Hoje ficámos a saber que em Portugal existe uma aceitação passiva de todas as directivas comunitárias sobre segurança alimentar, mesmo quando é possível impôr excepções visando salvaguardar os produtos tradicionais.
Na última edição do Le Monde Diplomatique (versão portuguesa), Nadir Bensmail escreve sobre a tendência de redução da diversidade na produção do vinho em Portugal (em termos de castas, estilos, métodos de produção, etc.), associada à tentativa de imitar as soluções que estão na moda nos 'mercados internacionais'. Esta tendência tem como consequências não apenas o risco de desaparecimento de saberes ancestrais (os quais tiram partido das características próprias de cada região) como constitui uma estratégia altamente arriscada em termos de desenvolvimento do sector no longo prazo (cada produtor procura seguir a moda para vender mais no imediato, o resultado global é a crescente incapacidade de diferenciação do vinho de origem portuguesa), com consequências indesejáveis para as formas de ocupação do território e do desenvolvimento regional.
Nadir Bensmail mostra como a produção 'moderna' para os mercados internacionais mantém no essencial as estruturas sociais existentes (o recurso ao trabalho assalariado desqualificado, a concentração da propriedade, etc.); inversamente, discute como a associação entre produtores e uma postura mais consciente dos consumidores pode conduzir não apenas à preservação da diversidade cultural, mas também a modelos de desenvolvimento do sector agrícola mais sustentáveis, em termos ambientais, sociais e económicos. Ou seja, paradoxalmente, a produção 'tradicional' pode revelar-se mais progressista do que a produção 'moderna', desde que enquadrada por uma atitude crítica por parte de produtores e consumidores. O mesmo tipo de lógica é facilmente extensível à generalidade dos produtos tradicionais.
A notícia de hoje e o artigo de Nadir Bensmail apontam no mesmo sentido: a falta de empenho dos responsáveis governamentais portugueses na prossecução de uma estratégia clara sobre as produções tradicionais. Seria bom que a esquerda portuguesa não oferececesse de bandeja o monopólio destas questões à direita populista, procurando enquadrá-las na discussão mais geral sobre os métodos e as relações sociais de produção desejáveis.
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6 comentários:
Pessoalmente, creio que é uma das "culpas" das esquerdas. A palavra "Tradição" tende a ser anátema em qualquer contexto.
Se em muitos casos serve meramente para cristalizar relações de domínio e poder, noutros é tão simplesmente o destilar de experiências seculares, perfeitamente adaptadas a conjunturas (num sentido lato que inclui cultura, história, ambiente natural) especificas.
Isto é gerador de diversidade, coisa que devia ser, de raiz, mais grata à esquerda do que à direita, mas que parece sempre subalternizada à destruição do antigo.
Concordo completamente com o post e, infelizmente tenho também de dar razão ao comentário do I. rodrigues. Às vezes a Esquerda parece um animal a quem bateram tantas vezes que agora apenas consegue reagir cegamente. A certos temas ou simples palavras até (como tradição). Em vez de parar para pensar e reagir e afirmar-se proactivamente com uma visão coerente do mundo que pretende. Como já afirmei diversas vezes, o cerne da Esquerda é assegurar que o Poder está distribuído o mais igualmente possível (acho que ninguém contesta tal à Esquerda, a discordância tem muito mais a ver com o modo como obter tal, vide estatismo vs. anarquismo). Não há por isso qualquer dúvida de que a Esquerda deve defender uma agricultura localizada, ambientalmente benigna e socialmente enriquecedora. Algo que está muito mais perto do "modelo" tradicional do que do modelo agro-industrial. Urge realmente que a Esquerda deixe de abdicar de confrontar a Direita em "terrenos" ideológicos considerados habitualmente como pontos fortes da Direita, como a defesa da "tradição" ou a segurança.
Gostaria de começar por felicitar os autores do blog, ao qual só cheguei pouco antes do primeiro aniversário (Infelizmente, afazeres académicos impediram-me de acompanhar as novidades da blogoesfera com a atenção devida no decurso do ano que passou). Sem querer parecer altissonante, destoando da sobriedade que se desprende de todos os posts, não posso deixar de encomiar o esforço envidado para acreditar o pensamento "heterodoxo" e assim alargar a banda semântica e o horizonte referencial da discussão político-económica. Como a esfera mística medieval, que o Pascal recuperou, parece que o capitalismo desregulado tem o seu centro em toda a parte e a superfície, omniglobante, em parte alguma. Não por acaso, Peter Sloterdijk, enquanto desenvolve a sua fascinante teoria das Sphären, aproveitou para se referir ao peso esmagador da realidade económica contemporânea tal como nos é servida pelo mainstream thougt e questionar, de forma provocante, se o capitalismo tem um exterior...
Pois bem, da minha modesta perspectiva de mero cidadão interessado - conhecedor da economia na medida das necessidades de um estudioso da filosofia do direito e da política e do direito constitucional - tenho de dar as boas vindas a qualquer tentativa (para mais lograda) de aliviar o peso opressor da imanência fáctica a que nos vemos condenados e que responde pelo nome de globalização. Parece-me imperativo criar estratégias de deslocação discursiva, e de contestação da meta-narrativa neoliberal - que converteu a globalização, nos actuais moldes, numa sorte de avatar contemporâneo do vetusto fatum, alibi incontestável para todas as tropelias antidemocráticas e descaradas injustiças.
