terça-feira, 5 de agosto de 2025

No coração do Douro


Já perdi a conta ao número de vezes que fiz o percurso ferroviário entre o Pinhão e o Pocinho. Não conheço percurso mais belo, parte da linha do Douro que o serviço público de televisão, sempre ameaçado, documentou com realismo, ou seja, com beleza. O serviço público ferroviário também está ameaçado. Tudo o que é decente está sob ameaça do liberalismo até dizer chega.

É sempre como se fosse a primeira vez, até porque levo lá pessoas que o fazem pela primeira vez. Como defende Adam Smith em A Teoria dos Sentimentos Morais, infelizmente por traduzir, o princípio da simpatia permite-nos também olhar de novo para o mundo, colocando-nos nos sapatos de outrem, repetindo sensações, associações e ideias como se fosse a primeira vez, num exercício de imaginação benéfico para a mente e para o corpo, sem separações artificiais. 

Enfim, para quem está na fronteira entre o granito e o xisto, o castanheiro e a vinha, o carvalho e a oliveira ou a amendoeira, chegar ao Pinhão implica descer por encostas de vistas panorâmicas, parando em aldeias onde se notam as clivagens sociais profundas que marcam o Douro e que se inscrevem nos corpos. 

Chegamos ao coração do Douro, ao Pinhão, estamos numa “pousa” mais longa, de férias, graças a muitas lutas sociais. Nascemos com uma dívida social, não nos deixemos quebrar pelo individualismo. O comboio chega a horas, ficamos numa carruagem suíça de 1974. Não tenho recursos literários para descrever a paisagem. Cheira a figos e a comboios, cheira a Mediterrâneo, que só acaba onde acabam as oliveiras, como dizia Braudel. 


Mas, de repente, lembro-me da Palestina, onde o colonialismo sionista comete um genocídio, ali onde sempre arrancou oliveiras. 

Lembro-me da crise do Douro, das importações desregradas de vinho, obra do mercado único e da política liberal única. 

E imagino um país sem austeridade, liberto do liberalismo, um país que tivesse investido na ferrovia, com ligações a todas as capitais de distrito, um país que não estivesse mais de três décadas atrasado em relação a Espanha na alta velocidade, um país que tivesse um eixo vertical, de norte a sul, com ligação à Galiza e à Andaluzia, mais um eixo horizontal ao centro, com ligação a Madrid. Viseu, onde tenho raízes, é a maior capital de distrito europeia sem ligação ferroviária. 

Relembro um memorável ensaio sobre comboios escrito por Tony Judt, um historiador social-democrata já falecido, um sionista na juventude que se tornou crítico severo do colonialismo sionista. 

Não há alegria de verão que não venha misturada com tristeza outonal. Mas faz bem imaginar um país decente no meio do Douro, pátrias libertadas, com figos e azeite e vinho e frutos secos bons para todos. Uma abundância regrada, uma “sociedade regulada”, como dizia Gramsci.

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