quinta-feira, 20 de junho de 2024

Pedalada - Crise climática


Já está disponível o segundo episódio do Pedalada, o vodcast do Ladrões de Bicicletas em parceria com a plataforma MyGig. Andreia Galvão (atriz e ativista climática), Luís Fazendeiro (investigador em sistemas sustentáveis de energia) e eu debatemos as múltiplas faces e desafios da crise climática e da transição energética. Com moderação do jornalista Ricardo Cabral Fernandes.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Reacionários até dizer chega


A ideia é evitar que em Portugal possa haver situações em que quem não trabalha tenha rendimentos dados pelo Estado que favoreçam a situação de se manter como está em vez de fazer procura activa de emprego e de trabalhar (...) não pode haver pessoas a ganhar mais por subsídio de desemprego ou por prestações sociais do que se estivessem a trabalhar.

A ministra que não é do trabalho, mas sim do capital, repete o fraudulento mantra neoliberal, revelador do projeto de classe, tão bem resumido há mais de 40 anos por John Kenneth Galbraith, economista social-democrata norte-americano: “Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos”. 

Somem a redução do IRC que está sendo planeada, por exemplo, à conversa reacionária da ministra e têm a mesma lógica de sempre: redistribuir de baixo para cima. 

Entretanto, vale a pena dizer mais três ou quatro coisas.

Em primeiro lugar, o subsídio de desemprego não é dado pelo Estado, é um direito que resulta dos descontos de quem cria tudo o que tem valor. 

Em segundo lugar, o subsídio de desemprego não cobre integralmente o rendimento perdido, longe disso. Tem por função garantir rendimento, reduzindo o desespero e a compulsão que podem levar o trabalhador a aceitar reduções ainda mais substanciais no salário num futuro emprego. Assim se atenua a possibilidade de círculos viciosos, com salários ainda mais baixos.    

Em terceiro lugar, o Governo aproxima-se do Chega, com quem sabe que pode ter maioria nesta área, incluindo à boleia da conversa: os pobres, de quem se deve desconfiar, não querem trabalhar, porque ganham muito, ouça.

Em quarto lugar, o Governo pretende perverter a lógica do subsídio de desemprego, usando-o para subsidiar salários. Assim se promove o patronato mais medíocre.
 

terça-feira, 18 de junho de 2024

Que tempos serão estes?


Mais vale a extrema-direita do que a nova frente popular: esta é, em síntese, a posição do grande patronato francês, que já anda a cortejar Le Pen, segundo o Financial Times

Está “assustado com a agenda radical da esquerda” em matéria de taxação, ou seja, com um programa social-democrata modesto e que visa aumentar a progressividade fiscal, incluindo através da reintrodução do imposto sobre as fortunas, abolido por Macron. Assustam-se com pouco, ou seja, estão muito mal-habituados. 

Na realidade, o grande patronato de hoje é fiel à história de antagonismo do “muro do dinheiro” em relação a todas as frentes populares, alimentando direta e indiretamente os fascismos. 

A nova frente popular tem um programa recuado e com contradições, apenas atenuadas pela natureza dos inimigos comuns, como sempre: superar Macron e a sua obra de regressão social e derrotar os novos rostos do fascismo. 

E digo atenuadas, porque sou um otimista com muita vontade. Na realidade, não há atenuação que disfarce a coexistência de saudáveis elementos soberanistas – recusar a austeridade com escala europeia, defendendo os serviços públicos franceses, e reabilitar a ideia de planeamento e monopólio público de setores fundamentais em França, contra as regras do mercado interno e os acordos de comércio livre – com elementos europeístas que podem deitar tudo a perder – toda a conversa do aprofundamento da integração, incluindo na sua dimensão militarista de “Europa da defesa”, alinhada de resto com uma posição basicamente de continuidade em relação à guerra na Ucrânia. 

