Quem não quiser falar sobre capitalismo televisivo, deve calar-se sobre o fascismo televisionado. O fascismo sai do ventre do liberalismo económico, unidos pelo cordão da grande propriedade levada até às suas últimas consequências políticas.
Estas duas hipóteses são corroboradas por figuras como Miguel Morgado, liberal até dizer chega, com tempo de antena sem contraditório na sociedade indigente de comunicação: “Não vamos conseguir gerir as nossas florestas enquanto não pagarmos aos proprietários a gestão dos terrenos com dinheiro dos contribuintes”.
Duvido que faça ideia do que está a dizer, a começar pelo “dinheiro dos contribuintes”, tema para outro texto sobre a natureza da moeda e dos impostos. No que à “gestão dos terrenos” diz respeito, os proprietários até já são subsidiados, sobretudo os muito grandes, dominantes lá para o sul, que isto anda mal distribuído, diz-se há muito.
Escrevo também enquanto co-proprietário de terrenos agrícolas-florestais. Arderam-nos cerca de um quarto dos castanheiros, contados hoje, com fotos e tudo, até para efeitos de pedido de apoio no quadro dos incêndios.
Como eles se repetem, repito a introdução do editorial que escrevi há um ano para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa:
Perante mais uma desolação cinza e negra de muitos milhares de hectares, desta vez em Setembro, um refrão proprietário ecoou nas televisões, acompanhado de uma exigência: os donos dos terrenos não têm a obrigação de os limpar se estes não gerarem rendimento adequado, pelo que o Estado deve subsidiar os proprietários florestais. Afinal de contas, os proprietários gerariam benefícios para o conjunto da comunidade, o que os economistas convencionais chamam de “externalidades positivas”.
Na realidade, os donos de terrenos rústicos florestais têm a obrigação legal de os limpar regularmente. É, entre outras, a contrapartida pelos múltiplos custos em que a comunidade política incorre para lhes garantir a criação e protecção do direito de propriedade privada. É necessário reconhecer que as acções e as omissões proprietárias têm implicações, tantas vezes negativas, sobre o que é dos outros, sejam indivíduos ou colectivos. Na União Europeia, não há outro país onde a propriedade privada da floresta seja tão prevalecente. Por todo este país de propriedade privada esmagadora e tantas vezes pulverizada, multiplicam-se histórias de quem tem os terrenos limpos, lado a lado com o desmazelo e a irresponsabilidade proprietária.
Tudo o que fazemos com o que é nosso tem implicações sobre o que é dos outros, sejam bens materiais ou imateriais, digamos: saúde, segurança, tranquilidade.
A propriedade é sempre uma relação social, politicamente determinada. E, por exemplo, uma coisa é plantar e cuidar de floresta autóctone, outra coisa é plantar milhares e milhares de hectares de eucalipto no quadro de um capitalismo verde-negro, totalmente desadequado na época das alterações climáticas. Este capitalismo é demasiado tolerado por um Estado com capacidades e conhecimentos brutalmente enfraquecidos nesta área, graças à destruição de serviços florestais pelos processos de neoliberalização em livre curso desde o cavaquismo.
A Constituição da República Portuguesa prevê o direito de propriedade privada, mas subordina-o ao interesse geral e incrusta-o num feixe de direitos e deveres económicos e sociais que o transcendem e limitam, até pela existência de outros direitos de propriedade, pública ou cooperativa, no quadro de uma economia mista, condição material mínima para a subordinação do poder económico ao político. Apesar disso, quem se deixe intoxicar pela comunicação social dominante, ficará convencido de que ser proprietário é só ter direitos, cada vez mais direitos, com nulas obrigações, com nulo reconhecimento de qualquer função social; ou melhor, com todos os deveres a serem transferidos para o Estado e, assim, socializados.
A ideologia proprietária televisionada afiança falsamente que o que é de todos não é de ninguém, o que significaria que poderíamos retorquir: será que os deveres que são de todos, sem os quais de resto não existiria propriedade privada, não são de ninguém? As televisões ditas privadas usam e abusam de um bem público licenciado pelo Estado — o espectro hertziano terrestre destinado à radiodifusão —, furtando-se aos seus deveres de formar e informar, sem que haja qualquer consequência: claramente, a ideologia dominante é a dos seus proprietários, num capitalismo televisivo sem freios e contrapesos, até pelo enfraquecimento do poder dos jornalistas. Sim, por todo o lado, as relações de propriedade são relações de poder.
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