terça-feira, 24 de junho de 2025

Sem precedentes

O INE divulgou ontem o Índice de Preços da Habitação (IPH) para o 1º trimestre de 2025. Tal como assinala Rafaela Burd Relvas no Público, foram atingidos «novos marcos históricos» desde de que há dados publicados (2009). De facto, registou-se não só o valor mais elevado deste indicador (247,1) em toda a série (base 100 em 2015), como estamos perante valores de variação homóloga (+16,3%) e face ao trimestre anterior (+4,8%) sem precedentes.

Confirma-se e reforça-se, portanto, a tendência de aceleração do aumento dos preços da habitação desde que a AD assumiu funções, em resultado da aposta reforçada na subsidiação da procura (que a própria ministra Balseiro Lopes admitiu poder vir a «fazer subir o preço das casas») e da revogação dos parcos instrumentos de regulação protetora dos interesses da maioria que tinham sido entretanto adotados, invertendo-se assim uma fase em que o ritmo de subida dos preços estava a abrandar.


Quanto mais terão ainda que subir os preços para que se perceba que apenas «construir mais» - a solução milagrosa em que se insiste, parte de um diagnóstico errado (a crise não se resume a uma mera falta de casas), como fica claro quando se olha para o problema à escala europeia? Quantos mais bairros de barracas terão de surgir nas áreas metropolitanas - ou quanto mais é preciso que os preços das casas se distanciem dos rendimentos das famílias - para assumir, finalmente, que sem medidas robustas de regulação do mercado a crise só tenderá a agravar-se ainda mais?

Também não tens sentido o crescimento da economia?

Também disponível no substack

Nos últimos anos, a economia portuguesa tem crescido às taxas mais elevadas da sua história recente. Entre 2022 e 2024, o PIB cresceu a uma taxa média anual de mais de 4% (em termos reais), bem acima da taxa média anual de menos de 1% registada entre 2000 e 2019. A taxa de desemprego tem-se mantido em torno dos 6% e o país conseguiu contrariar o défice crónico na balança comercial - o que significava que gastávamos mais em importações do que aquilo que recebíamos pelas exportações - e passámos para a situação inversa, registando excedentes comerciais.

Os números da economia sugerem um cenário positivo e, a nível internacional, Portugal tem sido descrito como um caso de sucesso económico. O indicador que mais impressiona é o dos salários reais - isto é, a evolução dos salários descontando a inflação. O salário médio real registou uma quebra de 4% em 2022, quando a inflação atingiu o pico, mas a tendência inverteu-se depois: subiu 2,3% em 2023 e 3,8% em 2024, o que tem sido visto como sinal de que já se recuperou o poder de compra.

No entanto, o custo de vida e a subida dos preços continuam a ser, a par da saúde, a principal preocupação dos portugueses, de acordo com o último Eurobarómetro do Parlamento Europeu. Parece haver uma discrepância entre os indicadores oficiais e a experiência de boa parte das pessoas. Este texto discute três aspetos que ajudam a explicar porque é que o crescimento da economia não se reflete necessariamente na qualidade de vida de muitas pessoas: o modelo de crescimento que temos, o aumento (subestimado) do custo de vida e o desinvestimento público.

Que economia é que cresce?

O primeiro aspeto a ter com conta é o tipo de crescimento que temos tido nos últimos anos. O crescimento do PIB tem sido alavancado pelo desempenho extraordinário do setor do turismo, que tem batido sucessivos recordes de receitas. O peso do turismo passou de 6,9% do VAB em 2016 para 9,1% em 2023 e atingiu máximos históricos. Além disso, o setor é responsável por uma parte significativa do aumento das exportações do país, ajudando a explicar o excedente externo.

No entanto, mais importante do que olhar para os números do crescimento é perceber de que forma se distribuem os ganhos. Embora o turismo seja responsável por boa parte da criação de emprego na última década, é preciso ter em conta o tipo de emprego de que estamos a falar. O setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo do país, de acordo com os dados do INE. Mais de 40% dos trabalhadores do setor recebem o salário mínimo. Apesar das receitas recorde, o turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.

Face à enorme quebra da produção industrial nas últimas duas décadas – a maior entre os países da União Europeia –, o país encontra-se cada vez mais dependente do turismo e de serviços associados. Como consequência deste modelo de crescimento, a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo tem aumentado e Portugal é o país da UE em que o salário mínimo se encontra mais próximo do salário mediano.


O crescimento tem um preço?

A expansão do turismo tem outros efeitos para o resto do país e a crise da habitação é o exemplo mais evidente. Entre 2014 e 2024, o preço das casas em Portugal subiu mais de 135%, enquanto o salário médio cresceu apenas 36%. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura turística, nomeadamente através da expansão do alojamento local nas cidades, contribuiu para o aumento dos preços, a par do investimento estrangeiro e dos incentivos fiscais para residentes não-habituais.

Tanto no caso de quem arrenda casa e paga uma renda ao senhorio, como no caso de quem comprou e paga uma prestação ao banco, os custos da habitação são normalmente a maior fatia das despesas do mês. A habitação representa mais de um terço da despesa média das famílias em Portugal, de acordo com os dados do INE. No entanto, o índice que usamos para medir a inflação - o Índice de Preços no Consumidor (IPC) - não inclui a despesa com prestações e atribui um peso reduzido à despesa com a renda, a água, a eletricidade e o gás (em torno dos 10% do orçamento familiar). Isto significa que o IPC, que é usado para medir a evolução dos salários reais e do poder de compra, subestima de forma significativa o aumento do custo de vida.

Desde 2021, a prestação média para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%, passando de menos de €250 para mais de €440. No caso das rendas, o valor mediano cobrado pelos senhorios nos novos contratos subiu 32% neste período (e a subida foi superior nas regiões de Lisboa, Porto e Algarve). Em ambos os casos, o indicador que usamos para medir a inflação subestima o aumento do custo de vida.


As limitações do indicador da inflação não são apenas detalhes técnicos: o IPC é o referencial usado nas negociações salariais entre empresas e sindicatos e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, leva a aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços.

O barato sai caro

A crise do custo de vida é agravada pelo desinvestimento do Estado. Ao longo da última década, Portugal registou os níveis mais baixos de investimento público da história recente e foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB, em nome da prioridade dada à obtenção de excedentes orçamentais.


