Há dois aspectos centrais que tendem a escapar a quem assim pensa. Um é facilmente compreendido através da teoria económica convencional. Outro exige uma visão de economia política.
A ideia de que a concorrência leva sempre a um aumento da eficiência parte do pressuposto de que há uma simetria entre quem oferece os serviços de saúde e quem os utiliza. Mas basta pensar no número de anos que é preciso estudar para ser médico para perceber que aquele pressuposto não é válido na área da saúde. As pessoas comuns conseguem perceber se é fácil e rápido ter consultas, se a comunicação com os utentes é transparente e eficaz, se os serviços administrativos dos hospitais estão bem organizados ou se os quartos de enfermaria são cómodos. Mas poucos terão condições para perceber em que medida as decisões de gestão guiadas pelo lucro (é isso que os hospitais privados fazem) põem em causa a qualidade dos cuidados médicos. Em jargão económico, a assimetria de informação sobre o que mais interessa é geral neste sector. Quase ninguém pode ser aqui um "cliente" consciente e informado.
A resposta a estas objecções passa quase sempre pela ideia de que o problema se resolve com uma boa regulação do sector da saúde. É aqui que entra a economia política, em particular a análise das relações de poder. Quando o Estado alarga as oportunidades de lucro ao sector privado de saúde estimula, na prática, a emergência ou o reforço de grupos com grande poder económico (estamos a falar de um dos negócios mais lucrativos do mundo, com uma forte presença de agentes financeiros - as seguradoras; é ouvir a presidente do grupo Luz Saúde, no vídeo abaixo). A experiência internacional mostra que o aumento do poder financeiro destes agentes se traduz num maior poder de influência sobre os decisores políticos e sobre as entidades reguladoras. A tendência é para que as leis e as práticas de regulação sejam cada vez mais favoráveis aos grupos privados de saúde, penalizando o Estado e o acesso universal a cuidados de qualidade. O resultado é quase sempre menos saúde (para os mais pobres, em especial) e mais cara.
Esta história é bem conhecida nos EUA, mas verifica-se também em países como a Suécia (ouçam, por exemplo, aqui). Se isto acontece em países com tradições democráticas sólidas e Estados capacitados, imaginem o resultado da privatização da saúde em Portugal (não é uma hipótese, é o que está em curso há alguns anos).
A esquerda e até boa parte do centro esquerda de países com economias e democracias mais avançadas que a nossa já perceberam o erro e estão a tentar corrigi-lo. Em Portugal tecem-se loas ao SNS, mas quando chega o momento as decisões difíceis ficam por tomar.
Esta é talvez a área mais decisiva para o modelo de desenvolvimento da nossa sociedade. Era bom que os eleitores de esquerda lhe dessem a devida atenção.
4 comentários:
Há essencialmente dois tipos de liberais, os que abertamente querem acabar com os serviços sociais do Estado, pôr o Estado a financiar (ainda mais) os privados, reduzir os trabalhadores a escravos, são os que frequentemente aparecem na comunicação social a dizer “Temos muitas pessoas que não querem trabalhar e o sistema permite isso” ou “criar fluxos de importação de mão-de-obra”, exemplos são o Pedro Ferraz da Costa, António Saraiva, Raul Martins, etc.
Depois há a estirpe de liberais de “esquerda”.
Estes liberais de “esquerda” são os que dizem coisas como “Os impostos que os ricos não pagam e o que podíamos fazer com eles” tradução: “O Estado coitadinho e tão fraquinho só pode ser social com o dinheiro dos ricos.”.
O que estes liberais de “esquerda” não querem é que a população entenda que o Estado tem mais poder para criar bem-estar generalizado do que eles gostam de admitir, porque admitir isto é admitir que a UE/ Euro e a ideologia que sustenta a integração europeísta minou (de propósito) o desenvolvimento dos países, as gerações que não tiveram responsabilidade pela integração e o bem-estar generalizado.
Exemplos de liberais de “esquerda” são o Rui Tavares, Susana Peralta, etc.
Pelo menos no caso de Ferraz da Costa e António Saraiva nós sabemos o que pretendem.
No caso de Rui Tavares e Susana Peralta é mais insidioso porque esta gente que se cobre com um manto social verdadeiramente não quer resolver os problemas da sociedade.
«poucos terão condições para perceber em que medida as decisões de gestão guiadas pelo lucro (é isso que os hospitais privados fazem) põem em causa a qualidade» nos sectores dos cuidados de saúde, da construção, do sector automóvel, do ramo alimentar…; em todo o lado todos acabam por saber onde esperar bons e maus serviços – é o mercado, onde sempre a gestão guiada pelo lucro tem que saber se nele quer perdurar e crescer ou dar o golpe e desaparecer.
E quando «passa quase sempre pela ideia de que o problema se resolve com uma boa regulação do sector» é sinal de que se está numa sociedade doente, em que os profissionais podem ser impunemente irresponsáveis e que domina o oportunismo e a bandalheira.
Estranho é pensar-se que exista um SNS que não saiba calcular e fixar preços de cuidados médicos.
Mas a questão sempre ocultada é que o enquadramento na função pública nunca vai fidelizar um bom número de profissionais de saúde, por ser um sector em que a especialização e o desenvolvimento científico reputacional dos seus profissionais não conhece limites conformáveis às regras da administração pública, pelo que,
Poucos não suspeitarão que a maioria dos melhores profissionais sempre estarão ou terão alguma actividade no sector privado.
Prevenir que tal aconteça é proibir a actividade privada e, pressupondo fronteiras abertas, não é o desenvolvimento do SNS que o impede.
Uma pergunta simples: deve um médico poder exercer no seu consultório privado, ou devem todos os médicos apenas poder exercer no SNS?
As conseqüências da privatização dos Serviços de Saúde, com a entrega às Companhias de Seguros dos recursos financeiros do Estado,ou seja, comprometendo uma fatia considerável dos recursos públicos do Estado para o financiamento de empresas e agentes privados na saúde,estão à vista de todos, quer neste texto que RPM assina, quer no caos que o levou a que o Affordable Care Act, fosse um imperativo para duas administrações democratas nos Estados Unidos.
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