segunda-feira, 30 de junho de 2025

Os juros tinham de subir para travar a inflação?

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O fórum do Banco Central Europeu (BCE) começa esta segunda-feira em Sintra. A reunião anual acontece numa altura em que se discute se o banco central deve continuar a baixar as taxas de juro, uma vez que a inflação se encontra controlada, ou se vai fazer uma pausa, tendo em conta a incerteza sobre o impacto das tarifas na economia europeia.

Para saber se os juros devem ou não descer, é preciso perceber porque é que subiram inicialmente. Desde que, em 2022, a inflação começou a aumentar e atingiu valores a que não estávamos habituados, a prioridade expressa pelos bancos centrais foi a de fazer com que esta regressasse aos 2%. Este é o “alvo” que a maioria dos bancos centrais define e em torno do qual se centra o seu mandato: tomar as medidas necessárias para garantir que o ritmo de aumento dos preços não é superior (ou, nalguns casos, inferior) a 2%, pelo menos durante muito tempo.

A resposta adotada pela maioria dos bancos centrais passou pelo aumento das taxas de juro. Os juros subiram de forma substancial ao longo de 2022 e 2023, atingindo 4,5% na Zona Euro e mais de 5% nos EUA e no Reino Unido, depois de um longo período em que tinham sido mantidos em valores muito próximos de 0%.


A partir de 2023, a taxa de inflação diminuiu a um ritmo semelhante ao que tinha registado durante o período de subida. Na Zona Euro, a taxa de inflação já regressou ao alvo dos 2% e, para já, não parece haver sinais para alarme. Esta descida tem sido lida como um sinal de sucesso da política monetária. No entanto, o papel da política monetária neste processo é bastante discutível - não só pela eficácia duvidosa, mas também pelos impactos desiguais provocados.

Fonte: Bloomberg

Porque é que os juros aumentaram?

Os bancos centrais atuam com base no pressuposto de que as pressões inflacionistas resultam de um excesso de procura na economia. Se, num determinado momento, existe um aumento da despesa pública ou uma subida excessiva dos salários (e, em consequência, do consumo) e passa a haver demasiada procura para a oferta existente, isso provoca uma pressão sobre as empresas para aumentar os preços.

Neste caso, costuma dizer-se que a economia está “sobreaquecida”. A subida das taxas de juro tem como principal objetivo arrefecê-la: ao subir os juros, os bancos centrais tornam mais caro o recurso ao crédito, o que se pressupõe que dificulta o acesso a empréstimos por parte das empresas e, por isso, acaba por reduzir o investimento. A ideia passa por comprimir a atividade económica (e o emprego) de forma a estancar as pressões inflacionistas.

O problema desta abordagem é que é cega em relação às origens da inflação. As pressões inflacionistas podem não ser motivadas por problemas do lado da procura, mas sim da oferta. E é isso que sugerem os dados disponíveis sobre os últimos anos, tanto nos EUA como na Zona Euro: sem sinais de excesso de procura, o que motivou a subida inicial dos preços da energia, que depois se alastraram ao resto das atividades económicas que a utilizam, foram os constrangimentos da oferta provocados pelas medidas de confinamento e pela guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços do petróleo e do gás.

Fonte: QERY, com base em dados do Eurostat

É difícil perceber que papel desempenhou a política monetária na descida da taxa de inflação para valores próximos dos 2%. A redução da pressão sobre os preços não aconteceu por via do arrefecimento da economia e do mercado de trabalho, visto que, durante a subida e a descida da taxa de inflação, tanto o desemprego como o rácio de ofertas de emprego (job vacancy ratio) mantiveram-se essencialmente inalterados. O que se verificou foi uma descida dos preços da energia e uma diminuição dos constrangimentos do lado da oferta, o que pode ajudar a explicar porque é que a redução da inflação aconteceu também em países onde o banco central não aumentou a taxa de juro diretora, como o Japão.

Aumentar as taxas de juro não tem nenhum efeito óbvio sobre os preços da energia. Como escreveu Joseph Stiglitz, “a desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas”. No entanto, o mandato dos bancos centrais determina que utilizem o único instrumento de que dispõem. Para quem só tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

Porque é que o alvo são os 2%?

Ainda que o mandato dos bancos centrais não seja igual em todo o lado, o alvo dos 2% é oficial em mais de 60 países por todo o mundo. A pergunta óbvia é: de onde é que veio este número? Ao contrário do que se possa pensar, o alvo não foi definido por nenhuma das maiores potências económicas que hoje o adotam, como os EUA, a Zona Euro, o Reino Unido ou o Japão. O primeiro país a adotar formalmente os 2% de inflação como alvo do banco central foi a Nova Zelândia, em 1989. E a história de como se chegou ao valor é ainda mais surpreendente.

A Nova Zelândia - à semelhança do resto do mundo - enfrentava níveis de inflação elevados após os choques petrolíferos da década de 1970. O presidente do banco central, Don Brash, e o ministro das Finanças, David Caygill, receberam instruções para definir um alvo para a inflação. Durante este processo, um ex-ministro das Finanças do país disse publicamente que o governo pretendia garantir que a inflação se fixasse entre 0% e 1%. Como Brash explicou mais tarde, “Foi quase uma frase ao calhas […] o número surgiu do nada para influenciar as expectativas na opinião pública”. A verdade é que teve impacto no processo de decisão. Brash e Caygill consideraram que seria melhor ter uma margem de manobra ligeiramente maior e acabaram por definir o alvo do banco central nos 2%. A taxa de inflação da Nova Zelândia atingiu esse valor ao fim de dois anos e o alvo começou a ser adotado por países como o Canadá ou o Reino Unido, tendo depois sido generalizado.