O desinvestimento tem um impacto direto no custo de vida. O encerramento de urgências e o aumento das listas de espera no SNS leva muitas pessoas a recorrer aos hospitais privados e a suportar as despesas, à semelhança do que acontece na área dos cuidados, pela ausência de uma rede pública de creches e de prestação pública da assistência aos idosos ou pessoas com deficiência a preços acessíveis. Os comboios e autocarros sobrelotados levam a que, para muitos, não haja alternativa a usar o carro (com os custos do combustível associados). Na habitação, as dificuldades de acesso são agravadas pelo subinvestimento em habitação pública, que continua a representar uma fração ínfima do mercado, ao contrário do que acontece em vários países europeus.

A descida dos impostos aprovada no último ano não só não compensa a subida dos custos destes serviços, como beneficia essencialmente quem ganha mais (e menos precisa). O outro lado da moeda das reduções de impostos é a quebra da receita com que se poderiam financiar os serviços públicos disponíveis para todos.

Não estamos todos no mesmo ferry

Por último, é preciso olhar para os impactos que o crescimento dos últimos anos tem tido para lá da economia. A turistificação também tem impacto no direito ao espaço público. Enquanto o aumento do preço das casas afasta cada vez mais pessoas do centro das cidades, o comércio local vai sendo substituído por cafés gourmet e lojas de cadeias internacionais, destinadas a turistas e nómadas digitais com maior poder de compra. Ao mesmo tempo, a expansão de hóteis, resorts e outros serviços nas zonas mais procuradas pelos turistas também está a dificultar o acesso dos residentes.

O caso de Tróia é emblemático. Nos últimos 20 anos, os preços dos barcos entre Setúbal e Tróia quadruplicaram: o bilhete subiu de €1,15 para €5,50 por passageiro e de €5,70 para €21 por carro, o que fez com que o número de passageiros tenha caído para metade. As praias deixaram de ser acessíveis para muitas pessoas e tornaram-se um luxo reservado a quem pode pagar.

Enquanto Portugal se transformou numa economia de férias, os consumidores portugueses estão entre os europeus que menos gastam nas férias de verão. Usufruir do litoral do país tornou-se difícil de comportar para quem cá vive, sendo sobretudo acessível para turistas. O Algarve é o expoente máximo deste modelo económico: a 2ª região com maior PIB per capita do país tem índices de pobreza acima da média nacional; faltam pelo menos 10 mil fogos para alojar residentes, mas há 200 mil casas vazias para turistas.

As contradições do modelo de crescimento recente ajudam a explicar a diferença entre os “bons resultados da economia” e a vida da maioria das pessoas que cá vive e trabalha. Como o crescimento não é um fim em si mesmo, era importante que se prestasse mais atenção à distribuição.

Guerra ou paz, mal-estar ou bem-estar?


Na véspera do início da cimeira da NATO, dois antigos banqueiros, um da Rothschild e outro da Goldman Sachs, apoiantes do genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista na Palestina, escreveram um artigo conjunto no Financial Times. Prestam vassalagem a Trump, anunciando que vão gastar 5% do PIB (3,5% diretamente e 1,5% indiretamente) no desperdício da corrida armamentista que aumenta a probabilidade da catástrofe.  

Confirmam que há sempre dinheiro para aquilo que as classes dominantes querem fazer: continuar a erodir os Estados de bem-estar social e reforçar os Estados de mal-estar social para a imensa maioria. O capitalismo sem freios e contrapesos exige, uma vez mais, o keynesianismo militar para ricos, permitindo à indústria automóvel alemã, em grandes dificuldades e em processo de reconfiguração, encontrar novas e garantidas fontes de procura, por exemplo. A UE converge com os EUA. Sempre esteve no plano da integração europeia desde o americanista Monnet.

Por cá, Luís Montenegro segue cada vez melhor aluno de mestres cada vez piores, do pedido para excluir o desperdício armamentista das regras do défice, com apoio do PS, à autorização para o uso da base das Lajes pelos bombardeiros norte-americanos que atacaram ilegalmente o Irão. 

Soberano é quem define a exceção às regras, sabemo-lo há muito, e as elites do poder em Portugal não querem ser soberanas. Há lugares principescamente pagos à sua espera. Durão Barroso mostrou o caminho para a Goldman Sachs, oferecendo as Lajes para a infame cimeira que decidiu destruir o Iraque e causar centenas de milhares de mortes.

Entretanto, o urgente movimento pela paz e pelos Estados de bem-estar faz o seu caminho, de Haia a Lisboa. Haja clareza político-ideológica, político-partidária, na matéria mais crucial. Escolher o silêncio é ser ruidosamente cúmplice. E nunca tudo esteve tão ligado, sem terceiras vias: é mesmo sistémico.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Mais Lénine, menos Wilson; mais Prashad, menos Tavares


Vijay Prashad é um notável historiador e militante político internacionalista indiano, dirigindo hoje o Instituto Tricontinental, que honra uma conferência com lastro, realizada em Cuba em 1966, marco da história anticolonialista. Este Instituto fornece uma diversidade de análises e estudos em português, úteis para uma cultura anti-imperialista. 

Infelizmente, nenhuma das obras de Prashad está editada no nosso país, o que diz bem do nosso enviesado panorama editorial. Começaria por Darker Nations – A People’s History of the Third World, onde cunhou a expressão “nacionalismo internacionalista”, fazendo a sua história. Oferece uma alternativa robusta a uma mundivisão historiográfica euro-liberal – mais Lénine, menos Wilson, como já defendi. 

No Twitter, Prashad tem a capacidade de resumir muito em poucas palavras: “Israel não é um país, é uma base militar dos EUA”, por exemplo. Olhai para o gráfico acima: as duas alas partidárias do mesmo complexo militar-industrial confirmam há décadas a verdade desta afirmação. 


Já agora, seguindo o capitão gancho, uma das melhores vozes do twitter luso, é sempre bom lembrar as posições do Livre, como usam o termo terrorista de forma equivocada e alinhada com a ideologia do sistema imperialista, contrária aos factos e aos usos da maioria dos países da ONU, mas congruente com a visão euro-liberal do seu fundador e líder tão informal quanto incontestado, o que foi à embaixada israelita em pleno genocídio. Rui Tavares tem estado muito silencioso neste contexto: é de ouro? Enfim, é por estas e por outras que defendo que os verdes com bombas são parte do problema da esquerda lusa.

O cosmopolitismo aí alardeado não passa de provincianismo eurocêntrico, de resto. O internacionalismo, pelo contrário, começa pela identificação do inimigo comum da humanidade: o sistema imperialista dominado pelos EUA, de que a UE faz parte. Para impedir a emergência de um mundo saudavelmente multipolar, estão dispostos a arrasar países inteiros, a causar milhões e milhões de mortos. O Irão é o alvo agora e somos todos iranianos por isso.