Seja como for, e como defende Frédéric Lordon num texto luminoso, sem descuidar a relação de forças interna à heteróclita coligação, a nova frente popular parece ser a aposta certa na presente conjuntura, porque pode criar uma situação de renovada mobilização social, tal como aconteceu com as greves após as eleições de 1936, onde muito se decidiu. Assim se forçaria a mão de um governo progressista e se fragilizariam os seus opositores. Aliás, sem as mobilizações sociais contínuas contra o neoliberalismo de Macron é pouco provável que esta frente se tivesse sequer formado. 

O desafio parece ser sempre o mesmo, mudam as circunstâncias, o que não é pouco: levar a luta ao voto e fazer com que o voto alimente novas lutas sociais. Tudo o que merece e merecerá ser defendido foi sempre previamente conquistado. Haja esperança, o tempo é de cerejas.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Pouco distribui, pouco cresce


“Se conseguir ter uma economia que crie mais riqueza para poder pagar melhores salários”, Portugal pode competir e tal, afiançou Montenegro, uma vez mais. 

E, uma vez mais, a verdade tem de ser reposta: em Portugal, no último quarto de século, os salários reais cresceram abaixo da produtividade, ou seja, houve uma transferência de rendimento do trabalho para o capital à boleia da hegemonia neoliberal, sintetizada por Montenegro. Em 1999, os rendimentos do trabalho representavam cerca de 60% do total e agora representam cerca de 53%. 

Talvez seja melhor começar a inverter o raciocínio: obrigando a pagar melhores salários, consegue-se uma economia que crie mais riqueza. Há um mecanismo do lado da procura: o investimento, dizem os empresários, individualmente inquiridos pelo INE, depende das expetativas de vendas e a procura salarial é crucial neste campo. Há um mecanismo do lado da oferta: salários reais que pelo menos acompanham os ganhos de produtividade criam uma pressão para o investimento inovador, que gere mais ganhos de produtividade para se poder lucrar e suportar os “custos”. 

Obviamente, em primeira e em última instância, a repartição do rendimento e da riqueza é uma questão de relação de forças, dependente da taxa de desemprego e da alocação do feixe de direitos-obrigações, ali onde se cria tudo o que tem valor: menos direitos laborais correspondem a mais direitos patronais e vice-versa. 

O governo sabe isto e por isso a ministra do trabalho teve de ofuscar ideologicamente a questão: “Portugal sofre de um défice de produtividade porque a nossa legislação ainda é muito baseada nos modelos mais tradicionais de trabalho”. Traduzindo: o governo quer continuar o modelo tradicional de trabalho da troika, assegurando cada vez mais direitos patronais e logo cada vez mais rendimentos para o capital, numa economia continuadamente medíocre, que pouco distribui e pouco cresce, um padrão que a saudosa Maria da Conceição Tavares bem conhecia.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Frente que pode ser de novo popular


Quem diria que baixar os impostos aos mais ricos e aumentar os impostos regressivos sobre o consumo, levando a uma revolta popular, aumentaria as fraturas políticas? 

Quem diria que reduzir os direitos laborais e sociais, de novo com grandes protestos, aumentaria a polarização social? 

Quem diria que governar por decreto e à lei da bala, quando as coisas apertam, seriam sintomas de uma enorme impopularidade? 

Quem diria que a liberalização económica requer doses cada vez maiores de repressão, o chamado autoritarismo liberal? 

Quem diria que apostar no apoio a Israel e logo ao genocídio do povo palestiniano, apodando os críticos de “antissemitas”, e arriscar uma guerra entre potências nucleares não teriam apoio em segmentos cada vez maiores da sociedade? 

Quem diria que apostar numa mirifica “soberania europeia” apoucaria a soberania de um povo que, num certo sentido, a inventou e conquistou? 

Quem diria que o menino querido da The Economist e dos seus ecos nacionais – a opinião dominante no Público, por exemplo – revelaria ser um presidente retintamente burguês, com uma base social cada vez mais estreita? 

Quem diria que o extremo-centro neoliberal de Macron abriria caminho à extrema-direita? 

No Le Monde diplomatique – edição portuguesa não se diz outra coisa há anos. 

