Parece, aliás, o Cântigo Negro de José Régio – não sei por onde vou, não sei para onde, sei que não vou por aí... – um poema poderoso que retrata a angústia de quem não consegue encontrar almas gémeas para trilhar um caminho. Uma angústia que, em ponto bem menor, se molda à pele de Marcelo, na proporção inversa do afecto que colectivamente faz tanto acinte em querer mostrar:
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
(...)
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
A mensagem de Ano Novo de Marcelo não é o vendaval de José Régio: é uma versão pindérica, um exercício parco e pobre de ideias, esvaziado de ideias articuladas ou de uma análise dos problemas que Portugal enfrenta, uma versão pimba e cor-de-rosa do que poderia ser um hino nacional. E, porque impegnado daquela ideia do passado de que o povo simples só entende ideias simples ou abraços, o discurso pode ser repetido todos os anos. Marcelo pode ir de férias e deixar alguém a preencher-lhe o parágrafo com a parte noticiosa de cada ano, que tudo cairia no sítio certo.
“Estranho e contraditório ano esse, que ontem terminou, e que exigiu tudo de todos nós”. Sim, todos os anos serão “estranhos e contraditórios”, porque haverá sempre aspectos positivos e negativos a sublinhar. Tanto em Portugal como no Mundo, na Europa, na Ásia, em Madagáscar, na Península de Kamchatka, na Antártida, entre os pinguins. “Ano povoado de reconfortantes alegrias, mas também de profundas tristezas”. Sim, como todos os anos, a qualquer momento, tanto em Portugal, como no mundo, como em qualquer parte, mesmo onde não haja pessoas, porque os bichos se têm e se comem uns aos outros, angustiados.
Marcelo tem apenas um sistema binário e bipolar, pobremente claro, contraditório e conservador, como aquele que o celebrizou na televisão, brilhantemente caricaturado pelos Gato Fedorento. Primeiro, os factos positivos e, depois, os maus, mas em repeat: os incêndios, os incêndios, os incêndios, Tancos, Tancos, Tancos, a queda de árvore no Funchal (!!) e... mais incêndios, incêndios, “tudo pondo à prova o melhor das portuguesas e dos portugueses”. E por estranho que parece, esse sistema empobrecido contaminou tudo e transformou-se no discurso da oposição e da comunicação social. Realmente, nada como repetir, repetir, repetir.
E os factos positivos foram enviesada e nada inocentemente escolhidos, tanto em si, como em conceito:
“finanças públicas a estabilizar” – aliás, cada mais próximas do superávite, apesar das lacunas que ele gosta de mostrar ao Estado; “banca a consolidar” – sim, com menos e mais limitada banca pública, sem capacidade de ser recapitalizada, com mais despedimentos e com o principal banco privado nacional na mão do Banco Santander; “Economia e emprego a crescer” – mas a crescer para onde, em que actividades e com que emprego, com que salários, com que sustentabilidade, com que empresas?; “Europa a declarar o fim do défice excessivo” – ou seja, mais austeridade como filosofia salvadora; “confiar ao nosso Ministro das Finanças liderança no Eurogrupo” - uuhhh que felicidade, quando isso apenas representará mais austeridade como filosofia de base e ataques a direitos laborais; “mercados a atestarem os nossos merecimentos” – que visão gasolineira do que está em causa e sempre naquela atitude “temos de fazer o que os mercado querem”, tantas vezes repetida em 2011 e 2012...
E para rematar, mais austeridade em perspectiva: “Tudo isto colocando fasquias mais altas no combate à pobreza, às desigualdades, ao acesso e ao funcionamento dos sistemas sociais e aconselhando prudência no futuro”. Mas prudência será a palavra mais indicada do que está em jogo, sobretudo para quem está sempre a sublinhar que “o Estado falhou”?
