sábado, 3 de março de 2012

Mais paradoxos


José Manuel Fernandes e outros ideólogos austeritários têm toda a razão: com estes níveis de desemprego não há modelo social, no sentido de um sistema de provisão pública universal de bens e serviços sociais, associado a mecanismos de coordenação laboral que dêem voz e direitos aos trabalhadores, que resista. Daí a sua insistência nesta linha, onde não falta o romance do empreendedorismo. Isto quando se sabe que o investimento depende das expectativas sobre a evolução da chata da procura. Como já aqui argumentei, em resposta a Fátima Bonifácio, outra da mesma cepa de ex-esquerdistas fervorosos, o problema está numa economia que foi tornada incompatível com esta forma de regulação social. É esta economia que tem de ser reformada, revertendo décadas de regressão estrutural. O problema é por onde começar: sugiro a moeda e a finança.

E volto aos paradoxos da depressão do meu último poste, apresentado o social: o tal modelo social é um dos grandes estabilizadores de uma economia cada vez mais instável e a sua destruição é um gerador de novas rondas de instabilidade económica, de depressão. No mundo de fantasia, na bolha, onde as elites vivem estes detalhes não entram. Como não entra o facto de o desemprego estar a ser gerado por duas forças: a desastrosa adesão a uma moeda demasiado forte e inflexível, muito parecida com o padrão-ouro, e uma austeridade depressiva. As lições dos anos trinta estão connosco. De resto, as políticas de austeridade têm um elevado grau de performatividade, pois ajudam a criar a realidade da destruição do acervo de reformas estruturais democráticas que tinham permitido criar ilhas de decência na economia. Esta é a base da sua economia política: as elites, a começar em Frankfurt, sabem que têm todos os instrumentos para aprofundar a sua luta de classes na Europa. O que parecem não saber, pois neste momento os contramovimentos sociais não têm força para lhes dar incentivos para perceber, é que nada disto vai funcionar.

E isto é a economia política da aberração que dá pelo nome de Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na UEM: “o tratado que dá prioridade eterna aos credores”. Outro paradoxo: demasiado poder para os credores dá cabo dos devedores e no fim dos credores. Enfim, este é o tratado da instabilidade, da descoordenação e do desgoverno. É o tratado que expõe a estupidez e a arrogância sem fim de uma elite que age como se desconhecesse os paradoxos da depressão. Terá um de três destinos: ou será rejeitado pelos povos em referendo, força Irlanda, ou será aprovado e ignorado, dado que finge que pode controlar variáveis endógenas, ou será levado a sério e nesse caso não nos restará outra alternativa senão enfrentar a escolha que nos será colocada na melhor das hipóteses: anos, décadas, de empobrecimento e de total arrasamento social ou sair deste pesadelo e tentar reconquistar os instrumentos de política de um Estado-Nação com um maior grau de autonomia, entrando em incumprimento e saindo do euro, encetando o caminho argentino que a Grécia tentará em primeiro lugar. Digo na melhor das hipóteses porque o último paradoxo é o do euro e da sua autodestruição, o que significa que podemos não ter escolha porque seremos escolhidos pela realidade. A chata da realidade e dos seus múltiplos paradoxos…

1 comentário:

João Carlos Graça disse...

Caro João
A questão verdadeiramente central é porque está ainda uma parte significativa da nossa esquerda sociológica - isto é, aqueles para quem o Amorim e a doméstica estarem ambos a ser atendidos quase de borla no hospital público não é razão de escândalo - à espera duma salvação imaginária adentro da Eurolândia, não tratando portanto de preparar a nossa opinião pública para o que terá de ser feito quando realmente sairmos. (E vamos mesmo acabar por sair, sim, é claro).
Ah, quanto ao JMF e à FB, é recomendar-lhes a leitura do Albert Hirschman: o Amorim tem evidentemente mais capacidade de protesto ("voice") do que a doméstica. Mantê-lo dentro do sistema público, e quase de borla, é de facto garantir que o hospital público continua a funcionar bem. Deixá-lo ir embora, com "cheque-saúde", "cheque-ensino" ou afins, é pelo contrário garantir que o hospital público vai pelo cano, e pelo cano irá também a doméstica...
Mas daí, por outro lado, é claro que o JMF e a FB estão muito acima desses detalhes, como se compreenderá...