Entretanto, uma nova Frente Popular, em rápida construção, dos partidos de esquerda aos sindicatos, tenta travar a extrema-direita, aposta corroborada por sondagem desta semana: por exemplo, 44% dos jovens declaram aí votar na Frente Popular, ultrapassando esta também a extrema-direita entre as classes populares. 

O desafio é reinventar o antifascismo, quer como programa negativo, quer como programa positivo, superando o neoliberalismo; e isto num quadro de integração absolutamente desfavorável, ao serviço de todas as viragens para a direita. Sem esquecer que, entre a esquerda e a extrema-direita, o capital que é grande nunca hesitou.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Basta construir para resolver a atual crise de habitação?

Bruno Contreiras Mateus, diretor interino do Diário de Notícias, não tem dúvida: «Construir casas deveria ser a palavra de ordem na habitação. Mas não foi isso que aconteceu em Portugal. Se olharmos para 2001, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), foram construídas 115.609 novos fogos. Dez anos depois a queda era superior a 330%, com apenas 26.735 casas construídas, e em 2021 afundou ainda mais, para 19.616, quando precisamos de pelo menos o dobro da construção».

Foi pena que o diretor interino do DN não tivesse consultado a recente publicação do INE, sobre a evolução do parque habitacional. Se o tivesse feito, constataria que o número de alojamentos e o número de famílias quase não se alterou ao longo da última década, tornando por isso irrelevante, nessa medida, a quebra do volume de construção verificada desde 2021. De facto, o rácio entre alojamentos e famílias mantém-se em torno do valor de 1,5 (uma casa e meia por família) em 2011 e 2021, sendo aliás superior ao valor registado em 2001 (1,4).


Entre 2011 e 2021, tanto o aumento do número de alojamentos como o aumento do número de famílias são muito reduzidos e muito próximos entre si: 2,6% no caso dos agregados domésticos privados e 1,9% no caso dos alojamentos familiares clássicos. Nada que justifique, portanto, o aumento vertiginoso dos preços da habitação, de que Bruno Contreiras Mateus dá boa nota no seu artigo. E não se trata, como se possa supor, de um simples problema de distribuição desigual de casas e famílias no território: nas áreas metropolitanas ou nas cidades de Lisboa e do Porto, por exemplo, tanto os rácios como a evolução são idênticos.

Como a proporção de casas (oferta) e de famílias (procura) praticamente não se alterou, a explicação para a subida estratosférica dos preços das casas, tanto no arrendamento como na aquisição, terá pois que ser encontrada noutro lado. É aqui que entra, justamente, a necessidade de considerar a existência de novas procuras, associadas ao aumento do turismo (nomeadamente do Alojamento Local) e ao investimento imobiliário (nacional e internacional), que em muitos casos encaram a habitação como um simples ativo financeiro e não pela sua função residencial. Novas procuras essas que, pela sua própria natureza, podem vir a revelar-se inesgotáveis, por mais que se construa.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Um jornal para o nosso tempo


A juventude, essa construção social que apresenta os jovens como se fossem uma unidade social dotada de interesses comuns, homogeneizada e pasteurizada como o leite para iludir poderes e interesses conflituais que excedem o recorte etário, voltou a ter em Portugal um ministério dedicado (...) Sem salário digno, sem um contrato de trabalho, sem serviços públicos robustos, sem uma casa que possa pagar, sem acesso à gestão democrática das escolas e universidades, sem acesso à criação de cultura, sem pluralismo na comunicação social, sem um clima sustentável e uma transição energética justa, sem a perspectiva de poder viver em paz, em vez da ameaça da guerra, como pode a juventude sentir que o governo de um país ou as instituições da União Europeia lhe devolvem a esperança? Sem isso, o tempo da juventude de que os governos falam não é futuro nem inovação; é retrocesso e regressão. Parte da juventude (ela não é homogénea) já o sente e já inscreve a sua acção em lutas colectivas por justiça que ligam gerações através dos tempos. Estará aí para os combates que podem transformar angústia existencial em força colectiva de mudança. Qualquer que seja a sua idade, o presente é o seu tempo.

