomínio com elevada densidade de construção: do salário e do lucro à renda fundiária, do capitalismo industrial ao imobiliário. A financeirização do capitalismo em Portugal passou por aqui na desgraçada viragem do milénio, quando nos trancaram no euro. Sobrou uma placa de cimento comemorativa. Pobre país. 


Passeamos à beira Tejo e embrenhamo-nos numas ruínas industriais em busca de arte, alertados pelo vislumbre de um rosto com um keffiyeh, o heróico lenço palestiniano. Descobrimos Lénine para lá chegar. Tivemos uma imensa surpresa estética e ético-política, que em breve será revelada. Há luz no meio das trevas para quem procura desejosamente, posso garantir-vos. 


Para lá dessa antiga fábrica, o Museu do Neorrealismo, lugar de referência de VFX, a par da sua biblioteca pública, tem uma maravilhosa retrospetiva do pintor comunista Rogério Ribeiro. David Santos, o curador, fala e bem “no assombro do real que as cores e as formas da arte alcançam quando nos lembram o rosto de um povo”. 

 Haja rostos, haja povos.

domingo, 17 de agosto de 2025

Como se o blogue fosse um diário: haja vida


Coimbra, 16 de agosto de 2025

“Não vás para Penedono, só lá vais atrapalhar, além disso não há comunicações, ainda há para lá estradas cortadas e a circulação é de evitar neste contexto.” 

Sou um cidadão obediente. Fico por Coimbra. Refugio-me no meu lugar à sombra no Jardim Botânico. O banco estava ocupado, felizmente por pouco tempo. Dois turistas deixaram um mapa de Coimbra, repararei depois. Estava assinalado com alguns dos monumentos a visitar ou já vistos, não sei. Lá estava o meu jardim marcado. 

Tento concentrar-me na leitura dos capítulos finais de um livro sobre o “fascismo tardio” que comprei em Espanha, da autoria de Alberto Toscano. Ignora a tradição antifascista de Dimitrov, Cunhal e tutti quanti. Ou melhor, não ignora, refere-a caricaturalmente de passagem, literalmente numa linha. 

Fez mal, mas em compensação tem uma excelente síntese do fascismo a partir dos “marxistas negros” – “o capitalismo requer a desigualdade e o racismo entroniza-a”, sendo que o fascismo “pugna violentamente por entronizar a desigualdade em condições de crise capitalista, criando simulacros de igualdade para alguns”. 

Contém ademais uma estimulante interpretação histórica dos “tempos para o fascismo, dentro do fascismo e do fascismo”. Os tempos para o fascismo são os do “vírus capitalista” e das suas mutações, denunciado por Karl Polanyi, citado, mas pouco escalpelizado. 


A verdade é que estou com dificuldade em concentrar-me. Informam-me, pelo WhatsApp da família, que tenho familiares heróicos a impedir que as chamas saltem a estrada. 

São os tais “populares” de que fala uma certa televisão, tão arrogante quanto desconhecedora do país e das suas gentes, totalmente desorientada, ou melhor orientada pela transformação do fogo em espetáculo monetarizável para gáudio de pirómanos. E há nas televisões uns idiotas a dizer mal do povo do interior, ouço dizer. É o mesmo capitalismo televisivo que não hesita em televisionar, em promover, o fascismo. 

Enervado, recebo uma foto de um souto por onde o fogo passou. Tinha sido capinado e só ficou chamuscado, há-de voltar a florescer. O castanheiro resiste, como o povo de um concelho pequeno, Penedono, onde, segundo a Presidente da Câmara Municipal, ardeu 90% da sua bela área verde, com prejuízos óbvios para a cultura mais rentável, a da castanha. 


Levanto-me e caminho sem mapa. Passo ao lado da maternidade onde nasceu o meu filho e encontro um camarada, daqueles imprescindíveis. Eu sou um democrata e patriota, não sou militante do Partido. Considero camaradas todos aqueles com quem partilho um longo caminho, sejam ou não militantes. Tinha acabado de ser avô, felicito-o e afasto-me emocionado. Haja vida.

Ler


Se Nuno Teles não vem ao blogue, o blogue vai até ao professor de economia da Universidade Federal da Bahia e às suas revelações de economia política internacional. É caso para dizer: vê-se melhor do outro lado.

sábado, 16 de agosto de 2025

O que fazer?