Como sublinha Prashad, “os EUA são um Estado terrorista” e Israel também. Os factos não mentem e a melhor história também não: é a que sabe a quantidade de bombas que Washington lançou por este mundo afora, a partir das mais de 800 bases em dezenas de países; é a que sabe que a quantidade tem a sua própria qualidade; é a que sabe o significado histórico da palavra genocídio; continua em curso na Palestina, com a cumplicidade dos EUA e da UE.

domingo, 22 de junho de 2025

Haja memória, haja comparação


Guerra e paz


O colonialismo sionista está inscrito no sistema imperialista dominado pelos EUA, de que a UE faz parte. A agressão conjunta ao Irão é a enésima prova. A principal ameaça à paz mundial é clara. Somos todos palestinianos, somos todos iranianos, somos todos do movimento pela paz.

sábado, 21 de junho de 2025

Relembrar o óbvio: a crise de habitação é internacional

Tem razão Sandra Marques Pereira. Em matéria de habitação, não só a AD «aprendeu muito pouco ou fez questão de não aprender» nada sobre a atual crise, como revela um desconhecimento confrangedor «do que se passa a nível internacional, tanto no entendimento do problema como das soluções». Cereja em cima do bolo, «continua a imputar a responsabilidade pela persistência da crise da habitação aos governos que o antecederam». Parece uma repetição rasca do embuste da bancarrota para justificar a vinda da troika, a que Paulo Coimbra aludiu recentemente aqui.

Era suposto ter-se já a noção de que, voltando a citar Sandra Pereira, «o setor da habitação mudou profundamente desde a crise do subprime», decisiva na conversão da habitação em ativo financeiro fazendo surgir novas procuras especulativas, as quais, a par do turismo, constituem a principal fonte da subida vertiginosa dos preços. Não se trata pois, ao contrário do que se tenta fazer crer, de uma mera «falta de casas», alegadamente resultante de um défice de construção na última década. Basta, aliás, observar o que se passou por essa Europa fora neste período, agora que o Eurostat já divulgou, finalmente, os dados censitários dos alojamentos para 2021.


Em termos globais, para os 25 Estados membros com dados disponibilizados, constata-se que o stock de alojamentos na Europa aumentou quatro vezes mais que a população residente (8% e 2%, respetivamente), sendo estes valores - de variação da oferta e da procura residencial - substancialmente inferiores ao aumento dos preços das casas, a rondar os 37%. Uma discrepância que é comum à maioria dos países, não se identificando qualquer relação consistente entre a variação da população e do número de alojamentos com a evolução do ìndice de Preços da Habitação (IPH).

Atendendo a que as novas procuras especulativas, nacionais e internacionais, são «virtualmente ilimitadas», como oportunamente relembrou Helena Roseta em artigo recente, a atual crise habitacional «não é resolúvel sem regulação pública, nacional e europeia». Ou seja, exatamente o caminho que a AD se recusa a fazer, na teimosia serôdia de que «o mercado é que deve fazer os preços das casas», bastando para tal desencadear, em linguagem de propaganda barata, um «choque de oferta».

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O anti-da-Silva


Pode ser visto ao domingo num café no centro de Viseu a ler o FT Weekend em papel, à venda numa papelaria na Rua Direita. A fleuma anglófila incensa Churchill (na foto). Para contrariar a piolheira, o “clube” só não lhe vale.

“Liberal conservador” levou uma demão de verniz democrático, mas o tempo tem-na escamado, deixando ver o mesmo de sempre, o CDS de Viseu, tal como o santo padroeiro britânico: misoginia, imperialismo e logo racismo mais ou menos velado, tudo combinado com o vira-latismo de quem teve o azar de nascer na periferia europeia, adorando tudo o que seja perda de soberania promovida pelo euro-liberalismo. 

Falo de Francisco Mendes da Silva. Podia falar de tantos outros. Não sei se é pago pela embaixada israelita para organizar drinks e escrever artigos no Público a defender o colonialismo sionista, nem isso me interessa. Até preferia que o fosse, temo que seja mesmo convicção ideológica pura e dura de quem invoca a “guerra justa” para falar da agressão sionista ao Irão. Do Iraque à Líbia, não há memória, nem vergonha.

Mas há palco, porque entrou na classe dominante, tendo as ideias desta classe. Haja reconhecimento social. O mesmo fulano que tem o topete de usar a expressão “direito internacional” fez objetivamente parte do coro dos apoiantes do genocídio do povo palestiniano, com o seu amigo Pedro Delgado Alves e muitos outros, não esquecemos, nem perdoamos. São todos amigos na sociedade indigente de comunicação, ouça. 

Sim, na periferia, da Silva é só mais um liberal até dizer chega. Na nova década de vinte, eles andam por aí outra vez. Teremos de os derrotar outra vez. Isto melhora, provavelmente depois de piorar, não sei.

Dar a ver as ligações


Antes de chegarmos à devastadora Guernica de Picasso, passamos por salas com intervenções também de recorte antifascista, incluindo os trabalhos das décadas de 1920 e 1930 de John Heartfield (nascido Helmut Herzfeld), um comunista alemão que conhecia as ligações fundamentais na economia política. As ligações fundamentais nunca podem ser perdidas de vista.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Basta de ofuscação


Em relação à primeira página de 16 de junho, basta seguirmos Carina Castro: “Podia comentar a folha de propaganda governamental que é esta primeira página, mas vou só constatar que são 3 notícias da mesma família (de classe) e parece-me que as restantes também”. Em relação à de 18 de junho, basta perguntarmos: “Mortas por quem, Público? Por quem?”. 

Estas duas primeiras páginas estão ligadas pela mesma linha editorial euro-liberal do “perdócio” da Sonae, relembrando a célebre expressão de Belmiro de Azevedo. Enfatizar a Sonae justifica-se, porque a autonomia dos jornalistas, incluindo político-ideológica, em relação aos interesses e valores dos proprietários é cada vez menor, dada a precariedade da profissão, a ameaça permanente do desemprego, o medo nas redações, a fragilidade dos freios e contrapesos sindicais neste contexto. 

Enfatizar a linha euro-liberal justifica-se, porque a dependência, intelectual e não só, em relação à UE é cada vez maior. E a verdade é que a linha de cor, a que preconiza que as vidas palestinianas valem menos, por exemplo, está tão inscrita no euro-liberalismo realmente existente como o proprietarismo, a defesa de todos os direitos associados à propriedade privada, com deveres sociais cada dia mais escassos.   

