sábado, 27 de junho de 2020

Leituras


«A pandemia de covid-19 funcionou como um martelo de Thor, mandou-nos uma pancada que ajudou a perceber melhor o que já cá estava antes. Anos de ostracismo dos velhos fez crescer lares por todo o lado, frágeis e sem defesas, em muitas zonas suburbanas, vive-se miseravelmente, trabalhadores estrangeiros como os nepaleses, africanos, ciganos, com formas diferentes de marginalidade e exclusão, vivem em guetos onde pouco mais do que a Igreja penetra, e a disciplina do confinamento foi facilmente substituída por actos como o daqueles imbecis que resolveram fazer uma festa em Lagos e infectar-se colectivamente. Quando se vê a geografia dos últimos surtos na região de Lisboa, percebe-se esse mapa social.»»

José Pacheco Pereira, O martelo de Thor

«O vírus espalhou-se mais pelos concelhos com mais industrialização e níveis socio-económicos mais baixos. Era de esperar. O que não era de esperar é que o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas, fosse tão rápido a voltar. (...) Há séculos que os poderes instituídos tratam assim os problemas de saúde quando descem na escala social. (...) De repente esquecemos que estas pessoas e estas freguesias continuaram a ir trabalhar, vivem precariamente, pelo que o vírus correria necessariamente o risco de as apanhar, como em tantas pandemias passadas. É altura de olhar mais para os seus locais de trabalho, para as condições em que têm que lá chegar, para as condições em que vivem.»

Paulo Pedroso, A Covid-19 e o elitismo

«É confrangedor olhar para o mapa das freguesias da Área Metropolitana de Lisboa - um cordão infecioso em torno da capital que só exclui Oeiras e Cascais - onde está inscrita toda uma trajetória de segregação espacial de classe. De que é que estou a falar? De processos de décadas, recentemente muito acelerados pelo frenesim turístico e imobiliário, de expulsão das populações trabalhadoras e de imigrantes para as periferias de Lisboa. Essas populações estão sujeitas a penosas mobilidades diárias casa-trabalho-casa que acrescentam horas de incómodo aos horários de trabalho já de si longos, à vida em urbes degradadas onde não há condições para garantir os direitos fundamentais. Em muitos casos têm domicílios sem condições de higiene e habitabilidade.»

Manuel Carvalho da Silva, Devíamos estar no mesmo barco

«Precisamos de pôr mais comboios a funcionar, de arranjar desdobramentos rodoviários, de reforçar a resposta do metro, de garantir equipamentos de proteção nas empresas, de ter uma Autoridade para as Condições de Trabalho que fiscalize as condições de trabalho e de higiene e segurança nas empresas, de reabilitar os espaços onde a ausência de contacto é impossível, de dar oportunidades de realojamento a famílias cujas precariedade da habitação não permite as condições de salubridade e de dignidade necessárias, de alargar os apoios sociais a todas as pessoas que nunca puderam parar e que ficaram sem nada quando pararam. E precisamos de fazer isso não pelo pânico classista que vem agora exigir medidas sobre realidades às quais nunca prestou atenção e que sempre estiveram lá, mas sim porque é um dever do Estado e da comunidade, porque estamos a falar de direitos humanos e do respeito pelas pessoas cujos quotidianos são normalmente condenados à invisibilidade mediática e social.»

José Soeiro, As “novas classes perigosas” e o discurso moral da pandemia

«Walter Scheidel (...) publicou em 2017 um livro que desenvolve um argumento bastante trágico: que ao longo da história da humanidade, os episódios mais eficazes de redução generalizada dos níveis de desigualdade envolveram a ação de acontecimentos catastróficos. O argumento é trágico porque conduz à conclusão que um objetivo que a maioria de nós considera meritório (mais igualdade e mais justiça social) dificilmente pode ser alcançado de forma eficaz sem a intervenção de um dos quatro “cavaleiros do apocalipse”: guerra, revolução (em geral violenta), colapso do Estado ou epidemia. (...) [Mas este argumento] pode ser recuperado para uma leitura mais otimista: em última instância, todos estes processos materiais são mediados pela política, o que significa que deixamos a esfera das inevitabilidades e introduzimos variabilidade e indeterminação histórica em função da capacidade de mobilização, organização e persuasão.»

Alexandre Abreu, Pandemia, catástrofe e desigualdade

12 comentários:

Paulo Marques disse...

«O que não era de esperar é que o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas, fosse tão rápido a voltar. »

Ó Paulo, acorda pá, que isso até te fica mal. Já era hora de se aprender qualquer coisa com a GFC.

Jose disse...

«uma pancada que ajudou a perceber melhor o que já cá estava antes»

Temos mais consciência de classe e menos sentimentos de família.

Sabemos mais dos nossos direitos e não conhecemos os vizinhos.

Jose disse...

«o discurso da culpabilidade dos pobres»

A sua acumulação nas docas e juntarem-se nos copos em Lagos, é ainda assim inaceitável.