Sandra Monteiro, O tempo da juventude, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, junho de 2024.
 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Do eu ao nós

Foi um gosto ter sido mandatário nacional da CDU nas eleições para o parlamento europeu. João Oliveira, que tão bem encarnou e encarna os compromissos comunistas e ecologistas, foi merecidamente eleito e foi uma pena Sandra Pereira, por exemplo, não ter sido eleita.

Diz que sou independente, e é verdade no sentido de não ter filiação partidária, mas sinto-me muito dependente do coletivo. Partilhei do belo sentimento de camaradagem e amizade, através do qual reganho uma consciência, sempre a necessitar de ser renovada, de que não estou encerrado em mim mesmo. Passo do singular para o plural, sendo que esta passagem também só a mim compromete, claro. 

Fizemos o melhor de que fomos capazes nas circunstâncias que foram as nossas. Fomos contra e fomos a favor, com clareza e sem tibiezas e talvez por isso tenhamos sido tão atacados por uma comunicação antissocial, onde os jornalistas têm cada vez menos autonomia em relação a quem fixa linhas editoriais tão manifestamente enviesadas para a direita. 

Fomos contra o neoliberalismo armado de pendor federalista, que alimenta as novas formas de fascismo, porque incorpora parte da sua agenda e porque cria as condições objetivas, incluindo através das diferentes formas de austeridade, para as fraturas sociais e geopolíticas onde todos os reacionarismos medram. O militarismo, que se reforça, vai ser mais um pretexto para desinvestir ainda mais no Estado social. Apoucar e tornar materialmente impotentes as democracias, que são fundamentalmente nacionais, é a aposta deste federalismo, como sabemos desde que Hayek, em 1939, formulou de forma bem clara alguns dos mecanismos desta engenharia, tão neoliberal quanto supranacional, então utópica e hoje triunfalmente distópica. 

Fomos a favor de uma UE de geometria variável, mais cooperativa e menos concorrencial, onde os Estados que assim o desejem possam recuperar instrumentos de política adaptados às suas necessidades e aspirações. Menos integração, melhor integração. No fundo, mais democracia, não apenas política, mas também económica, social e cultural e logo menos inimizades entre os povos. Aliás, como dissemos várias vezes, sem democratização da cultura não há cultura democrática que resista e floresça perante obscurantistas e bem financiadas redes sociais reacionárias. 

E fomos intransigentemente a favor da paz e do não-alinhamento, em consonância com o espírito da nossa Constituição. Somos uma minoria política na UE neste campo, mas, a avaliar pelas sondagens, são cada vez mais os europeus que estão contra a perigosa escalada em curso e que querem negociações para acabar com a guerra. E, olhando para sul e para oriente, para lá da Europa, somos a maioria do mundo. Ouçam Lula ou o Papa Francisco ou o nosso Guterres na ONU ou...

Sim, ligar os pontos e ampliar a unidade, reforçando movimentos pela paz e pela soberania democrática deste e doutros países, neste e noutros países, são tarefas para patriotas e internacionalistas.
 

Porque ajustaram as taxas de juro?

 

Saiu no Público um artigo assinado por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), sobre a ligeira descida das taxas de juro aprovada esta semana. É um artigo que merece atenção, tanto pelo que afirma sobre a política monetária como (e sobretudo) pelo que omite.

A presidente do BCE começa por reconhecer que a subida da taxa de inflação não se deveu a um excesso de procura mas sim a um choque de oferta, devido aos constrangimentos nas cadeias de distribuição internacionais após a pandemia e a invasão russa da Ucrânia. Ainda assim, o BCE atuou no sentido de restringir a procura. Lagarde argumenta que isso era inevitável para evitar que os trabalhadores passassem a exigir aumentos mais elevados por esperarem níveis de inflação mais altos no futuro, gerando uma espiral inflacionista. Embora admita que a subida dos juros "criou dificuldades para algumas pessoas e empresas", ao fazer aumentar o custo dos empréstimos ou do crédito à habitação, Lagarde defende que a atuação do banco central assegurou a descida da taxa de inflação. É aqui que os problemas começam.

