quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A favor de Ostrom


Em primeiro lugar, a obra de Elinor Ostrom é marcada pela capacidade de colocar no centro da agenda de investigação as perguntas que me parecem importantes e que o José Castro Caldas já aqui colocou: “Por que motivo num mundo em que o sistema jurídico (assim como qualquer sistema de monitorização) é inevitavelmente imperfeito os seres humanos não se agridem sempre que têm oportunidade para o fazer impunemente? Por que motivo contribuem para esforços colectivos quando podem limitar-se a parecer fazê-lo? Por que motivo estão dispostos a punir infractores mesmo à custa de perdas pessoais? Por que entram em transacções com contratos incompletamente especificados e insuficientemente garantidos? Por que se envolvem na resolução de problemas comunitários? Como seria uma sociedade em que as teorias de decisão neoclássicas [baseadas no egoísmo racional] se tornassem verdadeiras?”

Em segundo lugar, destaco o ecletismo da cientista política Elinor Ostrom. O seu uso de várias ferramentas disponíveis – da teoria dos jogos à economia e psicologia social experimentais, passando pelos estudos de caso detalhados – para responder a estas e a outras perguntas e para neste processo mostrar que as previsões de Hardin sobre a tragédia dos comuns ou de Olson sobre a impossibilidade da acção colectiva não eram leis de ferro, estando antes ancoradas em hipóteses muito contestáveis sobre o comportamento humano. Para lá do egoísmo racional, os humanos fazem promessas e cumprem-nas, o dialogo e a deliberação criam compromissos duradouros (contra a hipótese do “cheap talk” que insiste que, na ausência da hobbesiana espada do soberano, as promessas são levadas pelo vento…), as normas sociais criam saliências e influenciam o comportamento humano.

Em terceiro lugar, quando fundou há mais de três décadas, com o seu marido Vicente Ostrom, o workshop in political theory and policy analysis na Universidade de Indiana, Elinor Ostrom percebeu que a investigação que conta é um paciente trabalho de acção colectiva gerador de conhecimento comum à maneira dos muitos estudos de caso que este workshop promoveu sobre a viabilidade do auto-governo comunitário em várias escalas e para a provisão e gestão de vários bens.

Em quarto lugar, Ostrom ocupa um lugar ambíguo, mas muito profícuo, no movimento e contra-movimento do imperialismo económico na teoria social. Os economistas neoclássicos colonizaram disciplinas como a ciência política? Colonizaram. No entanto, isto teve posteriormente, e talvez como consequência não-intencional, uma cada vez maior hibridização dos programas de investigação – economia como parte das ciências do comportamento humano onde se contestam muitas das hipóteses iniciais do tal imperialismo económico.

Em quinto lugar, o trabalho de Ostrom pode ser muito apreciado pelos libertários que insistem em confiar apenas na emergência de mecanismos de governação para lá do Estado: o auto-governo e a auto-gestão são possibilidades realistas, claro. No entanto, julgo que será mais correcto ver esta investigação como oferecendo pistas para uma economia plural onde se conjugam vários mecanismos de governação e de coordenação, mercantis e não-mercantis, estatais e não-estatais, fazendo apelo ao egoísmo ou às nossas melhores disposições cooperativas. Reciprocidade, redistribuição e transacções de mercado. Todas são necessárias.

Finalmente, o que estamos condenados a discutir eternamente: o lugar, a configuração e o peso dos diferentes padrões de integração descobertos e por descobrir, a alquimia das complementaridades e dos conflitos institucionais virtuosos. O trabalho de Ostrom clarificador, por exemplo, do amplo menu de direitos de propriedade à nossa disposição ajuda nesta discussão. Talvez possamos convergir no institucionalista principio da impureza: qualquer sistema económico viável requer subsistemas regidos por diferentes princípios de provisão. A cooperação no seio de comunidades bem organizadas é sem dúvida um deles. A economia como ciência política limita-se a clarificar e a ajudar nesta discussão. Não é pouco.

6 comentários:

Pedro Viana disse...

"(...)mecanismos de governação para lá do Estado: o auto-governo e a auto-gestão(...)"