Jose disse...

«os episódios mais eficazes de redução generalizada dos níveis de desigualdade envolveram a ação de acontecimentos catastróficos» ..e todos acabam mortos.

Anónimo disse...

Engraçado que quanto mais se fala de desigualdade, mais ela se agrava.
A segurança social das corporações, em que o estado português está transformado, dará em breve lugar à austeridade para as classes mais baixas e médias, AGRAVANDO AINDA MAIS A DESIGUALDADE.

Anónimo disse...

para malta que andou tão tíbia no 1º de Maio, este José Soeiro anda agora muito saído da casca.

ASMO LUNDGREN disse...

esquece-se com isso que houve 69 casos no norte e 40 no alentejo nomeadamente 2 mortes em reguengos de monsaraz que não é um gueto de lisboa, a grande lisboa com um terço da população portuguesa tem grande probabilidade de acumular mais casos de covid-19 nos próximos tempos

JE disse...

Deixe-se para lá a desonestidade de joão pimentel ferreira, agora travestida também de Asno Lund qualquer coisa.

(Um belo exemplo do agir do fulano e do cumrimento íntegro da sua ideologia.. O cheiro fede tanto que as "corporações" que enxameiam a direita e a direita extrema têm tido alguma dificuldade em encontrar coisas com mais nível que este)

Atente-se no entanto na forma "exemplar" como Jose" interpreta a "denúncia" dos guetos que habitam a nossa sociedade e a marginalização degradante dos nossos velhos:

"Temos mais consciência de classe e menos sentimentos de família e sabemos mais dos nossos direitos e não conhecemos os vizinhos".

Interessante este edífício argumentativo... eis o que se faz quando se fica reduzido a estas coscuvilhices da treta

JE disse...

A coisa continua para as bandas de Jose.

A um facto :
"O que não era de esperar é que o discurso da culpabilidade dos pobres, erigidos de novo a classes perigosas, fosse tão rápido a voltar. (...)"

jose devolve com uma aldrabice rasteira:

"A sua acumulação nas docas e juntarem-se nos copos em Lagos, é ainda assim inaceitável"

Ora bem. Nada identifica como "pobres" quem participou na festa de Lagos que determinou mais de 100 infectados. Como também ninguém qualifica como "pobres" os que participaram na última sexta-feira de uma festa pública na via pública em Lagos.

Jose faz aquilo que é muito habitual entre a malta deste género. Generaliza situações e distorce a realidade de acordo com os objectivos que se pretende.

Enquanto ao mesmo tempo se culpabilizam as vítimas

É feio. É de pé-de-chinelo. E é de doutrinário.

JE disse...

"...e todos acabam mortos."
Jose, 27 de Junho de 2020

(A morte) "é o destino de todo o mundo".
Jair Bolsonaro, 2 de Junho de 2020

Estas almas que se revelam tão gémeas...

Geringonço disse...

Fascismo é um culto da morte...

A.R.A disse...

E pronto! Lá vamos nós outra vez à propaganda da culpa!
Governo/ António Costa afirmou que se a coisa der para o torto a culpa não é dele porque a DGS é m.saude não lhe terem facultado todos os dados?
- Então mas já não seria expectável que com o desconfinamento houvesse um aumento exponencial de casos e que para tal deveria ter-se aumentado a oferta nos transportes/ aumento da testagem junto das empresas que não "confinaram" antes do desconfinamento/ criação de um mecanismo autónomo de despistagem junto das autarquias para um foco epidimidologico mais preciso é uma verdadeira noção do factor R por Rua, bairro, freguesia, etc
Ministério da Saúde e DGS
- Incompreensão da estratégia inicial a seguir/ falta de incentivo ao uso da mascara social/ deficiente articulação com as autarquias
Parlamento
- Depois de uma 1a fase de total confiança e apoio ao governo no combate ao vírus assiste -se a um politizado uso do vírus de uma forma contraproducente/ a triste figura do autarca de Ovar com o aplauso do Rui Moreira acerca de uma cerca sanitária em Lisboa esquecendo que fez um pé de vento( e bem!) sobre uma possível cerca sanitária no Porto demonstrando quem é na verdade (dúvidas houvessem!)
População
- Passamos de besteais a bestas num ápice e com razão pois é difícil fazer perceber aos nossos concidadãos que a impaciência em voltar ao "normal" tolda o raciocínio social e aumenta o número de casos impedindo que a economia recomece de um modo mais seguro/ a estupidez da luta pífia entre Norte e Sul/ Velhos e novos/ Ricos e pobres/ Esquerda ou direita

Concluindo, a Culpa é de todos nós e de nada vale a costumeira troca de galhardetes contraproducente e "viral" porque desta feita um mau resultado não é uma possível perda de eleições ou cargos ou compadrios afins, são vidas e ou sequelas para a vida de todos nós.

Pensem nisso.