Neste contexto, não surpreende que a UE ofusque o colonialismo sionista e a sua natureza genocida. O Público segue Bruxelas. O europeísmo é tão responsável como os EUA pela catástrofe sem fim: será que agora querem fazer do Irão uma nova Líbia, mais um estatocídio? “Os israelitas estão a fazer o trabalho sujo por nós”, disse Merz com a franca brutalidade da sempre perigosa elite alemã. 

Foi por estas e por outras que, ao fim de mais de trinta anos, deixei de pagar pelo Público. Mesmo sabendo que a política que conta não passa por decisões individuais desta natureza, digo ainda assim: basta de ofuscação.

Apresentação e debate: Que Força É Essa?

"Com a divulgação do programa do novo governo, já é possível entrever como a legislação do trabalho (dos dias de férias ao direito da greve, da regulação das plataformas e do teletrabalho aos horários ou à política salarial) estará no centro da reconfiguração à direita que se prepara para o próximo ciclo político. Aproveitando mais uma sessão de lançamento do primeiro número da “Que Força É Essa? - revista sobre os mundos do trabalho”, estaremos à conversa com Joana Neto, João Leal Amado e José Soeiro sobre o que esperar agora neste campo, a partir de alguns dos temas tratados na revista. O evento é enquadrado na Feira do Livro de Lisboa, tem a organização da Livraria Tigre de Papel e será moderado por Fernando Ramalho. Sábado, 21 de junho, 17h, na Praça Verde da Feira."

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Começar uma guerra para evitar a guerra que se começou


A lógica da guerra preventiva, tão do agrado dos EUA ou de Putin tem, no caso do ataque de Israel ao Irão, uma agravante. Quanto mais a guerra escalar, maior a probabilidade de o Irão realmente optar pela via nuclear, coisa que não fez até hoje. É uma absoluta irresponsabilidade.

O acordo nuclear com o Irão, negociado por Obama e denunciado por Trump, garante a monitorização do programa nuclear do Irão. Israel, que invoca o pretexto do ataque nuclear iminente do Irão há mais de uma década, aproveitou a cumplicidade submissa dos EUA e da UE para atacar.

A IAEA, que tem a responsabilidade monitorizar o Acordo nuclear do Irão, já alertou para as possíveis consequências deste ataque de Israel.

O ataque visa sabotar negociações que decorriam e que permitiriam um novo acordo nuclear, revertendo a decisão dos Estados Unidos de se porem de fora. Trump autorizou o ataque, realizado a poucos dias de uma nova ronda negocial, numa espetacular demonstração de má fé. A credibilidade diplomática dos EUA não valerá um chavo a partir de agora, se é que ainda valia. 

A natureza totalitária do regime iraniano é um pretexto que vale tanto como valeu noutras guerras “preventivas” e “humanitárias”. Este ataque vai provocar a morte de milhares de inocentes (de ambos os lados) e, no fim, o regime iraniano ficará igual ou pior. Já vimos este filme.

Política monetária regressiva

Numa notícia de fim de Maio último, que me tinha escapado, fica-se a saber que o Banco (que não é) de Portugal apresentou as contas de 2024 com um prejuízo de 1.142 milhões de euros.

É um prejuízo que soma às perdas de 1.054 milhões de euros de 2023.


Adicionadas, estas perdas do BdP já totalizam 2.196 milhões de euros.

Segundo a peça jornalística, a “explicação para a apresentação de resultados tão negativos, repetida esta quarta-feira por Clara Raposo, vice-governadora do Banco de Portugal, é a mesma que já foi apresentada no ano passado e que tem sido igualmente referida pela generalidade dos bancos centrais da zona euro que caíram a partir de 2023 nesta situação: com a subida das taxas de juro realizada pelo BCE para combater a inflação, o Banco de Portugal passou, a partir de 2023, a ter de pagar aos bancos comerciais juros bastante mais altos pelos depósitos e reservas que têm no banco central, mas em contrapartida os activos do Banco de Portugal (principalmente títulos de dívida pública portuguesa) não viram a sua remuneração aumentar.”

Neste tempo de pós-verdade, é necessário dizê-lo com todas as letras e repeti-lo as vezes que forem necessárias: quando Clara Raposo diz que “o Banco de Portugal passou, a partir de 2023, a ter de pagar aos bancos comerciais juros bastante mais altos pelos depósitos e reservas que têm no banco central” está literalmente a mentir dado que o banco central não tem que coisa nenhuma. Pagar juros por reservas e depósitos é uma escolha política, para a qual há alternativas (aqui e aqui), e não uma obrigação.

Recordemos a fortuna gigantesca de juros pagos pelo BCE, dinheiro de todos nós, que podia e devia ter tido aplicações alternativas económica e socialmente sufragadas, fortuna que está a ser transferida subrepticiamente para interesses privados de forma discricionária e sem justificação económica credível.

Embora este autêntico bodo de recursos públicos atirado para cima da banca privada tenha vindo a diminuir muito gradualmente desde Maio de 2024, momento em que o BCE decidiu começar a descer de novo uma taxa de juro que, de resto, nunca devia ter subido, ninguém sabe ao certo, enquanto as reservas continuarem arbitrariamente remuneradas, quando cessarão os prejuízos públicos que são a sua contra-parte.

“Eu não esperaria que haja dividendos tão rapidamente para o Estado”, afirma, na mesma notícia, Mário Centeno, do alto da arrogância discricionária que lhe é permitida pelo estatuto de alegada independência do sistema de bancos que compõe o BCE.

Se Mário Centeno já antes devia explicações ao país, agora elas são devidas também por Clara Raposo, por este governo e pelo anterior.

Em 2023, só os quatro maiores bancos privados a operar no país somaram 3.153 milhões de euros de lucro, num aumento de 81,9% face a 2022.

Em 2024, os lucros da banca em Portugal sobem 13% para recorde de 6.300 milhões.

Em 2025, só nos três primeiros meses do ano, as cinco principais instituições financeiras em Portugal apresentaram lucros de 1.220 milhões de euros.

Tudo isto se torna ainda mais moralmente insalubre quando as notícias dão nota que o “Governo quer rever o regime de atribuição e fiscalização do rendimento social de inserção (RSI)” com o não enunciado objectivo de dificultar o seu acesso.

Em 2024 beneficiaram de RSI 175.904 pessoas, o que custou uns meros 357,62 milhões de euros, o que significa 169,42 euros por mês por beneficiário. Valores que comparam com as perdas do Banco de Portugal no valor de 2.196 milhões de euros, perdas que, em quase toda a sua extensão, são um bodo, totalmente evitável, aos bancos.

