terça-feira, 24 de junho de 2025

Também não tens sentido o crescimento da economia?

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Nos últimos anos, a economia portuguesa tem crescido às taxas mais elevadas da sua história recente. Entre 2022 e 2024, o PIB cresceu a uma taxa média anual de mais de 4% (em termos reais), bem acima da taxa média anual de menos de 1% registada entre 2000 e 2019. A taxa de desemprego tem-se mantido em torno dos 6% e o país conseguiu contrariar o défice crónico na balança comercial - o que significava que gastávamos mais em importações do que aquilo que recebíamos pelas exportações - e passámos para a situação inversa, registando excedentes comerciais.

Os números da economia sugerem um cenário positivo e, a nível internacional, Portugal tem sido descrito como um caso de sucesso económico. O indicador que mais impressiona é o dos salários reais - isto é, a evolução dos salários descontando a inflação. O salário médio real registou uma quebra de 4% em 2022, quando a inflação atingiu o pico, mas a tendência inverteu-se depois: subiu 2,3% em 2023 e 3,8% em 2024, o que tem sido visto como sinal de que já se recuperou o poder de compra.

No entanto, o custo de vida e a subida dos preços continuam a ser, a par da saúde, a principal preocupação dos portugueses, de acordo com o último Eurobarómetro do Parlamento Europeu. Parece haver uma discrepância entre os indicadores oficiais e a experiência de boa parte das pessoas. Este texto discute três aspetos que ajudam a explicar porque é que o crescimento da economia não se reflete necessariamente na qualidade de vida de muitas pessoas: o modelo de crescimento que temos, o aumento (subestimado) do custo de vida e o desinvestimento público.

Que economia é que cresce?

O primeiro aspeto a ter com conta é o tipo de crescimento que temos tido nos últimos anos. O crescimento do PIB tem sido alavancado pelo desempenho extraordinário do setor do turismo, que tem batido sucessivos recordes de receitas. O peso do turismo passou de 6,9% do VAB em 2016 para 9,1% em 2023 e atingiu máximos históricos. Além disso, o setor é responsável por uma parte significativa do aumento das exportações do país, ajudando a explicar o excedente externo.

No entanto, mais importante do que olhar para os números do crescimento é perceber de que forma se distribuem os ganhos. Embora o turismo seja responsável por boa parte da criação de emprego na última década, é preciso ter em conta o tipo de emprego de que estamos a falar. O setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo do país, de acordo com os dados do INE. Mais de 40% dos trabalhadores do setor recebem o salário mínimo. Apesar das receitas recorde, o turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.

Face à enorme quebra da produção industrial nas últimas duas décadas – a maior entre os países da União Europeia –, o país encontra-se cada vez mais dependente do turismo e de serviços associados. Como consequência deste modelo de crescimento, a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo tem aumentado e Portugal é o país da UE em que o salário mínimo se encontra mais próximo do salário mediano.


O crescimento tem um preço?

A expansão do turismo tem outros efeitos para o resto do país e a crise da habitação é o exemplo mais evidente. Entre 2014 e 2024, o preço das casas em Portugal subiu mais de 135%, enquanto o salário médio cresceu apenas 36%. A recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura turística, nomeadamente através da expansão do alojamento local nas cidades, contribuiu para o aumento dos preços, a par do investimento estrangeiro e dos incentivos fiscais para residentes não-habituais.

Tanto no caso de quem arrenda casa e paga uma renda ao senhorio, como no caso de quem comprou e paga uma prestação ao banco, os custos da habitação são normalmente a maior fatia das despesas do mês. A habitação representa mais de um terço da despesa média das famílias em Portugal, de acordo com os dados do INE. No entanto, o índice que usamos para medir a inflação - o Índice de Preços no Consumidor (IPC) - não inclui a despesa com prestações e atribui um peso reduzido à despesa com a renda, a água, a eletricidade e o gás (em torno dos 10% do orçamento familiar). Isto significa que o IPC, que é usado para medir a evolução dos salários reais e do poder de compra, subestima de forma significativa o aumento do custo de vida.

Desde 2021, a prestação média para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%, passando de menos de €250 para mais de €440. No caso das rendas, o valor mediano cobrado pelos senhorios nos novos contratos subiu 32% neste período (e a subida foi superior nas regiões de Lisboa, Porto e Algarve). Em ambos os casos, o indicador que usamos para medir a inflação subestima o aumento do custo de vida.


As limitações do indicador da inflação não são apenas detalhes técnicos: o IPC é o referencial usado nas negociações salariais entre empresas e sindicatos e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, leva a aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços.

O barato sai caro

A crise do custo de vida é agravada pelo desinvestimento do Estado. Ao longo da última década, Portugal registou os níveis mais baixos de investimento público da história recente e foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB, em nome da prioridade dada à obtenção de excedentes orçamentais.


O desinvestimento tem um impacto direto no custo de vida. O encerramento de urgências e o aumento das listas de espera no SNS leva muitas pessoas a recorrer aos hospitais privados e a suportar as despesas, à semelhança do que acontece na área dos cuidados, pela ausência de uma rede pública de creches e de prestação pública da assistência aos idosos ou pessoas com deficiência a preços acessíveis. Os comboios e autocarros sobrelotados levam a que, para muitos, não haja alternativa a usar o carro (com os custos do combustível associados). Na habitação, as dificuldades de acesso são agravadas pelo subinvestimento em habitação pública, que continua a representar uma fração ínfima do mercado, ao contrário do que acontece em vários países europeus.

A descida dos impostos aprovada no último ano não só não compensa a subida dos custos destes serviços, como beneficia essencialmente quem ganha mais (e menos precisa). O outro lado da moeda das reduções de impostos é a quebra da receita com que se poderiam financiar os serviços públicos disponíveis para todos.

Não estamos todos no mesmo ferry

Por último, é preciso olhar para os impactos que o crescimento dos últimos anos tem tido para lá da economia. A turistificação também tem impacto no direito ao espaço público. Enquanto o aumento do preço das casas afasta cada vez mais pessoas do centro das cidades, o comércio local vai sendo substituído por cafés gourmet e lojas de cadeias internacionais, destinadas a turistas e nómadas digitais com maior poder de compra. Ao mesmo tempo, a expansão de hóteis, resorts e outros serviços nas zonas mais procuradas pelos turistas também está a dificultar o acesso dos residentes.

O caso de Tróia é emblemático. Nos últimos 20 anos, os preços dos barcos entre Setúbal e Tróia quadruplicaram: o bilhete subiu de €1,15 para €5,50 por passageiro e de €5,70 para €21 por carro, o que fez com que o número de passageiros tenha caído para metade. As praias deixaram de ser acessíveis para muitas pessoas e tornaram-se um luxo reservado a quem pode pagar.

Enquanto Portugal se transformou numa economia de férias, os consumidores portugueses estão entre os europeus que menos gastam nas férias de verão. Usufruir do litoral do país tornou-se difícil de comportar para quem cá vive, sendo sobretudo acessível para turistas. O Algarve é o expoente máximo deste modelo económico: a 2ª região com maior PIB per capita do país tem índices de pobreza acima da média nacional; faltam pelo menos 10 mil fogos para alojar residentes, mas há 200 mil casas vazias para turistas.

As contradições do modelo de crescimento recente ajudam a explicar a diferença entre os “bons resultados da economia” e a vida da maioria das pessoas que cá vive e trabalha. Como o crescimento não é um fim em si mesmo, era importante que se prestasse mais atenção à distribuição.

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