O que fazer quando tudo arde? O que escrever quando tudo arde? É fraco consolo saber que está tudo limpo à volta da casa cercada por castanheiros, árvore resistente, árvore protetora. É só um lugar, ainda que seja o nosso lugar familiar, mas e o resto? A Presidente da Câmara Municipal de Penedono, do PSD, denunciou: fomos deixados ao abandono. 

Socorro-me de outros para escrever, dependemos sempre de outros. “A resposta que pode ser dada à degradação por vezes violenta do estado da natureza depende, em última instância, da natureza do Estado”, esclarece Pierre Blanc em Géopolitique et Climat

Portugal já não é bem um Estado. Sem instrumentos de política económica decentes, carcomido pela austeridade permanente, dominado por interesses de classe predadores, de resto apoiantes do processo de fascização em curso, o Estado nem uma frota robusta de aviões de combate a incêndios detém. 

É claro que podemos ter todos os aviões, mas o território ou é ocupado por gente e pelo seu trabalho, na terra e outro, ou haverá sempre, e cada vez mais, combustível em vez de território nacional. 

O Governo acabou de inscrever mais mil milhões de euros no Orçamento este ano para o desperdício armamentista, note-se. Luís Montenegro, um videirinho, anunciou em plena catástrofe o regresso de carros a fazer barulho, vulgo Fórmula 1, essa expressão cultural do capitalismo fóssil que nos conduziu a este estado da natureza. 

Entretanto, lembro-me de Susana Moreira Marques, da sua definição de patriotismo que falta às elites do poder, as que abandonam o país: 

 “Desiludo-me mais quando é o meu país. A negligência, a desorganização, o abandono, os contrastes entre belo e feio, triste e alegre, pobre e menos pobre, que observo quando ando na estrada, ferem-me como não acontece se viajo em países distantes em que as falhas me podem suscitar curiosidade ou até mesmo emoção, mas não me interpelam directamente. Pergunto-me, inevitavelmente, o que posso fazer. Pergunto-me o que diz sobre mim o facto de amar esta paisagem.”

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Maquete


Chama-se “Maquette for a monument to the contemplation of the possibility of mending a hole in a sock” [Maquete para um monumento à contemplação da possibilidade de remendar um buraco numa meia] e é da autoria de Jeff Wall, fotógrafo que tem uma retrospetiva no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), junto ao Tejo, em Lisboa. Não há tradução na exposição, ouça.

O MAAT, juntamente com a revista Electra e assim, é parte do branqueamento cultural da EDP, uma empresa criada pelo Estado português e que acabou na mão de estrangeiros, parte da cultura antipatriótica e logo antidemocrática da elite do poder. 

E que tal uma maquete para um monumento à contemplação de um país esburacado pelos superlucros de uma EDP ruinosamente privada?

Ler João Leal Amado e vir para a rua lutar


quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A esquerda brâmane em Portugal


Um diz que o povo é racista, o outro que a sociedade portuguesa, nem mais, nem menos, está doente por causa de situações em caixas de comentários e ainda outro afiança que ouve constantes boçalidades racistas em cafés, naturalmente representativas de milhões. Ainda ninguém usou o método Fátima Bonifácio e fingiu escutar a empregada doméstica para daí confirmar uma previamente tirada lição histórico-filosófica reacionária, mas já faltou mais.

Tenho andado a colecionar as frequentes tiradas elitistas da «esquerda brâmane» em Portugal, termo cunhado por Thomas Piketty e coautores para dar a ver o afastamento em relação às classes populares maioritárias daquilo que passa por elite diplomada, cada vez mais dominante na social-democracia ou nos ecologistas com bombas e sem luta de classes nos países do Atlântico Norte. Em Portugal, o Livre é o partido da esquerda brâmane por excelência.

O resto do artigo pode ser lido no AbrilAbril.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Da falência moral


A Al Jazeera oferece o espelho onde a comunicação social dominante no Atlântico Norte pode mirar a sua falência moral: “nos campos de morte de Gaza, o jornalismo enfrenta a sua hora mais negra”. 238 jornalistas foram assassinados por “Israel” na Palestina. 

Abaixo deste importante artigo de Asef Hamidi, diretor de informação da Al Jazeera, está uma banal “notícia” do jornal Público, onde a tal falência moral está patente em pleno genocídio, a começar na palavra “Israel”. 