Por um lado, os dados sugerem que a descida da taxa de inflação se deveu essencialmente à redução dos preços da energia e à mitigação dos constrangimentos da oferta. É difícil perceber o papel que o BCE teve nestes desenvolvimentos, tendo em conta que até a própria presidente do banco central reconheceu várias vezes que "aumentar as taxas de juro não baixa os preços da energia", sobretudo quando esta é importada.


Por outro lado, a política monetária não parece ter tido o impacto desejado na compressão da atividade económica e do emprego. Apesar de se ter argumentado q o desemprego teria de aumentar para reduzir as pressões inflacionistas, a taxa de inflação diminuiu ao longo de 2023 e no início de 2024 sem que isso ocorresse na Zona Euro, como se vê no gráfico abaixo.


Existe o argumento de que a subida dos juros serviu para evitar expectativas de inflação mais elevada no futuro, contribuindo para evitar que os trabalhadores passassem a exigir maiores aumentos salariais e que as empresas aumentassem os seus preços em resposta. No entanto, os resultados de um inquérito recente realizado nos EUA mostram que a maioria das pessoas acredita que uma subida dos juros... agrava a inflação. Ou seja, a maioria das pessoas pensa exatamente o contrário do que os bancos centrais assumem, pelo que a sua tentativa de gerir expectativas poderia ter o resultado contrário. A verdade é que existem bons motivos para crer que as expectativas desempenham um papel muito menos relevante do que a teoria económica convencional assume.

Existe ainda o argumento de que não sabemos o que teria acontecido na Zona Euro sem a subida das taxas de juro. Só que, no Japão, a taxa de inflação teve uma evolução semelhante à das economias ocidentais (subida em 2022 e descida desde 2023) sem que o banco central tivesse aumentado as taxas de juro, o que indica que os motivos para a redução das pressões inflacionistas foram outros.

O que a inflação dos últimos três anos nos mostra é que todas as decisões que os bancos centrais tomam são discutíveis, desde os pressupostos em que assentam aos objetivos que prosseguem e à melhor forma de os alcançar são alvo de debate. A política monetária é política. Mas quando os bancos centrais são independentes do poder político, como é o caso do BCE, o debate democrático é afastado. A quem serve essa independência?

sábado, 8 de junho de 2024

Obrigado, Maria da Conceição Tavares


Maria da Conceição de Almeida Tavares foi professora, deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores, economista e matemática, uma das maiores da nossa história. Nascida em Portugal, adotou o Brasil e nosso povo com o seu coração e paixão pelo debate público e pelas causas populares. Foi uma economista que nunca esqueceu a política e a defesa de um desenvolvimento econômico com justiça social. Formou gerações de economistas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalhou no BNDES, em projetos importantes para a industrialização do nosso país e com a CEPAL em defesa do desenvolvimento da América Latina. Escreveu centenas de artigos e muitos livros. Até hoje suas aulas são consultadas pelos jovens em vídeos na internet, pela sua fala sempre franca e direta. Tive o prazer e a honra de conviver e conversar muito com minha amiga ao longo dos anos, debatendo o Brasil e os nossos desafios sociais e econômicos no Instituto Cidadania, em conversas no Rio de Janeiro ou em viagens pelo Brasil. Nesse momento de despedida, meus sentimentos aos familiares, em especial aos filhos, aos muitos amigos, alunos e admiradores de Maria da Conceição Tavares.

Faço nossas as palavras do Presidente Lula, num dia triste, dado que faleceu uma economista imprescindível, das que teve a coragem de ser radical no sentido mais nobre desta palavra, capaz de mergulhar na história para dar a ver a evolução de uma estrutura económica dada, obviamente política e social.  

Este blogue curva-se perante a memória de uma combatente indómita das falaciosas ideologias liberais. Nunca desistiu. O melhor a fazer é continuar a lê-la e a procurar seguir o seu exemplo.

Ordenamento económico da UE: falacioso e irreformável

Entre as várias falácias em que assenta o distópico ordenamento económico da UE duas delas são particularmente relevantes na imposição antidemocrática de políticas económicas que não admitem alternativa à permanente reestruturação neoliberal a que Estados sem soberania são obrigados. 