Não havia nenhuma justificação económica para o alvo dos 2%, como os próprios intervenientes reconhecem. Este número não é o resultado de nenhum estudo académico ou de cálculos rigorosos. Foi um número que “caiu do céu” e se tornou a norma adotada pela maioria dos países.

Desde então, tem havido várias tentativas de encontrar evidências para justificar o alvo dos 2%. Uma das ideias é a de que a inflação constitui um entrave ao crescimento. Contudo, não é isso que a história das economias sugere. A história mostra que níveis de inflação relativamente mais altos estão associados a períodos de crescimento real mais robusto. A investigação de Robert Pollin e Hannae Bouazza, investigadores na Universidade de Amherst (EUA) que analisaram uma amostra de 130 países ao longo de seis décadas, sugere que o crescimento das economias é superior quando a inflação se encontra entre 4% e 5%.

Mesmo olhando apenas para os 37 países classificados pelo Banco Mundial como sendo de “rendimento elevado”, com PIB per capita superior, o resultado é semelhante: as economias tendem a crescer mais (em termos reais) quando a inflação é relativamente superior a 2%. Se este fosse o critério, não faria sentido fixar limites tão baixos para a inflação.

Fonte: The American Prospect, com base na investigação de Pollin e Bouazza

Ou seja: a política monetária dos últimos anos foi definida com base em pressupostos discutíveis sobre a origem da inflação e o seu principal objetivo é atingir um alvo para o qual não existe uma justificação teórica sólida. Assim, resta perceber porque é que não se consideraram alternativas a esta política.

Quem é que define a política monetária?

Desde a década de 1970, na maioria dos países, a política monetária passou a ser definida por bancos centrais independentes do poder político. A ideia era impedir que os governos interferissem no objetivo de garantir estabilidade de preços. Este paradigma baseou-se nas hipóteses de que existe uma relação inversa entre o desemprego e a taxa de inflação (uma relação que ficou conhecida como a “curva de Phillips”) e de que os políticos teriam tendência para querer reduzir o desemprego, sacrificando a estabilidade de preços por motivos eleitorais.

Se os trabalhadores começassem a esperar níveis de inflação mais elevados no futuro, começariam a exigir maiores aumentos salariais, levando as empresas a aumentar os preços para poderem manter as suas margens, e assim sucessivamente. O resultado seria uma espiral inflacionista. Como o risco de deixar a política monetária nas mãos dos governos era demasiado grande, a conclusão é que seria melhor entregá-la a instituições formalmente independentes.

O facto da inflação ter diminuído nas décadas seguintes foi visto como prova do sucesso da independência dos bancos centrais. No entanto, alguns estudos (aqui ou aqui) têm demonstrado que não é possível estabelecer uma relação entre as duas coisas. Há bons motivos para crer que outros fatores foram determinantes: a moderação da inflação esteve associada à globalização, que permitiu o acesso a matérias-primas e produtos baratos, e com a supressão do poder negocial dos trabalhadores, que levou à estagnação dos salários.

A verdade é que, nas últimas décadas, a relação entre o desemprego e a inflação parece-se cada vez menos com a hipótese da curva de Phillips. Recentemente, um estudo de dois economistas da Reserva Federal dos EUA, intitulado “Quem Matou a Curva de Phillips? Um Mistério Policial”, debruçou-se sobre este fenómeno e concluiu que a quebra da relação inversa entre as variáveis se deveu à erosão do poder negocial do trabalho. Ou seja, menores níveis de desemprego não levam necessariamente a mais inflação.

Além disso, na década que se seguiu à crise financeira de 2007-08, o BCE reduziu as taxas de juro para valores próximos de 0% com o objetivo de estimular a economia e isso não se traduziu num aumento da inflação, o que põe em causa a ideia de que existe uma relação direta entre as taxas de juro e a evolução dos preços.


Pode tirar-se a política da política monetária?

O grande problema da suposta “independência” dos bancos centrais está em assumir que as decisões sobre as taxas de juro são de natureza técnica ou científica e que as opções de política monetária são neutras, quando não são. A política monetária, tal como a política orçamental, é política: depende de pressupostos discutíveis e de avaliações sobre os custos e os benefícios da inflação.

A subida das taxas de juro afeta de forma diferente grupos diferentes. Por um lado, tende a prejudicar quem tem dívidas e paga juros, penalizando sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores e/ou detentores de ativos financeiros, tipicamente nos escalões mais altos. Por outro lado, se comprimir a atividade económica e aumentar o desemprego, que atinge primeiro os trabalhos mais precários e com piores salários, também prejudica quem ganha menos.

Ao definir um alvo demasiado baixo para a inflação considerada aceitável, os bancos centrais são mandatados para aplicar uma política de subida dos juros que não afeta todos da mesma maneira. No caso da Zona Euro, as decisões do BCE não só afetam de forma diferente grupos sociais diferentes, como têm impactos diferentes nos diferentes países. A subida das taxas de juro, que fez aumentar as prestações dos empréstimos à habitação, levou a maior perda de poder de compra nos países com maior peso dos empréstimos a taxas variáveis. Portugal foi o país onde as famílias foram mais afetadas pela subida dos juros e das prestações das casas, segundo um estudo do FMI.

Não existe verdadeira independência quando a atuação dos bancos centrais não é neutra. O historiador económico Adam Tooze resume-o: "As hipóteses sobre a economia nunca foram mais que uma interpretação parcial da realidade. A visão alarmista [sobre a espiral inflacionista] não era tanto uma descrição da realidade, mas sim um meio de impor a disciplina de mercado". As decisões sobre a política monetária assentam em pressupostos discutíveis e não afetam todos os grupos da mesma forma, o que implica que não podem ser tomadas à margem da democracia.

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