quarta-feira, 7 de maio de 2008
Ainda a globalização no divã
Vale mesmo a pena ler este editorial, da autoria de Luísa Bessa no Jornal de Negócios, sobre a economia política da globalização e o aumento das desigualdades. Em Portugal, o debate começa a avançar. Alguns comentários, prosseguindo a discussão da última posta sobre globalização: (1) é verdade que quase todo o progresso em matéria de redução da pobreza absoluta tem ocorrido na China e na Índia: «Uma mais-valia para toda a humanidade, que aparece agora inesperadamente em risco pela subida dos preços dos alimentos»; (2) é curto falar em «abertura dos mercados» para descrever os ingredientes das trajectórias destas duas economias já que as «receitas» aplicadas estiveram muito longe da vulgata neoliberal (basta ver de quem é que ainda são as empresas chinesas que hoje adquirem activos de empresas norte-americanas ou prestar atenção aos controlos de capitais que estes dois países mantiveram); (3) é um facto que temos vindo a assistir a uma crescente discrepância entre a sorte das grandes empresas dos países avançados e as condições de segmentos cada vez mais vastos das classes trabalhadoras. Regressa assim o problema do brutal aumento das desigualdades e volta-se a colocar a questão da corrosão da legitimidade política do capitalismo ou pelo menos de algumas das suas configurações nacionais (o processo de aumento das desigualdades sendo geral não tem a mesma intensidade em todo o lado). Na ausência de reformas redistributivas («uma panela de pressão cuja válvula deixa de funcionar»), cada vez mais difíceis num contexto em que a livre circulação de capitais reergue o famoso ‘muro do dinheiro’, as «medidas proteccionistas» farão necessariamente parte da agenda. Os EUA têm uma forte tradição nesta área. Outros muros. Que às vezes podem bem ser necessários.
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3 comentários:
Não é claro para mim se o autor do post partilha da afirmação entre aspas aqui
**é verdade que quase todo o progresso em matéria de redução da pobreza absoluta tem ocorrido na China e na Índia: «Uma mais-valia para toda a humanidade, (...)»**
Acho estremamente perigoso comungar do ponto de vista, ou reproduzi-lo acriticamente, de que uma subida formal do rendimento monetário disponível equivale implicitamente a uma melhoria da qualidade de vida. Não faltam sinais quer na India quer na China de que o seu crescimento económico poderá até ter piorado a qualidade de vida média das suas populações. Por exemplo, na China a maior parte da população continua a ser rural, e tem sido prejudicada pelo "desenvolvimento chinês" directamente por exemplo através da forte degradação ambiental que a China está a sofrer e que só vai piorar a curto e médio prazo, e indirectamente através do fim dos apoios estatais no campo da saúde e educação.
Argumentar que deve haver crescimento económico, ou aumento de disponiblidade financeira e de consumo, porque sim, é fazer o jogo da Direita que sabe que tal beneficia sempre as "classes altas". Mas nem sempre beneficia a esmagadora maioria da população. A esquerda não deve defender o crescimento económico. Não é esse o seu objectivo, nem tem interesse nas suas consequências mais prováveis (como o aumento da desigualdade). O que a Esquerda deve sempre defender é o desenvolvimento social, e nesse contexto, analisar que tipo de medidas de cariz sócio-económico são mais adequadas. Até pode passar pelo incentivo a uma efectiva regressão ou estagação da capacidade consumidora da sociedade, ver por exemplo
en.wikipedia.org/wiki/Zero_growth
en.wikipedia.org/wiki/Growth_Fetish
Caro Pedro Viana,
A redução da pobreza absoluta na China, na Índia ou no Vietname (caso menos falado mas mais impressionante em termos da melhoria dos indicadores sociais) é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia. Isto não vai contra as suas importantes considerações. O crescimento é um ingrediente necessário, mas não suficiente do desenvolvimento. Sobretudo quando o ponto de partida é tão baixo. Isto também não influencia a apreciação negativa dos regimes políticos chinês ou vietnamita.