A primeira delas assenta na ideia segundo a qual a consolidação orçamental, sendo alegadamente virtuosa per se, reduz o endividamento público. Uma ideia serôdia e falaciosa. 


É uma ideia serôdia porque sabemos desde Keynes que incorre no paradoxo da parcimónia. Numa economia monetária de produção, sendo as receitas de uns as despesas de outros, não podem poupar todos simultaneamente e a tentativa de o fazer diminui o rendimento e por isso a poupança. Ao que acresce que, com uma balança de pagamentos equilibrada, superávites públicos significam necessariamente défices privados. 

É uma ideia falaciosa, na qual nem os economistas liberais menos encegueirados acreditam, porque, o que sabemos é que, “em média, as consolidações orçamentais não reduzem os rácios da dívida em relação ao PIB”. 


A segunda ideia falaciosa é aquela que afirma que a taxa de juro é a boa forma de assegurar a estabilidade dos preços argumentando que elevar taxas de juro diminui o investimento privado, o emprego, o rendimento, a procura e, por fim os preços. 

É uma ideia de pobreza falaciosa porque o que não falta por aí são estudos que mostram que a relação entre taxa de juro e investimento privado é complexa e pode ser mediada por vários outros fatores, como, por exemplo, incerteza económica, expectativas das empresas e condições específicas de diferentes setores da economia, taxa de lucro e custos salariais. 

Aqui, por exemplo, os resultados indicam uma associação positiva entre o investimento privado, taxa de lucro e custos salariais, apoiando a teoria clássica do investimento, que contrasta com a visão de uma correlação negativa entre as taxas de juro e o investimento. 

A UE realmente existente está, portanto, amarrada a um ordenamento económico que assenta, não em boa teoria económica, mas num conjunto de danosas crenças neoliberais, ordenamento que cavou um enorme fosso entre o centro e o norte da Europa e impede a sua reversão. 


O problema político de fundo, a meu ver, é que este é um ordenamento objectivamente irreformável. 


sexta-feira, 7 de junho de 2024

Eleições europeias: não abdicar de nenhum espaço político

Estas eleições europeias são particularmente importantes. A arquitetura institucional da União Europeia é opaca e de difícil compreensão, mas é no espaço europeu que se determinam as diretrizes sob as quais os governos nacionais podem trabalhar. Não é sério discutir política nacional, sem se discutir política europeia.

Depois, as relações de forças vão mudar substancialmente neste mandato, deslocando a maioria do centrão (SD do PS, liberais Renew, e PPE do PSD e CDS) para a direita mais extremada (PPE e ECR de Meloni).

Por último, a agenda política está a mudar por arrasto: desvalorização do combate às alterações climáticas e da preservação dos serviços públicos, políticas migratórias mais severas (com vários países a discutir até planos de deportação em massa), e crescente militarização.

Um exemplo do final deste mandato que resume estes três pontos é a aprovação da reforma das regras de governação económica. A sua simplificação para a monotorização de uma única variável - a despesa primária líquida de juros, subsídios de desemprego e co-financiamento de fundos europeus - cria, como já escrevi aqui com o José Gusmão, um enviesamento de austeridade.

O que não tem sido tão discutido no espaço público é o fortalecimento do seu lado punitivo. Cria-se com estas regras um mecanismo de vigilância do comportamento da despesa pública dos países chamado “conta de controlo”. Aqui registam-se todos os desvios em relação à trajetória imposta pela Comissão Europeia. Na proposta original este mecanismo de controlo era relativamente inócuo, visto que não tinha nenhum valor vinculativo. Agora, por pressão do Conselho Europeu (ou melhor, da Alemanha), o intervalo de ação é bem restrito: os governos não podem afastar a sua despesa pública mais do que 0,3 pontos percentuais do PIB cada ano ou 0,6 pp no tempo total do plano nacional (i.e. 4 a 7 anos).

