«Quando nos anos 90 do século passado o movimento estudantil avisava que se estavam a abrir as portas à desigualdade no acesso e frequência do ensino superior público, chamaram-nos fantasistas; quando avisámos que a introdução de propinas traria consigo a elitização do ensino superior, chamaram-nos catastrofistas; quando dizíamos que a justiça se fazia nos impostos e não com a introdução de novas taxas, disseram-nos que não sabíamos do que falávamos.
Vinte anos depois temos um ensino superior público destinado a quem consegue pagá-lo. Quem tanto enche a boca com o discurso meritocrático, devia abri-la agora: o ensino superior público não é para os melhores mas para aqueles que conseguem pagá-lo. A desigualdade está aí, servida com brutalidade.
Há vinte anos dizíamos que uma lei injusta não podia ser lei. Porque perdemos a batalha, porque a solidariedade nos foi recusada, o resultado é hoje este: 30 mil estudantes perderam a bolsa, 10 mil abandonaram o ensino superior e o futuro de milhares de estudantes e do país está em suspenso.»
Andreia Peniche (Arrastão)
Tal como a introdução de taxas moderadoras na saúde, que surgiram envoltas no argumento de que apenas pretendiam combater as falsas urgências e os abusos na activação de serviços hospitalares, também a introdução de propinas foi inicialmente apresentada como tendo apenas em vista reforçar o financiamento da acção social e da promoção da qualidade no ensino superior. Contudo, é hoje cristalino que estas mudanças foram apenas o primeiro passo, mas decisivo, para levar a cabo um plano de progressiva desdemocratização, contracção e mercadorização dos serviços públicos de educação e saúde.
Tantas vezes apostada na defesa intransigente de posicionamentos irrepreensíveis no plano dos princípios e na formulação das propostas ideais, talvez a esquerda devesse prestar mais atenção à eficácia dos métodos de transformação gradualista em política. Ao contrário de um conhecido ditado, permitir que uma aparente «derrota em derrota» pudesse mais eficazmente conduzir «à vitória final».
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6 comentários:
Há quem diga que, em matéria de direitos sociais, voltámos ao assistencialismo aos "pobrezinhos (houve até quem receasse que fosse lançado um "cartão de pobrezinho", mas não foi essa a estratégia. É muito mais perversa...) O pior é que nem já isso é verdade.Comecemos pelo método de identificação do "pobrezinho": começa por ser terrivelmente complexo. Uma pessoa pode ser "pobrezinha" para efeitos de taxas moderadoras, mas já não o ser para pagar cuidados continuados, tanto seus como de familiares. O "pobrezinho" para efeitos de desconto na eletricidade ou da água pode já não o ser para o passe dos transportes.E podiamos continuar por aí adiante. Os candidatos a "pobrezinhos" têm de passar longas horas em guichets reais ou virtuais para provar que o são.Para que um cidadão seja reconhecido como "pobrezinho" só contam os rendimentos. As despesas não contam. O António a Maria têm 650 euros de rendimento mensal médio e dois filhos a estudar na universidade. Não são "pobrezinhos".Não têm direito a habitação social nem a descontos. Pagam no hospital e na universidade.Se algum deles adoecer recebe apenas 55% do ordenado. Mas o que conta foi o que ganhou em 2010...Num próximo "post" prometo relatar um caso concreto e real que demonstra o absurdo da forma de cálculo de certas taxas na saúde.
Nuno Serra escreve, sem que eu tenha percebido verdadeiramente onde quer chegar :
«Tantas vezes apostada na defesa intransigente de posicionamentos irrepreensíveis no plano dos princípios e na formulação das propostas ideais, talvez a esquerda devesse prestar mais atenção à eficácia dos métodos de transformação gradualista em política.»
Por mim, o que quero lembrar é que a esquerda digna desse nome denunciou logo na hora o verdadeiro objectivo e designio futuro das propinas e da taxas moderadoras.
Caro Vítor Dias,
Um ponto prévio: o post não pretende questionar a oposição que a esquerda fez, desde o início, a este tipo de medidas, alertando atempadamente para o facto de as mesmas serem apenas o início de um processo de transformação dos sistemas públicos de educação e saúde.
Partindo da constatação, que me parece evidente, do êxito com que a direita conseguiu levar a cabo os seus propósitos mais inconfessados (pelo menos inicialmente), procuro chamar à atenção para o gradualismo como estratégia política eficaz de transformação da realidade, numa perspectiva (obviamente) de esquerda.
Tenho em mente o exemplo muito concreto das propinas. Depois de se ter tornado impossível (apesar de toda a contestação e oposição) evitar a sua implementação, pergunto-me se não teria sido a dado momento mais combativo fixar por exemplo um tecto máximo limitado do peso que estas deveriam assumir nos orçamentos das instituições de ensino superior, em lugar de manter intransigentemente a posição da sua recusa liminar (posição que, com o tempo, foi tendo cada vez menos adesão na opinião pública, mesmo que pelas piores razões).
Não se trata, com este post, de assumir nesta matéria uma opinião definitiva.
Reconheço as implicações complexas e sobretudo delicadas que a defesa de uma estratégia de «transformação gradualista» coloca. Mas creio que perante as derrotas sucessivas que fomos acumulando (e o reconhecimento do modo como esta estratégia tem sido frutífera à direita), nos devem levar a reflectir sobre formas mais interessantes, consequentes e promissoras de efectuar o combate político à esquerda.
E sem perder de vista, naturalmente, a prossecução do objectivo último que nos deve nortear (no caso em concreto, a inexistência de propinas no esino superior).
Ora aqui vai o caso. Que, faço notar, é real! A, trabalhador vive com B, reformada.Ganha o ordenado mínimo e B uma pensão de 400 euros. Na sequência de uma doença grave A precisa de cuidados continuados. Quanto vai ter de desembolsar? Mais de 10 euros por dia!Numas contas por alto, se contasse apenas o seu rendimento pagava cerca de 6. Quer isto dizer que B terá de retirar da sua pensão 120 euros para assegurar os cuidados de A. Mas há um problema: por haver "perigo de fraudes" o subsídio de doença de A foi reduzido pelo Dr. Pedro "Lambreta" Soares para 55 % do seu ordenado. Ou seja uns...10 euros por dia! Mas isso é irrelevante! Se A tiver cuidados continuados já não precisa de mais nada...E agora coloquemos mais uma hipótese: e se B também, entretanto, vier a necessitar dos mesmos cuidados? Nessa altura vão somar os rendimentos de A e...Conclusão: Kafka está vivo, é militante do CDS e trabalha no gabinete do ministro...
Eu alinho pelo que diz o Nuno Serra. A esquerda não deveria ter medo de denunciar as situações absurdas geradas por medidas iniquas disfarçadas de "justiça social", apresentando propostas no sentido de as expurgar dos seus aspectos mais gravosos, sem ter medo de ser acusada de as estar a aceitar tacitamente. Seria até uma forma de desmascarar as pretensas "preocupações sociais" da maioria que nos governa porque, na sua esmagadora maioria, seriam certamente rejeitadas.
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