sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

The lira

Não espero que o esquerda.net seja uma referência de economia internacional, mas espero que um imprescindível sítio de referência político destes não tenha uma espécie de tradução mal feita – “o racional económico” é tão problemático quanto irritante – de um editorial do Wall Street Journal sobre a economia turca. 

Se se quer escrever sobre a lira turca, sobre a enéssima crise cambial, sobretudo desde que, em 1989, a Turquia decidiu liberalizar totalmente a conta de capital, então talvez se tenha de falar da possibilidade de instituir controlos de capitais, prática bem útil para poder superar ou evitar crises destas, da Islândia à China. Veremos o que vai fazer o Governo turco, mas já se fala nisso. Lembro-me sempre da corajosa e bem-sucedida Malásia em 1998.

Na realidade, há muito que sabemos, da teoria e da experiência histórica, que se se quer ter verdadeiro domínio sobre as taxas de juro, para as baixar e manter baixas, bom princípio anti-rentista e desenvolvimentista, então os mecanismos de controlo da entrada e da saída de capitais são, salvo as excepções conhecidas do topo da hierarquia, obrigatórios, evitando-se mais facilmente desvalorizações descontroladas. A taxa de câmbio tem de ser parte do arsenal de política. 

É um dos lados do velho trilema: política monetária autónoma, controlo de capitais e relativa estabilidade cambial, ou seja, controlo sobre a taxa de câmbio, lado onde quase todos os países estavam nas ditas três gloriosas décadas. Na realidade, hoje em dias temos mais um dilema, em face das grandes massas de capital que circulam pior aí, como argumenta a prestigiada e relativamente convencional Helena Rey: “políticas monetárias independentes [no sentido de soberanas] são possíveis se, e só se, a conta de capital for gerida.”

Também sabemos qual é a maldita montanha russa semiperiférica habitual no contexto de liberalização financeira: entradas de capital, sobreapreciação cambial, défices de balança corrente, endividamento em moeda estrangeira e, mais tarde ou mais cedo, fugas súbitas de capital e crises cambiais que são uma profecia autorrealizada. Este padrão nada tem de natural. 

E quem associa a sempre necessária descida das taxas de juro a subidas da taxa de inflação e a outros efeitos perversos alinha com o artificio proto-monetarista. A inflação, de que agora se fala e sobre a qual teremos mais a dizer, não é um fenómeno monetário, mas sim o resultado de realidades bem estruturais, a que se junta a contraditória conjuntura pandémica. 

A subida da taxa de juro de referência, ao serviço dos credores, é mesmo um duvidoso instrumento de combate à inflação considerada excessiva e que costuma operar por canais contrários a tudo o que defendemos: da recessão ao aumento do desemprego como mecanismo disciplinar, no fundo. Imaginem só o desastre que seria para nós, altamente endividados numa moeda que não controlamos, se o BCE alinhasse com alguns dos mecanismos apresentados no artigo. Tenho muito medo que acabe por alinhar. Cuidado com os mecanismos. E, sim, quando falamos de internacional não deixamos de pensar na realidade nacional.

Não tenho qualquer simpatia política por Erdogan, antes pelo contrário, como não tenho por especuladores, ali designados por investidores. Isso não me impede de registar que a sua incompleta e difícil de decifrar "política pouco ortodoxa", ao contrário do que se afiança no artigo, de resto sem qualquer número, não deve impedir a economia turca de crescer mais do que a média mundial em 2021, prevendo-se mais de 8% este ano em termos reais, também à boleia do aumento das exportações e da diminuição das importações, ou seja da procura externa, e sobretudo do consumo interno. A inflação de dois dígitos, a crise cambial e a nova vaga, num país com um bom nível de vacinação, podem exigir medidas mais robustas de controlo, esperando que Erdogan não ceda no preço fundamental numa economia monetária de produção. E confesso que gosto sempre de ver o poder político, independentemente da sua orientação, a subordinar o banco central às suas prioridades.

Francamente, não imagino o que se pretende alcançar com um artigo destes. 

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