Caso isto aconteça, os países recebem um primeiro aviso da Comissão Europeia para corrigirem as suas opções orçamentais. Este é o primeiro passo do conhecido Procedimento de Défices Excessivos (PDE). O último passo, que até agora nunca foi utilizado, mas que serviu sempre para ameaçar os países a seguir reformas neoliberais, é a aplicação de sanções pecuniárias. O gasto público passa a ser castigado. É preciso deixar isto claro.

Mas ainda há outro aspeto crucial nesta reforma e que parece estar a passar pelos pingos da chuva. Antes de um PDE ser aberto, há um momento de avaliação pela Comissão e o Conselho para perceber se as condições específicas do país justificam (e perdoam) a sua situação de incumprimento. Para isso servem os chamados “fatores pertinentes”, ou seja, fatores que, em última instância, podem levar a que não se abra o PDE (e que não sejam aplicadas sanções).

Dois novos são introduzidos. Primeiro, os progressos nas reformas e investimentos previstos nos planos nacionais. Esta foi a grande carta utilizada pelo PS para convencer que estas regras são promotoras do investimento público. No entanto, a sua lógica sai furada quando as regras institucionalizam o corte cego na despesa e essas reformas e investimentos são apenas as que a Comissão e o Conselho considerarem credíveis. Não existe nenhuma cláusula de proteção expressa para o investimento público.

O outro novo fator é o aumento do investimento público na defesa. Mais nenhum tipo de despesa tem esta exceção incrível. Não têm os esquemas de proteção para a pobreza, não têm os serviços públicos, não tem a habitação ou a ferrovia. Esta é uma escolha muito clara de qual é a grande prioridade a nível europeu: a militarização dos países em detrimento do Estado Social. Este é o início de uma tendência que só se agravará com a presença de forças políticas belicistas no espaço europeu.

O PS, o PSD e o CDS aprovaram e defendem estas regras. O grupo dos socialistas europeus (tirando algumas exceções) não se afastou do consenso com os liberais, direita e extrema-direita. No próximo mandato, precisamos de forças políticas de esquerda, comprometidas com a paz, a proteção dos serviços públicos e a transição energética. Não podemos abdicar de nenhum espaço político.

Pedalada - «Como se faz uma Crise na Habitação?»


«Os preços das casas atingem valores recordes, as rendas não param de aumentar e há despejos todas as semanas. Vivemos uma profunda crise da habitação, mas como chegámos aqui?»

Está já disponível o primeiro episódio do Pedalada, o vodcast do Ladrões de Bicicletas em parceria com a plataforma MyGig. Ana Cordeiro Santos (economista), Ana Drago (socióloga) e Nuno Serra (geógrafo) discutem a atual crise de habitação. Com moderação de Ricardo Cabral Fernandes (jornalista).

quinta-feira, 6 de junho de 2024

BCE é inevitavelmente uma instituição política

A 11 de Abril último, o BCE anunciou as suas últimas decisões de política monetária e, usando da sua estatutária total, anti-democrática, discricionariedade, informou-nos ter decidido manter inalterada a taxa de juro.

No mesmo comunicado onde fomos informados da manutenção desta política errada, foi também reiterado que, “[e]m qualquer caso, o Conselho do BCE continuará a seguir uma abordagem dependente dos dados”.

Na semana passada, o Eurostat informou que, em maio, os preços no consumidor aumentaram 2,6% em relação ao ano anterior, contra 2,4% em abril.

Em sequência, a Bloomberg escreveu que a “inflação na zona euro acelerou mais do que o previsto, o que torna ainda mais nebulosas as perspetivas para as taxas de juro do Banco Central Europeu após o corte previsto para a próxima semana”.

Hoje à tarde teremos novas decisões de política monetária.

Com a inflação a subir, “uma abordagem dependente dos dados”, significaria a manutenção, ou a subida, da taxa de juro.

Uma decisão contrária, descer a taxa de juro, seria o que, de facto, convém à economia, mas, no quadro de atuação do BCE, seria “nebulosa” para, usando o adjetivo dos mercados, dizer o mínimo.


Alguns daqueles que questionam a bondade desta distopia monetária, e não só, questionar-se-iam também acerca da oportunidade desta decisão, a três dias das eleições europeias, e se esta não seria (mais) uma interferência inaceitável no processo político.

