Mas na realidade o homem nunca foi tão egoísta como a teoria exigia. Embora o mecanismo do mercado tivesse privilegiado a sua dependência em relação aos bens materiais, as motivações «económicas» nunca formaram o seu único incentivo para trabalhar. Os economistas e os filósofos utilitaristas exortavam-no para abstrair, nos negócios, de todas as motivações que não fossem «materiais», mas em vão. Uma investigação mais profunda mostrava sempre que ele agia por motivos extraordinariamente «mistos», não excluindo os do dever para consigo próprio e para com os outros e, talvez, até encontrando um prazer secreto em trabalhar por trabalhar.
Karl Polanyi, A nossa obsoleta mentalidade mercantil, 1947.
A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socieconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas estas duas zonas de perigo (...) não são conhecidas e muito menos são estáveis.
Albert Hirschman, Against Parsimony: Three easy ways of complicating some categories of economic discourse, 1984 [minha tradução]
A hipótese de um novo iluminismo radical foi forjada pela filósofa catalã Marina Garcés e é o título do seu pequeno grande livro a não perder, editado pela Orfeu Negro e ideal para transportar para praia, rio ou montanha, para sorver em goles pequenos, com tempo. Estes dois autores luminosos de eleição não são aí referidos, sendo parte do cânone de economia política e moral, indispensável para um trabalho convergente com o de Garcés.
Aproveito este ensejo para agradecer à editora Orfeu Negro não só por este livro luminoso, mas por todos os outros, sobretudo os que me têm permitido passar horas de pura felicidade com o meu filho, do Incrível rapaz que comia livros a O meu avô. Ainda gosto de pensar no presente, sei que já é memória, ele há muito que já lê outros livros e sozinho. A conversa, essa, é como se não terminasse.
A escola pública tem o dever de ensinar a todas as crianças o gosto pela leitura, pela escrita e pela argumentação, libertando-as das determinações familiares; uma ou outra técnica adicional e assim se formam trabalhadores e cidadãos insubmissos. Sem insubmissão, a economia e a cidadania, com separações artificiais abolidas, não funcionam bem.
Não é preciso ser-se pós-moderno para concordar com a historiadora económica neoliberal Deirdre McCloskey: uma parte crescente da atividade económica no capitalismo tardio mobiliza sobretudo a retórica. Tento persuadir os estudantes do seguinte: façam o que fizerem profissionalmente, o vosso trabalho envolverá persuasão e daí a importância de escrever e de falar cada vez melhor, o que exige prática, na sala de aula e fora dela. As humanidades contam tanto na economia e não só, sem esquecer o prazer secreto no trabalho pelo trabalho, de que falava Polanyi.
O ensino, contra McCloskey, é uma parte fundamental de um setor público que cria valor socializado (bom, ela ensinou numa universidade pública grande parte da vida...). Sim, precisamos da economia mista, base material da soberania democrática, com motivações mistas, sendo que hoje estamos numa das zonas de perigo de que falava Hirschman. É só o começo de conversa, rumo a uma sociedade mais regulada e civilizada.
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