Como comentou Raquel Ribeiro: “Até o Guardian e o Financial Times, usando o mesmo texto-base da Reuters, têm títulos mais decentes. Isto são escolhas conscientes.”
 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Descobrir


Um livro sobre o fascismo tardio, que comecei agora a ler, tem em epígrafe uma frase, daquelas que nunca mais se esquecem, retirada de um discurso proferido por Langston Hughes no Terceiro Congresso dos EUA contra a Guerra e o Fascismo, realizado em 1936: 

“O fascismo é o novo nome para o tipo de terror que o negro enfrentou desde sempre na América.” 

Langston Hughes (1901-1967), que até a este momento desconhecia, foi um poeta e militante antifascista norte-americano, aparentemente uma das referências do chamado Renascimento de Harlem

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Aposta, fim, começo


Esta fotografia mostra uma idosa de mais de oitenta anos a ser carregada pela polícia para ser presa. Pode ser acusada de terrorismo e condenada a 14 anos de prisão por ter exibido um cartaz numa concentração. Apelava ao fim do genocídio e dizia Palestine Action, nome de uma brava organização. Ontem, a polícia prendeu mais de quinhentas pessoas em Londres, metade com mais de sessenta anos. 

Mas esta fotografia revela também uma aposta política plausível: o ignominioso partido trabalhista, tão representativo da deriva com décadas da social-democracia europeia, acabou. O seu último ato foi de ativa cumplicidade com o genocídio cometido pelo colonialismo sionista, estando de resto bem acompanhado pela social-democracia alemã, em modo 1914, em modo de apoio a crimes contra a humanidade. Também os há assim em Portugal, por ação e omissão.

No ano passado, a atual ministra da administração interna britânica, Yvette Cooper, responsável pela ilegalização da Palestine Action, sob acusações falsas de ser uma organização terrorista, recebeu um financiamento de campanha de mais de duzentas mil libras por parte de sionistas. O dinheiro é quem mais ordena no capitalismo puro e duro, sempre prenhe do imperialismo genocida. 

Ontem foi o dia em que Jeremy Corbyn e Zarah Sultana chamaram os manifestantes londrinos pelo nome que mereceram: heróis. O seu partido em formação, já com mais de meio milhão de aderentes, é a alternativa que vai acabar com as últimas encarnações do duradouro triunfo de Thatcher, os criminosos Blair, Starmer e companha limitada. Sem apostas esperançosas é como se tivéssemos desistido.

domingo, 10 de agosto de 2025

Grande


No seu último livro – The Road to Freedom: Economics and the Good Society –, Joseph Stiglitz, economista social-democrata de matriz neoclássica (“Prémio Nobel” de Economia), refere o grande Antonio Gramsci, mas omite a sua estatura marxista gigantesca. 

Esta omissão conveniente não é o pior que tem acontecido intelectualmente a este criativo discípulo de Lénine (a quem não podemos dizer adeus, afinal), fundador, com o tantos vezes esquecido Palmiro Togliatti e outros, do Partido Comunista Italiano. 

Morreu nas prisões do fascismo, não sem antes nos deixar vários cadernos aí escritos, disponíveis na íntegra em língua portuguesa, graças à sua popularidade no Brasil, onde estão grandes estudiosos do seu pensamento. Estes não evitaram, pelo menos desde os terríveis anos 1980, que Gramsci fosse alvo das piores sevicias intelectuais às mãos de certa “teoria crítica”, incluindo nas suas cada vez mais frequentes declinações euro-liberais

Insisto, porque muitos insistem em ignorar uma das principais mensagens de Gramsci: é preciso encontrar os sinais deixados pelos subalternos nas peculiares e contraditórias tradições nacionais. 

Trata-se de uma condição político-cultural necessária para criar o que designava por vontade geral nacional-popular hegemónica, capaz de saltar das sempre parciais lutas económicas para o plano mais abrangente da liderança ético-política, criadora de uma nova ordem, de uma sociedade regulada de cariz socialista. 

Hegemonia é em Gramsci a articulação entre coerção minimizada e consenso maximizado, uma congruência consciente, obra de um bloco histórico, entre as sempre interligadas relações sociais de produção e superestruturas político-ideológicas, digamos. 

