quarta-feira, 23 de maio de 2007

A desigualdade salarial é um problema de todos

No último programa Prós e Contras, em que se criticava o escândalo que representa a evolução relativa das remunerações dos gestores de topo portugueses nos últimos anos, Fátima Campos Ferreira, num aparte, observava que tal situação se passava no sector privado da economia. Quereria a jornalista dizer que a situação não merecia uma tão intensa condenação moral até porque os custos dessas remunerações não são suportados pelo erário público, antes resultam de decisões privadas «voluntárias» menos passíveis de crítica política e de avaliação moral. Esta ideia, que funda a artificial separação entre o domínio dos assuntos do Estado, sujeita a avaliação política e moral, e um suposto domínio privado, apolítico e amoral, das empresas e do mercado merece a nossa contestação. Só através da superação desta dicotomia é possível colocar a discussão no terreno certo, que é o do tipo de valores que devem definir as relações económicas entre os indivíduos e os resultados que eles assim obtêm, no público ou no privado. Até porque o que se passa na economia, em toda ela, afecta o que cada um de nós é capaz de ser e de fazer nas outras esferas da vida social.

Em primeiro lugar, é bem lembrar, é o Estado que em larga medida institui a economia. O que se passa no sector privado é o resultado de decisões políticas, enquadradas por valores, que estabelecem as «regras do jogo» que influenciam quem se apropria do quê e porquê. Ou seja, o facto de os gestores das empresas privadas portuguesas ganharem o que ganham não é independente da maneira como o Estado enquadra a actividade das empresas privadas, de como estrutura os direitos e obrigações que regem o que se passa para lá do portão onde está inscrito «proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço». O mercado e a propriedade privada não são instituições de geração espontânea e a forma como são enquadradas pela comunidade política influencia o que cada um de nós obtém nas suas «actividades privadas». É por isto que entre os países capitalistas temos situações tão variadas em termos de desigualdade salarial. Em segundo lugar, o que se passa nas empresas privadas afecta as capacidades, os recursos e o poder que cada um de nós detém fora do seu horário de trabalho. A concentração excessiva de dinheiro e de propriedade tende a converter-se em concentração de poder político, em capacidade para influenciar e moldar decisões que dizem respeito a toda a comunidade.

As decisões privadas têm diversos impactos públicos e como tal têm que ser sujeitas a escrutínio. As decisões privadas podem gerar o que em jargão económico se designa por «externalidades negativas», ou seja, potenciais consequências negativas sobre terceiros, neste caso a sociedade portuguesa no seu todo. Estão neste campo as decisões que contribuem e muito para o incremento da polarização social.

Como escreveu José Vítor Malheiros, o somatório de decisões privadas erradas reforça um sistema: «que amplia a conflitualidade social, que não promove a competência e a qualidade e que muito menos promove o investimento profissional ou o empenho profissional» (Público). De facto, muita investigação económica e sociológica tem mostrado que níveis de desigualdade elevados, gerados por regras do jogo vistas como injustas, têm impactos muito negativos sobre o desempenho económico dos países. A cooperação, a confiança, a reciprocidade e a motivação pelo trabalho bem feito, ingredientes fundamentais para um bom desempenho económico, tendem a ser corroídos em sociedades demasiado desiguais e injustas.

Estas são algumas das razões por que é relevante a indignação moral sobre a assimetria salarial no sector privado em Portugal. Isto diz respeito a todos e todos temos que alterar as regras do jogo que geram esta situação. E finalmente, não nos esqueçamos que foi Adam Smith que escreveu «A Teoria dos Sentimentos Morais» onde afirmou que: «a disposição para admirar e quase para adorar os ricos e poderosos e para desprezar, ou pelo menos para negligenciar, as pessoas pobres ou de condição humilde ... é ... uma grande e universal causa de corrupção dos nossos sentimentos morais». E sem sentimentos morais a riqueza da nação pode bem estar em causa.

Artigo no jornal Público de 17/05/2007.

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