O panorama editorial nacional é dominado pelo conformismo político-ideológico, pela ausência da vibrante tradição marxista internacional. Neste contexto, a tradução e publicação de uma «história crítica da austeridade», usando a «lente do conceito de classe», deve ser saudada, tanto mais que a Temas e Debates não é propriamente uma editora radical. Para esta decisão editorial deve ter contribuído a recepção internacional entusiástica, da crítica aos prémios, que tem sido reservada a um livro de história da economia política comparada da Itália e do Reino Unido nos anos imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial.
A italiana Clara E. Mattei é filósofa de formação e doutorada em Economia. Radicada nos Estados Unidos, lecciona na nova-iorquina New School for Social Research, instituição inicialmente formada por muitos intelectuais europeus fugidos do nazi-fascismo.
O seu livro envolveu um aturado trabalho em arquivos dos dois países estudados, dos ministérios das Finanças e jornais da época, incluindo a inevitável The Economist, ainda hoje tão influente nas linhas editoriais de jornais portugueses ditos de referência, como o Público. Esta descida aos labirínticos arquivos foi orientada por uma preocupação histórico-filosófica, sublinhada na entrevista que concedeu por escrito: «a de incrustar qualquer forma de pensamento no seu contexto histórico, o que me facultou um quadro conceptual para estudar a Economia como uma disciplina que desempenha um papel fundamental na preservação da estrutura económica capitalista». As ideias têm força material quando se inscrevem na luta social.
Um dos melhores efeitos do seu método abdutivo, síntese sábia de indução e de dedução, é a de fornecer a mais completa elaboração conceptual da austeridade, identificando as três formas articuladas que assumiu e assume: austeridade orçamental, ou seja, cortes na despesa pública associada ao bem-estar e subida dos impostos mais regressivos, como os que incidem sobre o consumo popular; austeridade monetária, traduzida em políticas deflacionárias, assentes na perpetuação de taxas de juro reais positivas; austeridade nas relações laborais, ou seja, todo o esforço regulatório e de política económica para garantir a disciplina e a hierarquia nas relações laborais.
Recusando ver a austeridade como se de um erro se tratasse, Mattei argumenta que é, isso sim, um instrumento de violentas reacções de classe. Intelectualmente foi fundamentada por economistas objectiva e subjectivamente ao serviço da burguesia, embora muitas vezes com a preocupação de, em público, darem uma aparência técnica a este serviço antidemocrático, mesmo quando operavam em contexto fascista, procurando então ofuscar apostas sordidamente políticas. O seu objectivo foi o de travar a democratização da economia, concretamente, o surgimento de uma alternativa sistémica, a partir do momento em que as irridentes classes trabalhadoras italianas e britânicas, devido à economia de guerra e à Revolução de Outubro de 1917 na Rússia que se tornava soviética, tinham deixado de ver os arranjos institucionais de um capitalismo em crise de legitimação como um facto tão natural quanto inamovível da vida.
Trata-se, neste livro, de «discernir um método no meio da loucura: a austeridade é um baluarte vital na defesa do sistema capitalista» e, logo, da sua relação social vital. Esta é centrada na subordinação de uma classe que cria tudo o que tem valor e que tinha de voltar a ser compelida a vender aquilo que tem de seu, a força de trabalho, e a um preço directo e indirecto mais baixo, assegurando a reposição da taxa de lucro. Como faz questão de assinalar, o seu livro também é, infelizmente, uma história do nosso sombrio presente, onde o novo teima em não nascer e o velho gera continuamente monstros: Giorgia Meloni e André Ventura aí estão.
As referências foram omitidas. O resto do artigo - As ordens e as desordens do capital - pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de agosto. Assinar este jornal é contribuir para um projeto cooperativo militante.
2 comentários:
Ordem Nova? E eu que julgava que a expressão era coisa de fascistas. Fascistas da vero.
Ordine Nuovo era o nome do jornal fundado, entre outros, por Gramsci e Togliatti.
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