E é para a mudança progressiva, mas radical, que serve o “novo príncipe”, o intelectual coletivo, o Partido, segundo o particularmente atento leitor de Maquiavel. Tudo tem de ser pensado e organizado no fluxo da história: leninismo para guerra de posição, em suma.

sábado, 9 de agosto de 2025

Contrariar a corrosão de caráter


John Burn-Murdoch, responsável por dados e colunista do Financial Times, compilou dados impressionantes para os EUA e perguntou: “Será que a internet está a mudar as nossas personalidades para pior?”. Não sabia que o capitalismo sem freios e contrapesos se chamava internet agora.

Repito-me, porque as crenças são para ser reafirmadas: as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são a suas, a tarefa da política socialista é desenvolver as capacidades e humanizar as circunstâncias.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Várias bombas, várias medidas


Em 2022, um historiador liberal, agora militante do Livre, chamado Rui Bebiano afiançava, não o esqueçamos, que “enquanto alguém não inventar outra humanidade”, seria lamentavelmente natural que sentíssemos – esta mortífera primeira pessoa do plural – maior “proximidade” “por brancos, maioritariamente loiros e de olhos azuis, educados numa cultura com pontos de contacto com a ‘nossa’, vivendo praticamente como ‘nós’”. 

Falava da Ucrânia, onde desgraçadamente morreram cerca de setecentas crianças numa guerra já com mais de três anos. Na Palestina, onde, na realidade, estão pessoas e até uma civilização que nos são mais próximas, para usar o seu dúbio termo – dos olhos e cor da pele e do cabelo às oliveiras – foram mortas dezenas e dezenas de milhares de crianças num genocídio colonial. Mas a empatia das elites da “esquerda” e da direita não é a mesma e muito menos são as mesmas as implicações políticas que retiram. Eurocentrismo é isto, para não dizer pior. É no que dá falar em “conflito israelo-palestiniano”. 

O pai-fundador do Livre, outro historiador liberal, foi à embaixada do Estado colonial sionista que está a cometer o genocídio, não o esqueçamos também: a história não acabou e a memória também não. É o mesmo antimarxista que defende a europeização das armas nucleares francesas ou que incensou o racista Woodrow Wilson. Há uns meses atrás, não sabia se havia de chamar genocídio ao genocídio palestiniano. 

Isto está tudo ligado, passado e presente, quando se é consistente ideologicamente. E não me lembro de Rui Tavares ter sido criticado, muito menos de ter sido alvo de uma campanha mediática nesse contexto. Afinal de contas, que outro líder partidário, neste caso tão absoluto quanto informal, tem à “esquerda” o espaço mediático dele e logo no belicista Grupo Impresa? 

Várias bombas, várias medidas...

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Guerra e paz em Portugal


Escrito em coautoria com Paulo Coimbra o artigo Guerra e paz em Portugal saiu no Le Monde diplomatique de agosto e começa assim, com referências omitidas: 

O país está em guerra? A fazer fé no primeiro-ministro Luís Montenegro, está: «Nós estamos em guerra também às portas e dentro do nosso país. Nós todos os dias somos alvo de ataque nas nossas instituições públicas e nas nossas instituições privadas (…) Nós todos os dias, nomeadamente no ciberespaço, somos colocados sob ameaças reais que, se se concretizarem nos seus objetivos, colocam em grande dificuldade, em grande contrariedade, a nossa capacidade de criar riqueza». 

No Título II, Capítulo II, Artigo 135, alínea c), a Constituição da República Portuguesa é muito clara sobre as competências do presidente da República, bem como do governo e da Assembleia da República, nesta matéria: «Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República». Obviamente, não estamos em guerra, até porque não foram acionados os procedimentos que a Constituição prevê. Nunca saímos, isso sim, da cada vez mais intensa guerra de classes. 

Infelizmente, o marxismo mais simples fornece neste sombrio contexto histórico nacional e internacional enquadramento suficiente para compreender criticamente as declarações de Montenegro, bem como as suas implicações momentosas para a democracia e para o Estado social de base nacional. Estes estão internacionalmente ameaçados pela corrida armamentista, com a conivência de uma elite do poder com um intenso complexo de vira-lata. 

Pelo meio polemiza assim: 

Perante isto, o impulso antifascista pela paz exige o maior esforço político de unidade. Este terá de ser feito pela base, já que as elites políticas sociais-democratas, mesmo da chamada ala esquerda do PS, se deixaram enredar na armadilha belicista, parecendo que estão convencidas de que é possível ter tudo: desperdício militarista e Estado social. 

