quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A produtividade do trabalho e os equívocos da direita


A divulgação do relatório da OCDE sobre a economia portuguesa deu azo a várias leituras. Se houve quem tenha apontado as recomendações progressistas (e mais ou menos surpreendentes) da instituição para Portugal, entre as quais o reforço do investimento na Saúde, a melhoria do acesso a prestações sociais e o aumento dos impostos sobre os mais ricos, também houve quem tenha aproveitado para insistir em ideias erradas sobre o desempenho económico do país. Na sua página de Facebook, Camilo Lourenço, impassível defensor das medidas da austeridade durante o período da Troika, partilhou um dos gráficos sobre a produtividade do trabalho e destacou o facto de esta ter tido um ritmo de crescimento superior durante o governo de Passos Coelho. Entretanto, a imagem tem sido difundida nas redes sociais como prova dos méritos da governação de PSD e CDS.

Os argumentos sobre a "produtividade do trabalho" são mais um exemplo do tipo de discurso económico simplista a que a direita nos tem habituado, no qual usa erradamente alguns indicadores para justificar argumentos que estes não refletem. No entanto, o equívoco é facilmente desmontável: a "produtividade do trabalho" é o rácio entre o valor acrescentado gerado numa economia e o número de trabalhadores (ou horas trabalhadas) envolvidos nessa produção. Ou seja, este indicador dá-nos uma ideia do valor de mercado do que é produzido num país face à sua dimensão.

É certo que Portugal tem um problema de baixa produtividade. Mas os motivos não são os que a direita aponta. Na verdade, já foram apontados por diversas vezes neste blog (aqui, aqui ou aqui): são o facto de termos uma economia assente em setores de baixo valor acrescentado (turismo, restauração, imobiliário, etc.), um atraso histórico na qualificação da população, equipamentos e máquinas de qualidade inferior a outros países, gestores com fracas competências, ou custos elevados em setores como a energia. São estes fatores que têm determinado o fraco desempenho do país ao nível da produtividade.

E algum destes fatores se alterou com a Troika? Não. O que explica o "aumento" da produtividade do trabalho nesse período é o facto de ter havido um enorme aumento do desemprego, especialmente em setores intensivos em trabalho e pouco produtivos. Ou seja, foi um mero efeito estatístico com pouca importância. E, apesar disso, a direita escolheu festejá-lo. Seria o equivalente a aplaudir a subida do salário médio durante a pandemia, quando sabemos que este apenas cresceu porque o desemprego afetou sobretudo os trabalhos mal pagos.

À semelhança do que tem feito com a carga fiscal, a direita utiliza indicadores cuja fórmula de cálculo nem sempre é conhecida para justificar ideias erradas sobre o país. Como a desinformação económica só vai aumentar durante a campanha eleitoral, fica o contributo para um debate informado sobre este assunto.

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Ou seja, o maior contributo para a produtividade não está em setores que utilizam muita força de trabalho e sim naqueles que usam força de trabalho qualificada e provavelmente uma boa dose de automação.

Mas isso, Vicente Ferreira, não é boa notícia para os partidários do pleno emprego e da reindustrialização, seja lá o que isso for... Mas o que seja, será provavelmente feita com robots e não com operários de linha, o que é má notícia para as Esquerdas...

Talvez não fosse má ideia discutir mesmo o rendimento mínimo incondicional e a taxação das máquinas (algo em que eu, confesso, mudei de ideias)...

As pessoas que trabalham em setores como o turismo, restauração e imobiliário e que também são sectores que se caracterizam por precariedade e/ou sazonalidade eram capaz de apoiar isso...

Vicente Ferreira disse...

Jaime Santos,

1. Concordo que o crescimento sustentado da produtividade no país depende da aposta em setores mais intensivos em conhecimento e tecnologia, mas discordo da conclusão que retira: se o raciocínio se aplicasse, os países em que estes setores se encontram mais desenvolvidos teriam níveis de desemprego muito superiores ao nosso, o que não é o caso. Mais: de um ponto de vista histórico, o trabalho não acabou em nenhuma das revoluções tecnológicas.

A evolução do emprego depende sobretudo da forma como decidirmos organizar coletivamente os recursos disponíveis e das políticas adotadas em função disso. Ou seja, uma estratégia de desenvolvimento sustentável que inclua a promoção de determinado tipo de atividades (relacionados com a I&D, a eficiência energética, a produção e distribuição de energias renováveis ou os transportes coletivos ambientalmente sustentáveis) através de uma política orçamental expansionista assente no investimento público é compatível com o "pleno emprego" - aliás, o que não faltará é trabalho.