Tanta largueza com os ricos, tanta pobreza e punição imposta aos mais frágeis dos mais frágeis. Depois interrogam-se das razões de crescimento da extrema-direita.

Para finalizar, uma última perplexidade. Neste quadro, como pode um think-tank que se quer progressista, como o Causa Pública, expurgar a integração monetária, fonte primeira desta distopia, dos assuntos que debate e acerca dos quais propõe políticas?

terça-feira, 17 de junho de 2025

Que vida para além das contas certas?

Também disponível no substack
 

O programa do Governo conhecido este fim de semana traz novidades, por incluir várias medidas que nunca foram apresentadas nem discutidas durante a campanha eleitoral. Desde as mudanças na legislação laboral e na lei da greve aos cortes nos serviços públicos, são várias as áreas em que se anunciam mudanças em relação à governação dos últimos anos. No entanto, há opções que parecem manter-se e há uma que se destaca: a prioridade de continuar a obter excedentes orçamentais.

Embora, no ano passado, o primeiro-ministro tenha afirmado que “o equilíbrio das contas não é o fim da nossa política” e que “há vida para além do excedente orçamental”, a política seguida não tem correspondido ao discurso. Na análise que a Comissão Europeia publicou com a comparação dos planos de médio-prazo apresentados pelos países, há uma dimensão em que Portugal surge na cauda da Europa: é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia.

O investimento público foi a principal vítima da estratégia das contas certas na última década. Neste período, o país registou os níveis mais baixos de investimento público da história recente, em nome da prioridade dada à obtenção de excedentes orçamentais. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (ou seja, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chegou para compensar o desgaste das infraestruturas.

A trajetória do investimento público compara bastante mal com o resto dos países europeus. Na última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB (sendo que o único país que regista uma percentagem de investimento público inferior – a Irlanda – tem o PIB manifestamente inflacionado, o que faz com que não seja o indicador mais útil para avaliar a situação do país).

Os níveis de investimento público nunca recuperaram verdadeiramente desde o programa de ajustamento da Troika. O desinvestimento tornou-se particularmente visível em áreas como a saúde ou os transportes, onde a degradação da qualidade do serviço prestado contribuiu para descredibilizar o serviço público. Neste aspeto, na governação do último ano e nos planos agora apresentados, não se encontram grandes sinais de mudança.

No caso da saúde, a opção tem sido a de contratualizar serviços com o setor privado e apostar em parcerias público-privado, em vez de reforçar o Serviço Nacional de Saúde. É preciso ter em conta que o investimento público não serve apenas para dotar os hospitais e centros de saúde dos meios necessários, mas também para atrair e manter os profissionais, ao contrário do que tem acontecido. Um relatório elaborado por especialistas para o PLANAPP, que avalia a satisfação dos profissionais de saúde, concluiu que as condições do local de trabalho e a atualização de equipamentos e tecnologia são fatores importantes para motivar e reter médicos e enfermeiros. Canalizar o dinheiro público para o setor privado acentua os problemas em vez de os resolver.

Em relação aos transportes, depois de décadas a encerrar linhas ferroviárias, o governo anunciou um corte do investimento previsto da CP para a alta velocidade, com a justificação de que “é saudável para o mercado [o Estado] não investir tanto em comboios”, além de não se conhecerem medidas para combater a sobrelotação em linhas que servem áreas com grande densidade populacional, como a de Sintra. Novamente, o investimento na ferrovia não serve apenas para melhorar a qualidade de vida de quem utiliza o transporte público para se deslocar diariamente. Também permite reduzir as emissões de carbono através da redução do recurso a automóveis privados, o que contribui para o combate às alterações climáticas e reduz as necessidades de importação de combustíveis fósseis.

Nestas e noutras áreas, o desinvestimento costuma ser justificado com a ideia de que as “contas certas” são necessárias para reduzir a dívida pública. No entanto, não existe uma contradição entre a promoção do investimento público e a sustentabilidade das contas do Estado. A maioria dos estudos sobre o efeito multiplicador – isto é, o impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia – conclui que este é superior a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do setor público, o PIB cresce mais do que 1 euro. Ou seja, os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais.

Enquanto se acena com reduções de impostos que não trazem ganhos verdadeiros para a maioria das pessoas e estão desenhados para beneficiar essencialmente os mais ricos, o investimento público continua a ser relegado para último plano. O verdadeiro problema não está nos impostos que pagamos, mas sim na forma como o dinheiro é utilizado e na qualidade dos serviços que os impostos devem financiar. Adiar os investimentos necessários é uma escolha que nos tem saído bastante cara.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

A velha PAF sem o respaldo da troika


Depois de onze meses de um governo que esteve em campanha do primeiro ao último dia, assumindo como prioridade de desfazer qualquer ideia de regresso às políticas adotadas pela direita entre 2011 e 2015, a apresentação do Programa de Governo no passado sábado dissipou as dúvidas que pudessem subsistir sobre o regresso a esse passado, agora já sem o conveniente alibi das «imposições da troika» (além da qual, recorde-se aliás, Passos e Portas queriam ir).

A dissimulação da verdadeira agenda política para o país, nesse primeiro ano da AD, foi facilitada pelo «excedente» orçamental deixado pelo governo anterior, obtido em ampla medida pelo desinvestimento na valorização da Função Pública e, consequentemente, no próprio Estado Social e serviços públicos. A atualização de carreiras e salários, a que a coligação PSD/CDS-PP deitou mão de imediato, ajudou nessa operação eleitoral de ilusão e cosmética.

Com uma maioria ao seu dispor, resultante da soma de deputados do PSD, CDS-PP, IL e Chega, cujos programas eleitorais revelam indisfarçáveis convergências programáticas, a AD já não precisa esconder ao que vem, podendo ir mais longe em matérias que tratou de não inscrever no Programa Eleitoral. Além da descida de impostos e privatização subreptícia do Estado Social, a coberto da ideia de «sistema» (financiando privados com recursos públicos), o governo juntou, por exemplo, a desregulamentação da legislação laboral e a revisão da Lei de Bases da Saúde.

Sinais desta clara aproximação à IL e ao Chega, PSD e CDS/PP chegam mesmo a incluir no Programa de Governo a gratuitidade de manuais escolares aos alunos da rede privada e cooperativa, recuperando a miséria moral da perseguição aos beneficiários do RSI, através do reforço da fiscalização daquela que é a prestação mais escrutinada, a par da introdução de «obrigações de solidariedade», como se o contrato de inserção não fizesse parte da atribuição da medida. Como as coisas são o que são, dispense-se o pajem: as direitas que se entendam.