Do ponto de vista político e jurídico, por exemplo, importa recuperar os velhos temas da justiça social e da participação política, filiados no projecto moderno de conciliação da autonomia individual e da autodeterminação colectiva. O que passa por incluir no regaço do direito visões alternativas e desenvolver uma atenção privilegiada à diferença, à singularidade - à alteridade radical (base da ética de Lévinas, e por via deste, de Derrida ou Bauman), no final de contas. Os desafios da ética assim como as aportações da economia política avessa ao estreito subjectivismo-marginalismo, às propostas da escola de Viena e às doutrinas monetaristas são fundamentais para temperar a pulsão regulamentadora do direito, a sua inclinação normalizadora, o seu papel politicamente conservador ou economicamente funcional. De modo a que o sentido do direito, sobretudo nas suas vertentes publicísticas, seja - como é mister - o de potenciar a autonomia individual e colectiva da pessoa, "capacitando-a" (como advogam Sen ou M. Nussbaum) para prosseguir o seu próprio ideal de vida.
Ora o problema em apreço - na sequência de outras reflexões pregressas - remete-nos exactamente para um dilema fundamental: o de saber quando, como e com que sentido deve a normatividade jurídica invadir a vida. Ou seja, quando se faz necessário que o direito se intrometa na realidade para libertar as pessoas das violências factuais dos mais diversos micro-poderes ou enquadramentos institucionais, sobrepondo-se a energias e dinâmicas desumanizantes; e quando, pelo contrário, deve retrair-se, sob pena de se tornar ele mesmo agente de uma violência escusada. Porque no seio do direito convivem estes dois génios (ou estas duas relações com o génio, para o dizermos com Agamben) - emancipador e regulamentador.
Assitimos hoje a uma imparável profusão de normas técnicas sobre produção de alimentos, sua distribuição e comercialização, escorada numa pretensa cientificidade legitimadora, que dispensa quaisquer arrimos axiológicos e poucas vezes autoriza debate democrático. Não se trata, por isso, e apenas, de defender, por princípio, a tradição e as especificidades que dão espessura à cultura (e não se revelem atentatórias dos direitos fundamentais) contra a homogeneização crescente dos modos de viver. É igualmente a questão de saber quem criou as normas, sob que influência, com que fundamentos, visando que fins. Porque bem vistas as coisas, é uma evidência que o escrúpulo regulador acaba por excluir de facto a sacrossanta concorrência ao subordinar a produção a pressupostos que apenas determinadas empresas conseguem cumprir.
Bem sei que o terreno é perigoso e campeiam neste debate toda a espécie de demagogias. Não recuso a necessidade de elevar os níveis de higiene e defender os direitos dos consumidores, cumprir certas regras laborais mais benéficas ou adoptar formas de trabalho mais salubres. Tao pouco contesto algumas dinâmicas autopoiéticas tecnologicamente indomesticáveis. Acontece que nem a liberdade é a (pseudo-)soberania do comprador apenas, nem a concorrência é um princípio regulativo maior, nem sequer a produtividade constitui o único valor em causa.
Repare-se, para glosar um tema recorrente nos últimos tempos - infelizmente centrado apenas nos amanuenses da ASAE - que o restaurante tradicional não pode congelar os seus rissóis caseiros para os vender no dia seguinte, mas pode apresentar aqueles que foram congelados em frigoríficos industriais, preparados para atingir determinadas temperaturas, embalados em materiais específicos, e postos à venda, com prazos de validade de uma semana, nos supermercados...
Em contrapartida, e arvorando-me agora em advogado do diabo, julgo que é também conveniente não estetizarmos demasiado alguns modelos de agricultura pré-moderna só porque aparentam coincidir com a recusa pós-moderna da agricultura industrial...O importante é aferir da bondade de hábitos de trabalho e produção, com ritmos, processos e técnicas que se não subsumem aos parâmetros por vezes empobrecedoramente normalizados que são definidos, por exemplo, a nível comunitário. Imensas lições se colhem nos esquemas de produção estudados, por exemplo pelo Centro de Estudos Sociais de Coimbra (em África, sobretudo). Mas nem precisamos de ir tão longe: se há património europeu inestimável - um alfobre de que se podem retirar incessantemente novas ideias, pistasm, receber impulsos, recarregar energias - é justamente o da sua diversidade matricial, feita de manifestações culturais, que, se é certo que podem encerrar-se autisticamente (reproduzindo o sentido nacionalista da Kultur), também podem abrir-se comunicativamente, aprendendo e ensinando - numa rede intercultural ou civilizacional.
Luis A. M. Meneses do Vale
(P.S. lamento o devaneio, que só agora me apercebi ir já tão longo)
Mais uma achega aos ricos comentários, deste assunto que nos levaria longe.
Diria que o alheamento a esta questão não tem propriamente a ver com a esquerda, antes com o bom senso que tem faltado aos governos na prossecução das políticas deste sector. Para mal dos nossos pecados, nesta e noutras matérias, é comum ouvir-se “ foi a EU que decidiu…”. Um deslumbramento provinciano, talvez.
A falta de agilidade, o zelo que afinal redunda em incompetência, tem-se revelado de forma caricata na proibição de muitas actividades económicas de âmbito tradicional, que constituem a imagem de várias regiões do país. Uma actividade e uma vida que sempre existiram, e da qual ninguém morreu, bem pelo contrário. Isto não significa que não tenham que prevalecer condições de higiene na confecção.
Mas será que os enchidos, queijos, doces, pão, azeite, etc., só poderão ser produzidos de forma industrial, para serem adquiridos num Hiper “o mais perto de si”?
Actualizando a boleia de um certo Maio de 68, direi: a inteligência ao poder!
Isto é tudo gente adepta das sopas de cavalo cansado? Era uma tradição portuguesa...
O que está em, causa não é aceitar todas as tradições só porque o são, mas antes evitar que se rejeite todas as tradições só porque o são...
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