quinta-feira, 3 de maio de 2012

Uma crise que interpela as esquerdas


Os resultados da primeira volta das eleições presidenciais francesas mostram que uma parte importante das classes mais desfavorecidas se reviu no discurso de Marine Le Pen. Além das bandeiras tradicionais, Marine Le Pen apontou a globalização, o euro e o capitalismo financeiro como causas do desemprego, do esmagamento dos salários, da precarização do trabalho e das desigualdades sociais. Numa entrevista, terá dito: “Cada vez que uma actividade é transferida do sector público para o sector privado, o resultado é pior no que toca à equidade e os preços disparam. Por isso defendo que os transportes, a educação, a saúde, os bancos e o apoio aos idosos são uma responsabilidade do sector público.”

Na questão social, Marine Le Pen ultrapassou o PS francês pela esquerda, o que não espanta. De facto, desde que o projecto europeu foi capturado pela ideologia neoliberal, designadamente com o Tratado de Maastricht, a social-democracia europeia, de mãos dadas com a democracia cristã, aplicou os princípios da livre circulação de mercadorias à relação da Europa com o resto do mundo. Consequentemente, a desindustrialização avançou no continente europeu e lançou irreversivelmente no desemprego milhões de trabalhadores. Para os sociais-democratas, este era o preço que os europeus deviam pagar por uma mudança estrutural inevitável. Em vez de uma abertura negociada, gerida no tempo por uma estratégia de desenvolvimento, cada país da UE foi confrontado com uma abertura big bang que, em muitos territórios industriais, destruiu o que nenhum subsídio de desemprego vitalício pode dar, a dignidade e o estatuto social do trabalhador. A social-democracia trocou a bandeira da justiça social pela da modernização.

De mãos dadas com a democracia cristã, os sociais-democratas aplicaram também os princípios da livre circulação de capitais à relação da Europa com o resto do mundo. Permitiram que os bancos comerciais voltassem à especulação financeira, aceitaram os paraísos fiscais, instituíram bancos centrais sem preocupação com o crescimento e abdicaram da política orçamental activa e do financiamento pelo banco central. Até hoje sem autocrítica, no governo ou nos conselhos de administração, foram co-responsáveis pela acumulação dos desequilíbrios macroeconómicos, pela criação de bolhas imobiliárias e por um clima de criminalidade financeira que, no seu conjunto, levaram à crise iniciada em 2008. O pensamento monetarista e o dos novos clássicos foram assimilados.

Em cerca de duas décadas, o neoliberalismo colonizou a social-democracia europeia a ponto de hoje nenhum dos partidos que dela se reclamam pôr em causa o dogma do equilíbrio das contas públicas. François Hollande, em França, ou o SPD na Alemanha, consideram a austeridade indispensável e até compatível com uma política de promoção do crescimento limitada a meia dúzia de megaprojectos financiados pelo BEI e executados pelas empresas do costume. Pior, nenhum destes partidos percebeu que a crise da zona euro se vai manter enquanto a procura interna não for relançada, tal não sendo possível enquanto prevalecerem os dogmas do ordoliberalismo germânico e do euroliberalismo. Entretanto, milhões de europeus continuarão a ser lançados na pobreza e serão captados pelo discurso populista e fascizante. Outros tantos não sairão de casa para ir votar.

Por isso a crise que vivemos é também a crise das esquerdas que não põem em causa a globalização e sonham com mudanças coordenadas, aceites por todos, à escala da UE. Falta-nos uma esquerda que seja porta-voz dos “de baixo”, uma esquerda que não tenha complexos de pedir o voto dos concidadãos para, no governo, transformar as estruturas centrais desta sociedade capitalista segundo princípios de justiça social.

(O meu artigo no jornal i de hoje)

3 comentários:

João Carlos Graça disse...

Caro Jorge
Bom post. A verdade é que, sem questionar os fundamentos daquilo a que pomposamente se chama a "construção europeia", a esquerda, ou o que sobre dela, não vai a lado absolutamente nenhum.
Nós vivemos problemas resultantes da nossa pertença à Eurolândia a um nível muito maior do que os franceses, entendamo-nos. O nosso caso é muitíssimo mais grave que o deles. Mas, mesmo assim, o caso Mélenchon e a FdG com os seus 11 por cento indicam uma esperança que por aqui não se vislumbra.
Eu, se fosse francês, no primeiro turno teria evidentemente votado nele. Todavia, não concordo absolutamente nada com a ideia duma desistência "incondicional" a favor do Hollande. Aquele que, no meio de tubarões, pretende proceder "incondicionalmente", pode evidentemente considerar-se uma "alma bela". Mas é, de facto, um mero sucker.
Quanto à FN, a verdade é que ela se tem apropriado de várias das ideias "classicamente" de esquerda, desde a primazia da propriedade pública até ao pacifismo e tendencial neutralismo (ou pelo menos aversão às "intervenções humanitárias" e à "R2P") em política internacional.
Sinceramente, quer quanto ao primeiro desses aspectos quer quanto ao segundo, a atitude correcta a tomar, face a Sarkollande e a Hollozy, é a de encolher os ombros e desviar o olhar (de nojo...).
Quanto a este assunto, ver o estupendo artigo da bravíssima Diana Johnstone, aqui: http://www.counterpunch.org/2012/04/24/disillusion-with-the-euro-and-europe/
e também este outro, interessante, de Philippe Marlière, aqui: http://www.counterpunch.org/2012/05/01/francoise-hollande-frances-tony-blair/

Maquiavel disse...

JCG, concordo quase plenamente consigo.
O "quase" é que de entre Hollande e Sarko näo poderia deixar de votar em Hollande, já que virar a cara com nojo abriria o caminho a mais Sarko, e desse já nos vacinámos. Espero que amanhä muita gente faça o mesmo.
A pressäo sobre Hollande por parte da Esquerda näo se esvai por isso, as eleiçöes parlamentares säo já em Junho, e aí o PdG terá a poprtunidade de brilhar e influenciar positivamente a governaçäo de Hollande para que realmente a Europa vire à Esquerda, tal como iniciado pela Eslováquia.
Haja esperança!

José Gonçalves Cravinho disse...

Eu,um simples operário emigrante na Holanda desde 1964 e já velhote (88anos)direi que o Mussolini e o Hitler também usavam linguagem de esquerda e até o nome Socialismo para impingir a vigarice tal como a senhora Pen.Até os descamisados descamisados votam nêstes inimigos do Proletariado e não enxergam que
êstes Partidos Fascistas são
a espinha dorsal das Ditaduras Capitalistas.No meu fraco entender,o Socialismo de Hollande é semelhante ao do PS português e como tal,a Direita em France continuará detentora das alavancas do poder Económico e como tal do Poder Político.Para rematar,direi
Com populismo e demagogia,
muita mentira,verdade parece,
mas em liberdade e democracia,
cada Povo tem o Governo que merece.