Mas o Estado não é uma forma de auto-governo e auto-gestão? Eu acho perniciosa a utilização do conceito de Estado como tendo o significado (implícito) de "Estado Moderno", em contraste com formas territoriais de organização político-social mais "informais" ou "localizadas". Na minha opinião, não existem diferenças qualitativas significativas entre um Estado e tais formas. Em ambos os casos existem regras que tentam enformar/regular as relações sociais, e punições para aqueles que as desrespeitam. A recusa de estender o conceito de Estado a todo o tipo de regulação colectiva de âmbito territorial, serve apenas para alimentar a ilusão de que é possível viver em sociedade sem regras de observância obrigatória e punições associadas. Ilusão esta partilhada por anarquistas/libertários à Esquerda e anarco-capitalistas à Direita.

CN disse...

"Mas o Estado não é uma forma de auto-governo e auto-gestão? "

Não, não é. Dada a dimensão da centralização da sua acção, e a dimensão da lógica maioritária.

Coisa diferente é falar do Governo de uma cidade, a relação entre a democracia, os eleitos, e as decisões colectivas ainda têm uma dimensão humana.

DImensão humana que impede o crescimento de mecanismos próprios, de uma elite política que nasce para satisfazer lobbies a favor do poder do uso do Estado (a direita por exemplo no campo de segurança e valores morais, a esquerda no campo de redistribuição e "over-regulation", etc).

Mas com os grandes Estados nacionais é criada uma estrutura social com vida própria supostamente legitimizada no voto universal.



Existe ainda assim uma via de redenção dos Estados, através da teoria Constitucional:

O Direito de Secessão, que deve estar formalmente previsto em todas as Constituições (é o caso do Lichtenstein, onde dispõem o direito de secessão a cada uma das suas 12 comunas).


Quando alguém participa numa comunidade política, como fica bem dizer, é suposto acordar voluntariamnete em poder participar em decisões de que perde para que cumpre.

Mas esta decisão tem de ser voluntaria.

A única forma prática de sabermos que a comunidade política não se transforma formalmente num mecanismo de opressão de maioria é sabermos que as partes têm algum mecanismo ainda que com restrições (mínima dimensão territorial e humana) de poder pacificamente pedir a Secessão de um Estado e formar o seu próprio.

Além disso, funcionaria como check and balance à inevitável centralização operada pelas capitais políticas e económicas. Bastaria a sua ameaça ainda que não concretizada para prevenir essa centralização.

CN disse...

"anarco-capitalistas à Direita."

Repare-se qie os estes querem é que seja o Direito Civil a governar as pessoas, ou seja, o contrato civil e os direitos de propriedade (quem podem incluir formas comunais de propriedade).

Hoje, já existem condomínios de grande dimensão (do tambaho de Vilas) com uma grande amplitude de auto-gestão: limpeza, segurança, hamonia arquitectónica, etc.


Existe outra questão essencial para um anarco-capitalista, do ponto vista teórico:

Mesmos os serviços de produção de arbitragem (Justiça) devem poder ser contratos.

de resto, se existe tendência claro hoje em dia é que o litígio civil e principalmente comerical já recorrre crescentemente a serviçso de arbitragem.

Até os contratos públicos com entidades privadas colocam como mecanismo os Tribunais Arbitrais!

Pedro Viana disse...

"Não, não é. Dada a dimensão da centralização da sua acção, e a dimensão da lógica maioritária. (...) DImensão humana que impede o crescimento de mecanismos próprios, de uma elite política que nasce para satisfazer lobbies a favor do poder do uso do Estado(...)"

Há aqui alguma confusão. Segundo Max Weber existe um Estado quando uma organização tem poder de coação sobre qualquer sujeito num dado território. Como se pode constatar não existe na usual definição de Estado qualquer referência à sua extensão (territorial) ou ao sistema de governo do Estado.

Por outro lado, o prefixo auto em auto-governo e auto-gestão só tem significado, tornando esses termos distintos de, respectivamente, governo e gestão, se tiver como objectivo sinalizar uma forma de governo ou gestão em que todos os afectados pelas decisões tomadas podem efectivamente (1) influência-las (definição fraca) ou (2) bloquea-las (definição forte, ou seja é necessário unanimidade na tomada de decisões). O caso (1) é compatível com diferentes possibilidades de implementação do conceito de auto-governo, desde a Democracia Directa (1 voto por pessoa, a maioria decide) a formas de governo "representativo" (por exemplo, apenas os "chefes de clan" têm assento na assembleia deliberativa do auto-governo).