Um exemplo basta, ainda para mais de uma antiga diplomata como Ana Gomes, alguém que pelo seu percurso deveria dar toda a prioridade à resolução pacífica dos conflitos: «Importa que a Esquerda em Portugal (…) interiorize que a guerra é um assunto demasiado grave para ser deixado apenas aos militares, à direita e aos homens». 

No artigo em causa, a oposição a Trump é apenas nominal e as notícias da morte da OTAN são manifestamente exageradas, tudo em nome da autonomia militar de uma União Europeia crescentemente pós-democrática e sem rumo estratégico. E isto embora os tratados dessa União proíbam expressamente que o orçamento comum seja utilizado em «despesas decorrentes de operações com implicações militares ou de defesa». Fazendo tábua rasa da História, é como se o neoliberalismo que está no ADN da União Europeia desde a sua fundação em Maastricht, e ainda para mais agora armado, tivesse algo a ver com os valores da esquerda. Espelha as consequências de se imaginar no centro-leste europeu, entre os setores mais militaristas e federalistas da União Europeia. Na prática, e aí a teoria é outra, estes nunca passaram sem a OTAN, como se vê. 

É como se Ana Gomes estivesse em cima de uma qualquer fratura geopolítica. Não está. Está num país no extremo ocidental do continente, sem inimigos externos, onde a distância periférica se traduz numa vantagem (já bem bastam todas as outras desvantagens da inserção periférica), pelo menos a partir do momento em que a questão da fronteira com Espanha foi resolvida e que os militares de Abril e as lutas dos povos das colónias acabaram com a guerra colonial. Está um contexto geopolítico bem mais distendido, por muito que se tente negar tal padrão histórico. É preciso pensar o mundo a partir de Portugal. Não temos de ser arrastados pelo imperialismo. 

Finalmente, faço notar que o artigo foi escrito antes de se conhecer a “capitulação”, a expressão é do circunspecto Financial Times, da UE aos EUA de Trump também em matéria comercial... 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Um jornal com memória


Todos os números da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, desde o primeiro, de abril de 1999, estão agora acessíveis no sítio Internet do jornal, em exclusivo para os assinantes. São mais de 26 anos, a que se acrescenta sempre o número do mês, com os artigos inéditos publicados online. São já mais de 300 edições completas, mais de 850 mapas e infografias detalhados, mais de 3200 autores de referência, mais de 5300 imagens e obras de arte, mais de 8800 artigos completos. Tudo acessível à leitura online, através de um motor de busca avançado, por temas, palavras-chave, datas, países, personalidades, entre outros. Tudo organizado cronologicamente, por temas e com ligações inteligentes entre eventos, regiões, autores e temas relacionados. 

Foi um trabalho de anos, que exigiu muito da equipa que, na cooperativa cultural Outro Modo, todos os meses leva este jornal às bancas e aos ecrãs.

Sandra Monteiro, Arquivo vivo, memória presente, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, agosto de 2025.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

No coração do Douro


Já perdi a conta ao número de vezes que fiz o percurso ferroviário entre o Pinhão e o Pocinho. Não conheço percurso mais belo, parte da linha do Douro que o serviço público de televisão, sempre ameaçado, documentou com realismo, ou seja, com beleza. O serviço público ferroviário também está ameaçado. Tudo o que é decente está sob ameaça do liberalismo até dizer chega.

É sempre como se fosse a primeira vez, até porque levo lá pessoas que o fazem pela primeira vez. Como defende Adam Smith em A Teoria dos Sentimentos Morais, infelizmente por traduzir, o princípio da simpatia permite-nos também olhar de novo para o mundo, colocando-nos nos sapatos de outrem, repetindo sensações, associações e ideias como se fosse a primeira vez, num exercício de imaginação benéfico para a mente e para o corpo, sem separações artificiais. 

Enfim, para quem está na fronteira entre o granito e o xisto, o castanheiro e a vinha, o carvalho e a oliveira ou a amendoeira, chegar ao Pinhão implica descer por encostas de vistas panorâmicas, parando em aldeias onde se notam as clivagens sociais profundas que marcam o Douro e que se inscrevem nos corpos. 

