«No caso do financiamento das universidades, a alternativa aparentemente mais interessante passará pela conjugação de dois princípios: a cobrança de propinas no valor dos custos reais da formação; e o diferimento do pagamento dessas propinas para depois da inserção do ex-estudante no mercado de trabalho». Rui Pena Pires, sociólogo do ISCTE. Pergunto-me se é a mesma pessoa que escreveu isto: «Sendo Portugal, de há muito, o mais desigual dos países da UE, importa clarificar o efeito das escolhas políticas locais sobre este legado. Em particular, deveria ser sempre incluída, na avaliação das políticas públicas, o seu efeito sobre os níveis e padrões da desigualdade na sociedade portuguesa». Num país com assinaláveis défices de formação superior e onde as origens de classe muito influenciam o percurso escolar dos indivíduos, é difícil pensar numa medida com efeitos mais perniciosos para a promoção da democratização do acesso ao ensino superior, peça essencial no combate às desigualdades. As propinas, mesmo que diferidas, não deixarão de ser o que sempre foram: um poderoso mecanismo de exclusão para os indivíduos sem «colateral» familiar.
O pretexto para estas engenharias é, para não variar, o défice. Que parece autorizar todas as derivas mercantis do «socialismo moderno». Na realidade, acho que esta proposta é apenas mais um dos produtos da ideologia que preside às transformações em curso no ensino superior. Transformações inspiradas no modelo anglo-saxónico de capitalismo. O tal modelo que é marcado por abissais desigualdades. Rui Pena Pires ainda tenta dar uma pincelada progressista à proposta com uma comparação com o sistema de reformas (ainda que invertido) e com uma referência vaga à «solidariedade entre gerações de trabalhadores». Acho que a comparação com o sistema de reformas por capitalização faz mais sentido. Trata-se da mesma aposta na atomização social através da fragmentação dos percursos, mediada pelos mercados financeiros (com maior ou menor suporte público) e da mesma erosão dos mecanismos de solidariedade entre gerações e entre grupos sociais. O «efeito de enquadramento» é claro: se eu só recebo o que eu pago (ainda que possa pagar a prestações) então eu só estou disposto a pagar por aquilo que eu recebo. É a instituição da ficção do egoísmo racional que, entre outras coisas, reduz o ensino superior a um investimento privado em «capital humano» com retorno mercantil para o individuo. É nisto que consiste a «actualização» da social-democracia?
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2 comentários:
Já tinha ouvido falar deste despique e não o acompanhei e agora vejo apenas esta parte e queria acrescentar algo, que se calhar é intermédio: A ideia de por um preço a tudo o que está em cima da terra é uma ideia absurda, não é uma ideia de direita nem liberal. é simplesmente um absurdo. aliás como muitos se lembram há uma teoria que diz que as empresas são criadas para fugir ao mercado: assim a secçao dos parafusos pode dá-los à das porcas sem que haja um preço. A ideia de que os problemas das nossas universidades se resolvem com propinas é uma ideia absurda. nao quer dizer que eleas nao seja necessarias mas nao sao a soluçao milagrosa. Agora, para contrariar isso nao e preciso chamar nomes ao modelo anglo-saxonico que e simplesmente o melhor do mundo ocidental.
As citações extraídas de Rui Pena Pires acho que ressalvam um ponto importante, a diferença entre um discurso circular, vazio e um discurso concreto, analítico. Aquilo que eu tenho depreendido do discurso de muitos elementos associados ao PS é que, quando o discurso é de carácter geral convenço-me que estou na presença de socialistas de vanguarda, quando entramos no discurso de políticas concretas descubro que estamos perante uma concepção neoliberal de políticas públicas.
Assim se compreende que a segunda citação seja bastante mais generalista que a primeira.
Efectivamente está aqui patente uma visão mercantilista de ensino, o ensino é uma empresa que tem de ser auto-suficiente e competitiva. Logicamente faz tábua rasa do facto de o ensino superior público (é desse que falo) estar inserido na estrutura de serviços públicos pelas quais o Estado deveria responder. Os impostos, a taxação em geral tem de ser direccionada prioritariamente para serviços públicos que, há semelhança do SNS, devem ser de acesso livre, universal e gratuito. Se a taxação não cobre as despesas e os contribuintes tem de ver os seus filhos ou os próprios pagar por serviços que já deveriam estar cobertos por via indirecta dos impostos, então não há meio de esconder...estamos perante um falhanço nas políticas públicas, e os governos devem/têm de ser responsabilizados.
Repare-se que a actuação nos diversos domínios da esfera pública têm pautado por ser uma actuação que visa diminuir a despesa do Estado, passando sempre ao lado das verdadeiras reformas dos diversos sectores. Ao invés de propor medidas para combater o insucesso, procurar um aumento dos números de acesso e conclusão do ensino superior, estas medidas apenas respondem à necessidade de desinvestir para conseguir o famigerado défice (mais pretexto do que fim).
À esquerda tem se defendido políticas contra-cíclicas, ou seja investimento deve ser maior em tempos de crise e o rigor orçamental deve ser preconizado passado essa crise. Mas o problema não reside só nos tempos de actuação, assenta também nos mecanismos que desvirtuam a coesão social, os impostos têm sido arrecadados dos sectores da classe média e baixos.
Esta ideia é uma espécie de avanço catastrófico no princípio do utilizador-pagador, porque esse princípio encerra uma lógica bastante aceitável no mercado de "bens e serviços não fundamentais", já não o é no mercado de "serviços e bens fundamentais", cabe ao Estado rumar no sentido oposto e fornecer pelo menos os instrumentos para que a sociedade se possa tornar coesa.
Eu defendo que um modelo neoliberal é anti-democrático, e por uma razão simples, a democracia serve para eleger gestores do bem público, indivíduos que assumem o compromisso de propor soluções, de criar legislação para regulação da vida pública, ora se a política neoliberal reside no enfraquecimento e demissão das funções/provisões do Estado...é porque é anti-democrática.
Ninguém contesta que um gestor privado seja despedido por não defender os interesses da empresa, (muitas vezes indo esses interesses para além do razoável) então porque devemos aceitar com naturalidade órgãos eleitos cujas políticas são uma manifesta demissão das suas responsabilidades.
Elegemos indivíduos que diariamente se demitem das suas funções, e para não estar eu a cair num discurso circular registe-se exemplos de políticas demissionárias.
-> O encerramento de urgências por estas não reunirem condições. (de quem é a responsabilidade de estas não reunirem condições?)
-> Um modelo de ensino superior público financeiramente auto-suficiente (leia-se com desinvestimento brutal por parte do Estado).
-> O aumento da taxação social em 3% para os recibos verdes, ao invés de diminuir os limites na contratação temporária e acabar, por via legislativa, com os "falsos recibos verdes"...(repare-se que para acabar com os falsos recibos verdes basta que os contratados declarem o seu verdadeiro estatuto ,trabalhador por conta própria ou não, e para evitar coacções o governo poderia criar um registo público prévio à contratação desse estatuto)
-> A abertura a um sistema de capitalização de reformas, com a premissa da insustentabilidade do sistema público de reformas, é mais uma resposta demissionária do Estado.
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