Dito isto, a única maneira de ter um (auto-)governo cujo processo decisório não seja dominado nem pela maioria, nem pela minoria (que inevitavelmente utilizará os mecanismos de governo em proveito próprio), é optar pela definição forte de auto-governo: a decisão, a acção, requer unanimidade. Mas há um problema... é que a ausência de decisão em prol da acção (colectiva), por impossibilidade de consenso (total), é em si mesma uma decisão (com consequências), em prol da inacção. Ou seja, o governo pela unanimidade é essencialmente equivalente ao governo (fraco, pois apenas tem o poder de promover a inacção) pela minoria.

Ora, esclarecido o que significa Estado e o prefixo auto, torna-se claro que o conceito de Estado não é incompatível com auto-governo ou auto-gestão se optarmos pela definição fraca. Se optarmos pela definição forte, realmente existindo auto-governo não existe Estado, pois nesta situação de auto-governo não há necessidade de exercício de coação pois por definição todos concordam sempre com as decisões tomadas a nível colectivo. No entanto, o auto-governo na definição forte é realisticamente impossível, a não ser no âmbito de pequenas comunidades totalizando no máximo algumas dezenas de indivíduos, e durante intervalos limitados no tempo. Basta olhar para a evolução histórica das comunidades humanas.

É obviamente possível, veja-se o caso actual da Somália, por exemplo, que num dado território não exista Estado. Mas isso também não quer dizer que tal território possua um auto-governo ou esteja sob auto-gestão. Tendo em conta que nessa situação claramente haverá competição entre diferentes organizações coercivas (a alternativa utópica é a ausência de qualquer tipo de conflitos, ou aceitação unânime da resolução destes por arbitragem exterior, ie. o juiz decide e todos acatam sem ser coercidos a tal), é certo que o poder efectivo de decisão sobre qualquer acção que tenha lugar nesse território estará desigualmente distribuído, portanto poderá considerar-se que há auto-governo apenas no sentido fraco. E o mais provável, basta ver os exemplos históricos, é que nessa situação haja indivíduos excluídos da participarem no processo decisório (de qualquer uma das organizações em competição), pois inevitavelmente aparecerão organizações fortemente hierárquicas/autoritárias. (cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Resumindo, Estado e auto-governo (definição fraca) não são conceitos mutuamente exclusivos. E, pelas razões expostas, acho que o auto-governo (definição fraca) é mais provável numa situação em que existe um Estado do que na sua ausência. O auto-governo na definição forte torna-se impossível a partir do momento em que o número de indivíduos que interagem ultrapassa as poucas dezenas.

Claro, que, tal como chamei atenção, se identificar Estado com um tipo particular de Estado, eg. o "Estado Moderno", que na sua própria definição exclui a possibilidade de auto-governo (na definição fraca), então tem razão. Mas tem de ter noção de que está a distorcer o significado de Estado em seu próprio proveito, com fins propagandísticos (somos contra o Estado!).

Achei piada à afirmação "Repare-se qie os estes querem é que seja o Direito Civil a governar as pessoas(...)", como se o "Direito Civil" fosse algo que caísse do Céu, de origem divina, de tal modo reverenciado por todos, que a sua interpretação e aplicação na prática (por Deus, presumo), nuca sofreria a mínima contestação, e portanto necessidade de coação.

CN disse...

A definição de Estado é o de existência de uma organização com o monopólio territorial da violência.

Nesse sentido parece incompatível para um ancap, porque todos os serviços, incluindo de segurança e arbitragem devem ser livremente contratáveis.


Repare que a realidade internacional é uma de "anarquia", porque não existe monopólio mundial da violência, ou seja Estado Mundial. Cada Estado tem o seu Direito e o seu próprio "bando armado".


Mas passando ao lado disso, para mim, o que compatibiliza no lado formal um Estado com o auto-governo consentido, é o Direito de Secessão.

Sem ele, nenhuma ordem constitucional pode presumir que a participação de cada um nela é livre e consentida.