Lançamento e debate: Abrandar ou morrer

Na segunda-feira, 23/06, às 18h00, no ISEG, Lisboa (Anfiteatro 24, piso 2, edifício Francesinhas 1), teremos o lançamento da obra Abrandar ou Morrer, de Thimotée Parrique, com a presença do autor, seguido de comentários de Susana Peralta, Irina Castro e Alexandre Abreu e debate com a assistência.

Thimotée Parrique é um economista francês e investigador na HEC Lausanne. Abrandar ou Morrer é o título da sua obra sobre a economia política do decrescimento, agora publicada em Portugal pela Zigurate

Entre outras coisas, debateremos as ligações entre crescimento, mercadorização e capitalismo, bem como as principais críticas habitualmente feitas ao projeto do decrescimento. 

A sessão será em inglês e podem aceder a mais informações aqui. Lá vos aguardamos.


domingo, 15 de junho de 2025

No meio de ruínas


Lá comemos calamares juntos às ruínas romanas de Mérida (os impérios acabam por cair...) e lá me irritei com o El Pais, conforme prometido. Têm um correspondente em Telavive, claro, só os mortos israelitas são chorados, ao que parece. Também um artigo de Lídia Jorge, cuja intervenção no dez de junho foi corajosa, teve esse condão: “el caso de Portugal importa”. O problema é que no artigo no El Pais defende “a nossa democracia liberal”, associando-a ao 25 de abril. Na nossa Constituição não há qualquer referência ao liberalismo e ainda bem. Repito o que escrevi em 2021 no Le Monde diplomatique - edição portuguesa

Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias. A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer. 

Estas origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca teriam existido. Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente da IL e do Chega em projectos de ainda maior descaracterização constitucional.

sábado, 14 de junho de 2025

Haja quem veja as coisas de forma clara


Em pleno genocídio na Palestina, o Estado terrorista de Israel decidiu atacar o Irão, contando com o apoio de sempre dos EUA e da irremediavelmente vassala UE. Somos todos iranianos também. 

Entretanto, António Costa decidiu fingir-se de polícia bom na UE, declarando-se “extremamente preocupado”, sublinhando desta forma, e uma vez mais, que o seu declínio ético-político não tem fim, em linha com a UE. Há quem pense como está estruturado.  

Poderia continuar, mas, francamente, não me sinto capaz de escrever de forma mais clara do que os comunistas portugueses que estão à altura das graves circunstâncias históricas: 

“O PCP considera da maior gravidade e condena veementemente a agressão de Israel ao Irão, na sequência de diversas e graves provocações e ataques que efectuou contra este país, do genocídio do povo palestiniano e dos permanentes bombardeamentos e ocupação por Israel de território libanês e sírio. 

A agressão de Israel ao Irão não podia ter sido realizada sem o apoio dos EUA e a cumplicidade das grandes potências da NATO e da UE, que têm promovido décadas de violações do direito internacional, de ingerência, de desestabilização e de guerra no Médio Oriente.”

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Pela jangada de pedra


Fotografia nº 150, tirada por Sebastião Salgado: peregrinos no Santuário de Lamego em Setembro de 1975. Fotografia nº 136, tirada por Alécio de Andrade: manifestação a favor da independência das colónias no verão de 1974. 

São umas poucas centenas de quilómetros de Lamego a Lisboa, mas é como se fossem dois países separados por milhares. Um país sofrido e postergado por décadas de obscurantismo e um país sorridente e pleno de esperança anticolonial. 

Venham mais cinco [O olhar estrangeiro sobre a revolução portuguesa] 1974-1975, a exposição de que Sérgio Tréfaut é curador, começou a ser pensada em 1993, mas só agora viu a luz do dia em Almada. Bastava isto e um filme, Raiva, para lhe estar eternamente agradecido, mas há e haverá muito mais, claro. 

São 200 fotografias iluminadoras, tiradas por fotógrafos estrangeiros, incluindo o economista-fotógrafo Sebastião Salgado, falecido na véspera da inauguração da exposição, como nos informa Pedro Cerejo num artigo no Le Monde diplomatique – edição portuguesa também a não perder. 

Esta exposição emocionou-me profundamente, verti lágrimas, pôs-me a pensar em ligações, em comparações, para lá das que estão explicitadas. Não é só a exposição, nunca é, sou eu, nós, em 2025. Estas duas fotografias marcaram-me. Muitas o fizeram, estou a tentar descobrir como. 


Entretanto, nos próximos seis dias andarei pelo Estado estrangeiro que me é mais familiar, Espanha, com o meu filho, a primeira parte das férias a dois deste ano, de carro entre Mérida e Ávila, passando por Toledo e Madrid. 

A minha nação favorita fora de portas é a Galiza, lá em cima, claro; um dia há-de ser um Estado. O nacionalismo de esquerda galego é uma inspiração político-ideológica desde sempre, desde os economistas Xosé Manuel Beiras e Ramón López-Suevos.

Enfim, vou mostrar-lhe as ruínas romanas, o Alcázar de Toledo, os quadros de El Greco, a Guernica, As meninas de Velásquez, os quadros arrebatadores de Goya, a paixão religiosa de Santa Teresa e assim, com um magnifico livro, escrito por um holandês voador, em punho. O resto das férias, lá mais para a frente, será, como sempre, na geografia sentimental que inclui poemas geológicos

Sim, sou privilegiado, posso ir de férias para fora de casa, ir ao estrangeiro próximo e voltar para o granito familiar, com o xisto logo ali, a seguir a uma curva. Gostaria de ir de comboio, mas já/ainda não é viável. Estamos mais de três décadas atrasados em relação a Espanha, graças à austeridade e a prioridades erradas em relação às ligações ferroviárias de alta velocidade na jangada de pedra. Portugal e mais dois países são os que menos investimento público fazem na UE (em percentagem do PIB), notai

E é como diz Adam Smith, ver tudo como se fosse a primeira vez, graças à capacidade de nos colocarmos nos sapatos de outrem, a tal simpatia, o principal dos sentimentos morais (livro desgraçadamente por traduzir). E irritar-me-ei com o El Pais, claro. Comeremos churros e calamares, comprarei livros. À noite trabalharei. 

Sinto que estou nas pisadas do meu pai. Gosto sempre de pensar em termos de reciprocidade, numa cadeia do tempo sem fim, dar o que recebi. A minha disposição conservadora é só a expressão da sorte. Gosto de pensar que o meu filho também a tem, incuto-lhe isso, combato a ideologia do mérito. 