Chegamos ao coração do Douro, ao Pinhão, estamos numa “pousa” mais longa, de férias, graças a muitas lutas sociais. Nascemos com uma dívida social, não nos deixemos quebrar pelo individualismo. O comboio chega a horas, ficamos numa carruagem suíça de 1974. Não tenho recursos literários para descrever a paisagem. Cheira a figos e a comboios, cheira a Mediterrâneo, que só acaba onde acabam as oliveiras, como dizia Braudel. 


Mas, de repente, lembro-me da Palestina, onde o colonialismo sionista comete um genocídio, ali onde sempre arrancou oliveiras. 

Lembro-me da crise do Douro, das importações desregradas de vinho, obra do mercado único e da política liberal única. 

E imagino um país sem austeridade, liberto do liberalismo, um país que tivesse investido na ferrovia, com ligações a todas as capitais de distrito, um país que não estivesse mais de três décadas atrasado em relação a Espanha na alta velocidade, um país que tivesse um eixo vertical, de norte a sul, com ligação à Galiza e à Andaluzia, mais um eixo horizontal ao centro, com ligação a Madrid. Viseu, onde tenho raízes, é a maior capital de distrito europeia sem ligação ferroviária. 

Relembro um memorável ensaio sobre comboios escrito por Tony Judt, um historiador social-democrata já falecido, um sionista na juventude que se tornou crítico severo do colonialismo sionista. 

Não há alegria de verão que não venha misturada com tristeza outonal. Mas faz bem imaginar um país decente no meio do Douro, pátrias libertadas, com figos e azeite e vinho e frutos secos bons para todos. Uma abundância regrada, uma “sociedade regulada”, como dizia Gramsci.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trabalhadores descartáveis como modelo de desenvolvimento


Nas últimas duas décadas, cada reforma laboral foi apresentada como um passo necessário para tornar a economia portuguesa mais dinâmica e atractiva para o investimento. Para sustentar essa ideia, refere-se muitas vezes um indicador da OCDE sobre a protecção do emprego, onde Portugal surge entre os países com maior grau de protecção.

Mas há coisas que nunca nos dizem sobre esse indicador. Primeiro, ele refere-se apenas à protecção contra o despedimento individual sem justa causa; se olharmos antes para a protecção do emprego em geral (que inclui, por exemplo, os despedimentos colectivos), os valores de Portugal são semelhantes aos de países como a República Checa, a Letónia ou a Holanda, que são frequentemente apontados como economias muito competitivas. Segundo, uma coisa é o que está na lei, outra é o que acontece de facto: a OCDE tem outro indicador que mede a eficácia da aplicação prática dessas regras, onde Portugal cai para um distante 16.º lugar. Por fim, os estudos disponíveis não mostram qualquer correlação robusta entre o grau de protecção no emprego e o desempenho das economias.

É interessante vermos o que pensam sobre isto os investidores estrangeiros que ponderam investir em Portugal. A consultora EY faz essa pergunta todos os anos no seu Attractiveness Survey (Inquérito à Atractividade). Sabem o que os executivos responderam no inquérito mais recente, no que respeita à protecção do emprego? Que, face a outros países concorrentes, “a facilidade de contratação e despedimento no mercado de trabalho português” é uma das vantagens do país, sugerindo que “a regulamentação laboral favorece a agilidade e a adaptabilidade das empresas” (p.36). Não é bem esta história que contam os partidos de direita, pois não?

Em resumo, o mercado de trabalho português é hoje muito mais flexível do que alguns sugerem (seria estranho que não fosse, depois de tantas revisões para o flexibilizar). E não é de todo evidente que as regras actuais prejudiquem a competitividade da economia nacional.

Mas há duas coisas que sabemos. Primeiro, sempre que se reduz a protecção dos trabalhadores, seja qual for o impacto económico, degradam-se as condições de vida de pessoas concretas e, com frequência, transferem-se rendimentos de quem tem menos para quem tem mais, tornando a sociedade ainda mais desigual. Segundo, esta obsessão com a liberalização do mercado de trabalho envia um sinal claro aos investidores sobre o tipo de economia que queremos desenvolver.

Se o objectivo é promover uma economia baseada na inovação, nas qualificações e na elevada produtividade, talvez estes não sejam os melhores incentivos. Um mercado de trabalho que privilegia a flexibilidade total e o despedimento fácil pode ser atractivo para algumas empresas no imediato. Para o conjunto do país, no médio e longo prazo, só favorece a especialização numa economia sem futuro.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.