2. Sobre o RBI, parece-me que o erro está não apenas na premissa que lhe dá origem (a da inevitabilidade do desemprego permanente) como na resposta apresentada (a desresponsabilização do Estado no que diz respeito à promoção do emprego). Não surpreende que o RBI seja defendido por correntes neoliberais como parte de uma estratégia de desmantelamento do Estado social e dos serviços públicos de provisão de saúde, educação e proteção social. A resposta da esquerda é a oposta: as políticas públicas de emprego são uma parte integrante da estratégia de desenvolvimento.

http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2019/01/rbi-armadilha-de-uma-promessa-simples.html

TINA's Nemesis disse...

Como eu escrevi num comentário aqui no Ladrões, os bots/ defensores deste sistema económico decadente, ainda mais dependente do Estado desde 2008, vão começar a intensificar a sua defesa do subsídio, o tal rendimento básico universal, à oligarquia capitalista!

É hilariante como um dos bots residentes desvaloriza o pleno emprego e a necessidade da reindustrialização mas com toda a facilidade diz que precisamos de discutir o rendimento garantido…
Já não interessa ao bot onde é que se vai arranjar o dinheiro?
Então as políticas de pleno emprego e reindustrialização (coisa que os tratados europeístas não permitem) metem Portugal na “bancarrota” mas o rendimento básico universal não?
Que bot euro-liberal tão básico e previsível...
Porque é que o bot residente não defende que o Estado garanta habitação por exemplo?
Será porque se o Estado garantir, pelo menos, habitação a preços acessíveis, coisa que a muita gente está negada, rendas deixam de pingar nas contas de alguns?

E o que Camilo Lourenço alguma vez produziu na vida para estar com esta conversa da produtividade? Estes pulhas julgam-se no direito de mandar produzir sem que eles alguma vez tenham produzido alguma coisa que preste!!

Óscar Pereira disse...

Caro Vicente,

O modo como a esquerda analisa a "produtividade do trabalho" é, para mim, muito mais plausível do que os disparates urrados pela direita, sempre que fala deste tema. Mesmo assim, acho que a esquerda engole -- um tanto ingenuamente, a meu ver -- um dos principais engodos da direita: que o trabalho tem sempre valor intrínseco.

Não tem: pelo menos não aquilo que se sói considerar "trabalho produtivo". Esse é feito apenas para produzir os recursos necessários à vida. A existir algum trabalho com valor intrínseco, esse será aquele que se faz fora do que Marx apelidava de "domínio da necessidade", ou seja, aquilo que se faz por lazer. Se me é permitido formular um desejo para este novo ano, seria o de ver a esquerda finalmente desembaraçar-se desse lastro ideológico, e começar a repensar a ideia de "trabalho produtivo". Para ajudar nesse propósito, deixo aqui uma entrevista do já falecido David Graeber, onde entre outras reflexões, se pode ler o seguinte:

So what are we all ultimately working for?

The question we have to ask ourselves is: how to think about economic activity and value in other terms than production and consumption? I suggest a Spinozian theory of caring labor. Caring work is aimed at maintaining or augmenting another person’s freedom. And the paradigmatic form of freedom is self-directed activity: play. Marx says at some point that you only achieve true freedom when you leave the domain of necessity and work becomes its own end. That’s also the common definition of play. Mothers take care of children so that they can play. Maybe we should have that as a paradigm for social value: we take care of each other so that we can be more free, enjoy life, experience freedom and playful activities. And we will have a much more psychologically healthy and ecologically sustainable society.


(Recomenda-se também a resposta que Graeber dá à pergunta "Isn’t there a difference between being “useful” and being “productive”?")

Finalmente, uma das consequências do modo (a meu ver errado) como a esquerda encara a natureza do trabalho, é que também dá um tiro no pé quando se fala sobre rendimento básico incondicional. Graeber explica isto de um modo com que me identifico a 100%: (ênfase a negrito minha)

There are two different versions of the basic income: the right-wing version, where you give people money instead of universal health care and free education, and a liberal version, where you give people a supplement. I’m not for any of them. When I’m talking about a basic income, I don’t mean a supplement, but an income which is enough to live on. I am for divorcing livelihood and work entirely. If you’re alive, you deserve a livelihood. And it’s up to you to decide what you have to attribute to society. With this form of basic income, you might have the problem of how to get people to clean sewers: you’ll have to pay them a lot. But nobody will take a bullshit job anymore. Because people want to feel useful!

Aqui fica o link: https://medium.com/philonomist/david-graeber-on-capitalisms-best-kept-secret-704f13914a88

Votos de um Bom Ano Novo a todos!