O crescimento económico com redistribuição, sobretudo em países pobres, é um objectivo de esquerda. Não é porque sim, é porque as pessoas têm que comer, vestir, poder ter acesso a uma casa decente, ir à escola, ter acesso a serviços de saúde. As condições materiais para uma existência humana.
É evidente que é curto, como já disse, falar apenas de crescimento. Ainda por cima quando a obtenção de resultados rápidos em termos sociais, por exemplo nas áreas da saúde e da educação, exige poucos recursos...
"A redução da pobreza absoluta na China, na Índia ou no Vietname (...) é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia."
E depois?... Que adianta ter mais de um dólar por dia se se em troca se passou a viver num pequeno quarto com mais pessoas, numa cidade poluída, habitada por uma mole humana indiferente e viciada no consumo? Ou se se é obrigado a abandonar de modo de vida pela competição com a produção agro-industrial?
O joão rodrigues não se apercebe que partilha duma visão claramente etnocentrista através de afirmações como "a redução da probeza absoluta é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia."? E que, apesar das boas intenções, aplaudir cegamente o atingir de tal objectivo pode efectivamente equivaler a apoiar medidas que prejudicam gravemente milhões de pessoas? Exemplos não faltam: constroi-se uma barragem, expulsam-se centenas de milhares de pessoas, que até eventualmente vão aumentar o seu rendimento nas cidades onde foram parar. Estarão gratas pelo o que lhes aconteceu?... Ainda mais extremo: hoje os descendentes dos aborigenes australianos vivem em comunidades socialmente destroçadas, mas claramente muito mais "ricas" que as dos seus primitivos antecessores. Será que vivem realmente melhor?...
"O crescimento é um ingrediente necessário, mas não suficiente do desenvolvimento."
Não concordo. Diria antes: o crescimento (económico) **pode** ajudar ao desenvolvimento (social). Mas não é condição necessária para o desenvolvimento social. Eu sei que talvez seja pedir demais a um economista, mesmo "heterodoxo", que ponha sequer a hipótese de que o crescimento económico pode não ser benéfico do ponto de vista social. Muitos pensariam que tal equivaleria a renegar o próprio fim da sua área de estudo. Mas tal não é verdade: tratasse simplesmente de pedir que se subalternize a "eficiência económica" ao bem-estar social, e que portanto não se pretenda medir o desenvolvimento (social) através de medidas quantitativas (ex. PIB per capita) de natureza económica.
"Sobretudo quando o ponto de partida é tão baixo."
Quão baixo é o ponto de partida de comunidades indígenas?... Serão **efectivamente** assim tão miseráveis?
"O crescimento económico com redistribuição, sobretudo em países pobres, é um objectivo de esquerda." Não, não é. O desenvolvimento social é. E este não passa necessariamente pelo crescimento económico.
"Não é porque sim, é porque as pessoas têm que comer, vestir, poder ter acesso a uma casa decente, ir à escola, ter acesso a serviços de saúde. As condições materiais para uma existência humana." Pode parecer que não, mas tudo o que afirma não deixa de ser relativo. Será que uma tribo amazónica come, veste-se e tem casas decentes? As condições materiais para uma existência humana decente são fortemente dependentes das expectativas criadas e das possibilidades oferecidas. Será que há 100 anos atrás ninguém tinha uma vida decente porque não havia frigoríficos e televisores? Então porque é que hoje se alguém não tem frigorífico ou televisor é desde logo etiquetado como "pobre" e portanto preso num "modo de vida indecente"?...
"É evidente que é curto, como já disse, falar apenas de crescimento. Ainda por cima quando a obtenção de resultados rápidos em termos sociais, por exemplo nas áreas da saúde e da educação, exige poucos recursos..." O problema é que a aceitação do conceito de crescimento económico como sinónimo de desenvolvimento social pela Esquerda faz o jogo da Direita, para quem o crescimento económico é **sempre** benéfico, pois leva a um aumento constante do Poder material e societal das elites.
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