A economia convencional fixou um conjunto de condições teóricas para que os mercados sejam considerados eficientes: da ausência de incerteza a agentes económicos omniscientes, passando pela ausência de interdependências sociais. A partir desta ficção, construiu uma tipologia de “falhas de mercado”, tão circunscritas quanto possível, que incumbiria ao Estado, qual caixa de ferramentas funcional, corrigir.
A existência de bens públicos seria uma dessas falhas. Tudo se avalia por uma bitola imaginária.
Sob a aparência de condições técnicas – não é possível excluir ninguém do acesso ao bem (não-exclusão) e o “consumo” do bem por alguém não diminui a quantidade disponível para outrem (não-rivalidade) – esconde-se a inevitável deliberação política valorativa: que bens, que serviços, devem ser públicos?
Aliás, um dos economistas convencionais que fixou as tais condições teóricas, Kenneth Arrow, um socialista cauteloso, dizia o seguinte: “A definição de direitos de propriedade assente no sistema de preços depende precisamente da ausência de universalidade da propriedade privada e do sistema de preços”.
Serve esta conversa para dizer, em primeiro lugar, que a distinção público-privado não é tanto técnica quanto profundamente política, atravessada por relações de poder. Todos os feixes de direitos e de deveres, incluindo os que configuram relações sociais de propriedade, são parte de um processo politicamente instituído prévio. Por definição, este não pode ser orientado pelo irrealista critério de eficiência, tal como a economia convencional o define. Os tais feixes dependem de facto de formas de ação coletiva, sem as quais não há ação individual em sociedades marcadas pela interdependência social generalizada.
Em segundo lugar, serve esta conversa para falar de parques públicos, dado que li um artigo na Jacobin sobre o papel dos socialistas na sua defesa e expansão, tendo por referência sobretudo a história dos EUA.
Os parques públicos fazem parte da tantas vezes invisibilizada infraestrutura social da vida decente. Ninguém deve ser excluído, sendo um espaço de fruição coletiva, uma ilha de socialização igualitária saudável contra a mortífera pulsão mercadorizadora do capitalismo sem freios e contrapesos, um sistema que cria mecanismos de exclusão e opera pela promoção da rivalidade. Na ausência de ação coletiva robusta impera a previsão do economista keynesiano John Kenneth Galbraith: “opulência privada, esqualidez pública”, o seletivo porno-riquismo das Paulas Amorins para menos de 1%, no fundo.
Repito-me, bem sei, mas é preciso insistir que a liberdade a sério está para lá do liberalismo:
Só a ação pública socialista pode libertar os cidadãos da submissão aos mercados, que colocam obstáculos liberticidas no acesso a uma série de bens essenciais, procurando inscrever institucionalmente um princípio distributivo que casa liberdade com justiça social, duas ideias distintas, mas na prática ligadas: de cada um segundo as suas possibilidades a cada um segundo as suas necessidades.
A provisão pública e os impostos progressivos são um dos meios coletivos para a maioria aceder à liberdade por via do acesso a bens e serviços cuja natureza muda para melhor, até porque não há barreiras pecuniárias: de facto, um parque público não é um centro comercial, uma reserva natural não é um jardim zoológico, uma biblioteca pública não é uma livraria, uma escola pública não é uma escola privada e assim sucessivamente.
E não é a chamada “tirania das pequenas decisões” individuais pelos mercados que nos pode dar acesso às infraestruturas públicas, em sentido amplo, e às liberdades que só nelas, e através delas, se podem usufruir, incluindo pela deliberação coletiva na gestão do que é de todos.
Aliás, qualquer feixe de liberdades só se alcança coletivamente, também graças a impostos, havendo liberdades que só se usufruem coletivamente, incluindo a liberdade de ser cidadão de um país com capacidade para decidir sobre o seu futuro de forma independente, o que pressupõe o controlo público da moeda e do crédito ou o controlo público de sectores estratégicos. Em mãos privadas, como se vê com a EDP, estes transformam-se em autênticos governos privados, concentrações de poder estrangeiro que colocam em causa a autoridade do grande garante das liberdades, o Estado democrático nacional.
E, já agora, o que dizer da liberdade de viver uma vida longa e saudável, num ambiente respirável, com ar limpo, água potável, uma rede de energia sustentável ou transportes públicos acessíveis? Só a ação coletiva liberta.
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