sábado, 23 de agosto de 2025

Confesso que nasci


Nasci a 22 de agosto de 1977 na Maternidade Daniel de Matos, em Coimbra, fez ontem 48 anos: João Pedro Amaral Cabouco Rodrigues. A minha mãe ia fazer 25 anos e o meu pai 24. 

Ele estava a dar os primeiros passos na advocacia, então sindical, ela era professora de português e de francês, também a começar na escola pública, então em franca expansão, ambos originários do concelho de Penedono. 

Ele foi o primeiro da família a licenciar-se um ano antes do meu nascimento, um ano depois do pai, sapateiro transformado em operário da construção civil, ter falecido num acidente de trabalho em França. O Estado social já existia em França, graças à classe trabalhadora, e fez diferença. O meu avô materno, pequeno empresário, também já tinha falecido. 

Tive as minhas avós, em Penedono e na Granja, por menos tempo do que seria necessário, nunca é suficiente. Ficaram muitos verões azuis e natais com sincelo e muito mais, incluindo o exemplo do decoro, virtude beirã, sempre achei. E ficaram tios e tias e primas e primos solares. E paredes, sobretudo de granito e de vidro

Ao pé da minha primeira casa, quando havia controlo das rendas (antes destas serem liberalizadas para os novos contratos em 1990...), a caminho da escola primária dos Olivais, que fica ao lado da faculdade onde por acaso acabaria a ensinar, estava escrito numa parede: “não à lei Barreto/77”. Sempre me chamou a atenção por causa do ano. 

Essa lei foi o início de destruição da Reforma Agrária, essa grande conquista da Revolução, soube precocemente, letras maiúsculas. Que essa gente esteja hoje na direita pura e dura, diz tudo sobre certos e determinados percursos, materialmente pavimentadas pelas contrarreformas neoliberais. 

Isto não está nada fácil, mas não há alternativa que não passe por persistir. Memorizei um poema descoberto recentemente sobre o que se faz a quem tritura os sonhos. Memorizai também. 

Se olhar apenas em redor do meu umbigo e decidir não ver o resto, confesso que não me posso mesmo queixar, antes pelo contrário: filho, árvores e livros, por esta ordem; família, amigos, trabalhos e camaradas, sem ordem, está tudo entrelaçado por motivações predominantemente intrínsecas, creio. 

Não generalizo, no entanto, ensinaram-me com convicção a não o fazer desde muito cedo: análise concreta das situações concretas, muita atenção ao contexto, João (afinal de contas, a mobilidade social foi mesmo ascendente; do sindicato à empresa, da cidade ao regresso à aldeia, circulou por muitas esferas). Ouves o eco que faz o avô quando falo, Pedro? 

Como qualquer pessoa, faço o melhor de que sou capaz nas circunstâncias que são as minhas. Simplesmente, tive imensa sorte nas circunstâncias, a começar pela lotaria nacional-familiar. O mérito está tão sobrestimado. 

Se tive a oportunidade de desenvolver algumas capacidades, foi também graças à ação coletiva de muitos que me tocaram, direta e indiretamente, sem o saberem na maior parte dos casos, sem eu o saber demasiadas vezes. 

Nasci com uma imensa dívida social, sobretudo aos que resistiram durante 48 anos, aos que se lançaram na construção do socialismo, mesmo que “só” tenham conseguido um Estado de direito, democrático e social, de resto cada dia mais frágil. A fragilidade começou pela alteração das relações de propriedade, pelas privatizações, e continua com outras formas de ataque, com décadas, à soberania popular.

E ainda há algo para defender e sobretudo muito que (re)construir. Escrevi grande parte destas linhas numa biblioteca pública, luxo comunal à beira Tejo. Infelizmente, já não há a Mague aqui perto, um só exemplo. Ficaríamos todos mais seguros se houvesse uma classe operária mais organizada. Sabemos, pela história da democracia, que dependemos dela.

Penso no meu pai, falecido há 8 anos (feitos há dez dias atrás) e penso no amor comunista, penso em ti. Penso em muitas relações valiosas, num dia em que sempre me deu para a melancolia. Nunca gostei lá muito de fazer anos, de festas de anos. Nasci em agosto, está toda a gente de férias: há, mas são verdes. Ontem, houve telefonemas queridos e mensagens amigas, bacalhau e museu do azulejo, um bolo e amores. Houve tudo. 

Entretanto, alguém já disse que vê o meu pai na quinta, que fala com ele, e eu acredito nos que acreditam. Somos um elo numa cadeia do tempo sem fim, disse-o à minha irmã num momento importante. Enfim, sozinhos não somos nada, haja história e memória, terras e raízes. Haja economia mista e motivações mistas. 

Atentemos nas ligações. Somos seres em relação, como se diz na Igreja quando é verdadeira, e temos a obrigação de olhar e de ver para lá das nossas circunstâncias pessoais, sem, no entanto, descurar a introspeção, até porque ela é sempre necessária, talvez mais para os que têm de trair a sua classe, começando por tentar evitar ser da esquerda brâmane, a posição mais fácil neste caso, neste percurso. Tenta-se.

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