"Se fossem coerentes com a sua função de reação, deveriam estar a manter [a taxas de juro] esta semana", afirmou Soeren Radde, economista citado também pela Bloomberg. "O que nos diz que se trata de um compromisso político a que chegaram". 

Entretanto, a meu ver, outro assunto que merece, e carece, de atenção pública é a questão do nível de reservas bancárias obrigatórias e da sua remuneração com recursos públicos.

Veremos se também neste capítulo há decisões.

Assunto incompreensivelmente arredado dos media convencionais e do debate político público lusos já que é variável fundamental para compreender que os atuais lucros da banca privada são os actuais prejuízos dos bancos centrais.

*Actualização: 
Parece que não podiam ter deixado para segunda-feira e não resistiram; a "abordagem dependente dos dados" foi, pelo menos até novas ordens, às malvas. Tudo por razões estritamente técnicas, claro.

Estreia hoje


Na plataforma de conteúdos digitais MyGig, às 18h00, o vodcast Pedalada, do Ladrões de Bicicletas. Neste primeiro programa, questiona-se «Como se faz uma crise da habitação?». Ana Cordeiro Santos (economista) e Nuno Serra (geógrafo), autores do blogue, conversam com Ana Drago (socióloga) sobre a atual crise de habitação. A moderação estará a cargo de Ricardo Cabral Fernandes (jornalista).

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Propaganda de referência


“Recorde algumas conquistas que vieram com a adesão à união, e que nos facilitaram a vida, sem esquecer que há muitas outras que hão-de vir.”

Isto é jornalismo ou propaganda na véspera das eleições para o parlamento europeu, Sónia Sapage e Público? É propaganda, universalizando a situação facilitada dos que viajam frequentemente, uma minoria, e ocultando como os benefícios (e os custos, ai os custos...) desta forma de integração foram tão assimetricamente repartidos.

Vejamos dois exemplos de “conquistas”.

Em primeiro lugar, afiança Sapage que “se há um programa que simboliza a importância da União Europeia para os jovens, esse programa é o Erasmus.” Há 37 países que fazem parte deste programa e a maioria dos jovens não acede ao ensino superior, quanto mais a um programa que requer um certo desafogo material, inacessível, portanto, a tantos jovens que estão no ensino superior, como de resto reconhece quem nele participa no próprio Público.

Em segundo lugar, Sapage vê o euro sobretudo pela ótica estreita da maçada das “casas de câmbio” para deslocações ao estrangeiro. A moeda é uma expressão da soberania e um instrumento de política e o euro, moeda estrangeira para estes efeitos, teve custos significativos em Portugal, da estagnação ao endividamento externo, devido à perda de capacidade produtiva, passando pela dependência em relação a um banco central supranacional, sem controlo democrático.

O resto dos “milagres”, apontados por Sapage, falam por si. E entre as “muitas coisas que hão-de vir” conta-se mais neoliberalismo, agora armado, de pendor federalista. E isto requer propaganda tão social e ideologicamente reveladora.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Pedalada


No âmbito de uma parceria com o MyGiG, plataforma de conteúdos digitais com programação de live streams, o Ladrões de Bicicletas vai passar a ter um vodcast quinzenal. Discutindo temas de economia, política, economia política e política económica, o «Pedalada» dedica os seus primeiros episódios às questões da habitação, transição energética, desigualdades, jornalismo económico, política orçamental e ensino da Economia.

O programa tem estreia marcada para a próxima quinta-feira, 6 de junho, às 18h00, podendo ser acompanhado no youtube do MyGiG. «Como se faz uma crise da habitação?» é o tema do primeiro episódio, contando com a participação dos autores do blogue Ana Cordeiro Santos (economista) e Nuno Serra (geógrafo), que convidam Ana Drago (socióloga) para discutir as diversas vertentes da crise de habitação em que estamos mergulhados, debatendo as suas causas e avançando políticas para a sua superação. A moderação está a cargo de Ricardo Cabral Fernandes (jornalista).