Ele tem 20 tópicos de conversa para a viagem e fizemos playlists. A minha é intensa e melosa, como Espanha, como eu. A dele será solar, aposto. 

As férias começam hoje, com concerto dos GNR no jardim da Sereia. Nos próximos dias, regressarei à exposição com a ruína da Lisnave à vista, que isto está tudo ligado, ao que ficou dela em mim.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Logo contra


Tinha quase oito anos quando Portugal aderiu às Comunidades Europeias. Andava na escola primária dos Olivais, na mesma rua onde acabaria a ensinar. Havia contentamento. Declarei-me logo contra. 

O meu melhor amigo na altura, do PSD, era entusiasta. Eu imitava o meu pai e ele o dele. A politização era maior, a democracia mais intensa.

No secundário, com esse grande amigo de doze anos de percurso escolar e discussões comuns, fiz um trabalho na área escola sobre o Tratado de Maastricht. A minha parte foi “contra Maastricht, porquê?”, na linha de Sérgio Ribeiro e de outros economistas do Partido. Estávamos na estimulante Jaime Cortesão, em 1993.

Mesmo no final da licenciatura no ISEG e até aos anos 2010, fui influenciado por economistas eurokeynesianos, como Stuart Holland. Uma palestra sua impressionou-me fortemente, infelizmente. O Erasmus na Erasmus de Roterdão na Holanda pode ter ajudado. 

A troika, já na FEUC e no CES, livrou-me desse interregno para sempre e fez-me regressar em novos moldes ao euroceticismo de sempre, até porque keynesianismo, nas curvas apertadas da história, é nacional, embora tenha de ter uma dimensão internacional duradoura, que nunca será a da supranacional UE. 

O golpe de estado financeiro na Grécia, em 2015, solidificou convicções nacionalistas de esquerda, base para o internacionalismo consequente.

Não, não há nada para celebrar na UE, ordem neoliberal supranacional bem incrustrada. 

Quando historiadores-politólogos, como António Costa Pinto, dizem que a “UE é um projeto de paz”, questiono-me: qual é a narrativa do passado? 

A UE, criada pelo Tratado de Maastricht, é um projeto desdemocratizador de guerra de classe e hoje, evolução orgânica, é um projeto de guerra pura e simplesmente, como bem tem argumentado Paulo Coimbra

A integração europeia, desde os anos 1950, é uma nota de rodapé na paz europeia, esse produto paradoxal da Guerra Fria, como é óbvio. Quando a Guerra Fria acabou, a guerra regressou à Europa, até aos dias de hoje. 

Entretanto, se não fosse a Katastroika, não estaríamos provavelmente nesta ordem neoliberal bárbara, há que reconhecer e nem vos conto o que me custou fazê-lo.

É melhor derrotar o militarismo

“O que eu sei é que, se queremos manter as nossas sociedades seguras... veja bem, se não fizermos isso, se não chegarmos aos 5%, incluindo os 3,5% destinados a despesas essenciais com a defesa, ainda poderemos ter o National Health Service, ou, noutros países, os seus sistemas de saúde, o sistema de pensões, etc., mas é melhor aprender a falar russo”, disse anteontem o secretário geral da NATO, Mark Rutte.


Calam a expansão para leste da NATO

De forma ridícula chutam para debaixo do tapete a sabotagem americana do NordStream, facto que os EUA anunciaram antecipadamente e do qual, repetidamente, se gabam.  

Excluem-se do acesso a energia russa barata. Fazem-no de forma despudoradamente anti-democrática, contra a vontade da maioria parlamentar alemã auxiliados por uma Comissão Europeia em processo acelerado de açambarcamento de competências que os tratados não prevêem, nomeadamente a competência da guerra.

Fizeram os preços subir em espiral. Geraram uma devastadora crise de custo de vida, assimétrica, que penaliza de forma esmagadora os de baixo, enquanto transfere milhares de milhões para os de cima.

Colocaram trabalhadores nacionais contra trabalhadores migrantes e acentuaram a exploração de todos eles. 

Por ação e inação tornam-se cúmplices do Estado Israelita no genocídio do povo Palestiniano. 

Criam leis, que designam por leis anti-ódio, que criminalizaram as manifestações contra este genocídio e sancionam os dissidentes sem lhes assegurar previamente o direito à defesa nos tribunais. 

Pressionam Estados soberanos com o tribunal europeu porque os seus cidadãos, sabendo na pele o que é o poder colonial, não se calam sobre o televisionado massacre a que assistimos. 

Vendem armas aos genocidas. 

Permitem, sem tugir nem mugir, que cidadãos europeus, eurodeputada incluída, sejam maltratados. 

Dizem-nos que as sanções que aplicaram aos russos, que teriam sido obrigados a pilhar chips das máquinas de lavar e dos frigoríficos ucranianos, os colocaram de joelhos. 

E agora, finalmente, dizem-nos que, embora podendo e devendo aldrabar a contabilidade pública para mascarar despesas com a guerra e agradar a quem as impõe, ainda assim, temos de trocar os nossos serviços públicos de saúde, cada vez menos grátis e universais, e as nossas pensões pela possibilidade de resistir aos tais russos que estavam de joelhos. 

E, numa União Europeia que proscreve liminarmente toda e qualquer política económica minimamente keynesiana que seja, ainda nos dizem que foi o socialismo que nos trouxe aqui. 

E, à esquerda, aquela que participa diretamente do extremo-centro que aqui nos trouxe, mas não só, enredados com a fidelidade à ideia de uma UE que não existe e se tornou parte do problema e incapazes de reconhecer que erraram quando não condenaram o cerco da NATO à Rússia, ainda há quem tenha a coragem de defender que é mesmo necessário embarcar nesta óbvia loucura destrutiva que é a corrida armamentista imposta pelos idiotas celerados que puxam os cordelinhos na plutocracia americana e na burocracia vassala e desprovida de qualquer sentido moral e estratégico que desgoverna a irreformável UE. 

Pessoalmente não vejo outro caminho: estarei com aqueles que este sistema colocou de fora, contra a guerra, contra o capitalismo que a impõe, interpelando os que decidem não ver.  

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Seguir as ligações bárbaras


João Martins foi um dos atacantes nazifascistas do ator Adérito Lopes, ontem na Barraca. Um ataque feito pelos grupos que o Governo convenientemente removeu de um recente relatório sobre segurança interna.

Este criminoso foi condenado a 17 anos pelo assassinato de Alcindo Monteiro e escreveu um artigo no “esgoto” que dá pelo nome de Observador, para usar o rigoroso termo de Alexandre Severo, com a memória que tem de ser a dos antifascistas. 

Este esgoto é pago pelas mesmas pessoas que bancam a trampa do mais liberdade para explorar, o stink-tank que serve também para financiar os liberais até dizer chega. 

Quem não quiser falar de capitalismo, ou pelo menos de uma certa forma de capitalismo, e da ideologia liberal que o legitima, deve calar-se sobre o fascismo, sabemos há décadas. 

Isto está tudo ligado, não é Luís Amaral e Carlos Moreira da Silva, capitalistas que sabem que não há almoços grátis na luta ideológica rumo à barbárie?

Aqui estamos, antifascistas, não temos medo, ou temos, é humano, mas juntos é como se não tivéssemos. Haja ligações socialistas. Não passarão.

Muita fé na Reforma do Estado


A grande novidade do novo governo da AD foi a criação de um Ministério para a Reforma do Estado. Esta notícia, muito celebrada (como se vê pela parangona do Eco), encerra dois grandes equívocos.
 
O primeiro é a ideia de que pouco tem sido feito para alterar o funcionamento do Estado português nas últimas décadas. Não é preciso puxar muito pela memória para listar várias das iniciativas que, tanto governos do PS como do PSD/CDS implementaram. As privatizações, as Parcerias Público-Privadas (PPP), a empresarialização da gestão dos serviços públicos e a externalização de funções foram uma constante desde a década de 1990. Já neste século tivemos o SIADAP em 2004; o PRACE e o SIMPLEX em 2006; o PREMAC em 2011; a centralização dos contractos e das compras públicas, e a gestão partilhada de recursos pela ESPAP desde 2012; o SIMPLEX+ em 2016; a descentralização de competência para as autarquias em 2019; a criação do PlanAPP em 2021. Identifiquemo-nos ou não com as orientações seguidas em cada caso, reformar o Estado tem sido uma parte central de todos os governos portugueses das últimas décadas.
 
O segundo equívoco é de que a Reforma do Estado é um exercício técnico, que só precisa de profissionais competente à frente para melhorar o país. Na verdade chamamos “reformas do Estado” a animais de espécies muito diferentes, incluindo: a melhoria de processos administrativos (simplificação, desburocratização, digitalização); reformas da função pública (carreiras, avaliação de desempenho, recrutamento, promoções); alterações nas estruturas verticais (relações entre Estado central, regiões e autarquias locais) e horizontais (distribuição de responsabilidades entre ministérios e entre agências públicas; ou alterações substantivas das funções do Estado (articulação com privados e sector social no financiamento e provisão de serviços públicos).
 
Nuns casos, estamos todos muito de acordo: quem não quer processos mais simples e transparentes? Noutros casos, nem por isso: quão longe estamos dispostos a ir na delegação das funções de sociais do Estado em grupos económicos privados? Devemos ou não financiar colégios privados com dinheiros públicos? Deve ser cada município ou antes o Estado central a garantir o acesso universal e de qualidade à saúde e à educação? Estamos dispostos a abdicar de avaliações ambientais para simplificar qualquer tipo de investimento produtivo? Estas e outras são escolhas políticas, que seria bom conhecermos antes de celebrarmos intenções mais ou menos vagas.
 
Não há dúvida de que existe muita margem para melhorar a eficiência e eficácia da acção do Estado português. Mas é preciso algum grau de ingenuidade para acreditar que a criação de um Ministério dedicado ao tema (o que não é sequer original) só pode trazer coisas boas.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Três notícias e cinco notas


1. O ressurgimento de bairros de barracas em concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, onde se estima vivam hoje cerca de 3.000 famílias (seriam 1.800 num levantamento feito também pelo Expresso em 2019), constitui a evidência mais grave e impressionante do ponto a que chegou a crise de habitação no nosso país. Já não estamos apenas a falar do desfasamento crescente entre preços da habitação e rendimentos das famílias. Estamos perante a incapacidade objetiva de muitas famílias em aceder a um alojamento com condições minimamente dignas de habitabilidade.

2. Têm por isso razão os serviços da Comissão Europeia ao assinalar que as medidas adotadas nos últimos anos em Portugal são incapazes de responder às causas estruturais da crise. Sendo certo, porém, que às medidas propostas (controlo de rendas e restrições ao Alojamento Local), deveriam somar-se mecanismos robustos de regulação das procuras especulativas, externas e internas. Tal como convinha, já agora, que a União Europeia assumisse a sua pesada responsabilidade pelo incentivo às lógicas liberais de mercado, fingindo não saber que este, deixado à solta, é incapaz de assegurar a provisão de habitação (como ainda parece pensar, com insidiosa teimosia, o ministro Castro Almeida).

3. Continuamos, de facto, sujeitos à tese simplista dominante - que a comunicação social trata de difundir e consolidar - segundo a qual tudo se resume a uma mera falta de casas, como se bastasse construir mais para ultrapassar a crise. Ignorando, desde logo, que o número de alojamentos e de famílias pouco se alterou na última década (mesmo nas áreas metropolitanas), a ponto de justificar a subida vertiginosa dos preços desde 2013. Ignorando, em segundo lugar, que a habitação se converteu num ativo financeiro e que a procura deixou de estar delimitada às fronteiras nacionais, gerando efeitos de arrastamento dos preços. Diagnósticos errados geram políticas ineficazes.

4. Como Ricardo Paes Mamede já aqui assinalou, as reações dos liberais cá do burgo às recomendações dos serviços da Comissão Europeia (e que de resto não foram acolhidas pelo Conselho no documento final), não se fizeram esperar. Uma vez mais, voltando a defender a ausência de limites legais à fixação do valor das rendas, num país onde a regulação do arrendamento praticamente não existe, ao contrário da generalidade dos países europeus. E insistindo, uma vez mais também, no falso e eterno mito do congelamento das rendas.

5. Voltemos às barracas. Por razões muito distintas das do passado, bairros de lata voltam a despontar na Área Metropolitana de Lisboa. Não se trata, como então, de uma efetiva escassez de alojamentos para acolher os milhares que rumaram à capital. Trata-se agora, isso sim, da incapacidade de conseguir casa num mercado dinamizado por novas procuras especulativas com elevado poder aquisitivo, num contexto de défice de regulação. O que torna ainda mais repugnantes e inaceitáveis ações de demolição que não acautelam previamente soluções alternativas para os moradores. Tanta determinação demagógica para umas coisas e tanta falta de coragem política para outras.