“Ninguém imaginaria, há menos de dois anos, poder partilhar tão rápida e convincente mudança”. Rápida? Passaram dez anos desde o início da crise de 2007/8 e muita catástrofe aconteceu a centenas de milhares de pessoas em situação de que ainda não se ergueram, fruto das más políticas macroeconómicas impostas de fora e assumidas interiormente até pelo Presidente! Mudança? Saberá para onde se caminha com o actual enquadramento espartilhado, com esta rarefacção de soberania política, a que nos deixam quase apenas a gestão de dinheiros comunitários como investimento público, devidamente orientado, e assente em actividades económicas de baixa produtividade? “E nem faltariam ao crescendo de alegrias de boa parte do ano que findou, o triunfo europeu da nossa música, os excecionais galardões no turismo, o sucesso reiterado no digital, os êxitos nas artes, na ciência, no desporto, colocando Portugal como um destino cimeiro”. Mas será que não se tem a noção do ridículo, ao viver-se este momento de conversa de café, de baixa política. Será que se trata de mais uma facilitismo do comentador de televisão, curto e superficial que não de um Presidente da República? Para quem quer a reinvenção, teme-se o pior...
Só o conceito de reinvenção tem todos os ingredientes de esturro. Durão Barroso defendeu-o quando quis demitir Guterres. Santana Lopes repetiu-o quando quis impedir eleições antecipadas e acabou cabisbaixo, a falar na televisão, com outra estranha personagem nacional – António Vitorino. Reinventar significa escolher quem saiba reinventar, e geralmente não é quem falha.
Mas o que quer o Presidente reinventar? Não se percebe. Marcelo fala de “mais do que mera reconstrução material e espiritual” – mas de quê? Contra quem?; “pela redescoberta” – de quem? Dos “esquecidos” que votam, “decidem (...) os destinos de todos”, mas não decidem nada; da “confiança” – em quê? Mais incêndios: na "segurança”, na “certeza de que, nos momentos críticos, as missões essenciais do Estado não falham”, da “verdade, humildade, imaginação e consistência” – de quem? Nada se diz, mas conseguimos perceber de quem se trata. Porque quem é que está à frente do Estado?
E como reinventar? Mais incêndios: “Converter as tragédias que vivemos em razão mobilizadora de mudança”. “Recusar a resignação”, “superar o que de menor nos divide”. Na altura dos incêndios fez todas as perguntas. Mas agora falta-lhe a palavra: A quem? Com quem? Para onde? Com que recursos? O Presidente não se pergunta como fazer tudo quando, ao mesmo tempo, defende a austeridade continuada no Estado?
Marcelo quer, sim, estar à frente de todos – contra quem? – ao liderar o povo “esquecido”: “Esta é a palavra de ordem que vem do Povo, deste Povo, do mais sofrido, do mais sacrificado, do mais abnegado”. Mas para onde? Marcham todos em direcção a que precipício? A um bloco central?
Marcelo beneficia da inacção de um governo que não quer ter iniciativa, que sente que não pode ter iniciativa e que espera apenas os fundos estruturais que irão pagar profissionais qualificados. Mas esse vazio é apenas preenchido pelo Presidente - que sente que tem pouco tempo - com mais palavras aparentemente ocas e intrinsecamente conservadoras, que visam, sim, combater institucionalmente este governo, na ausência também de uma oposição sem programa. Estranhos momentos estes.
20 comentários:
Make Portugal Great Again!
Vazio ideológico, a comadre? Pode lá ser.
O Catavento é isso mesmo, um chorrilho de platitudes posto no pedestal (imerecido) da excelência pela comunicação social medíocre.
O Catavento é um mau representante dos interesses da generalidade da população, ocupou o lugar de um miserável alpinista social que não se coibiu de massacrar a população “piegas” que “vivia acima das possibilidades” e só por este facto, o Catavento, é melhor que o anterior nada mais, mas acho que nós temos que ser mais exigentes porque os “afectos” são mesmo muito poucochinho!
Outra razão para a falta de exigência é que Portugal comparado com outros sítios é um paraíso, mas mais uma vez, nós devíamos ser bem mais exigentes, porque senão, este país estará sempre condenado às caudas de qualquer coisa...
Marcelo sabe, como sabem muitas pessoas influentes e poderosas que o tempo está do seu lado. Sabe que os acordos que sustentam este governo atingiram os seus limites ou estão muito próximos disso. E que finda esta legislatura, ou até antes disso, o consenso de Bruxelas permanecerá intacto no essencial. E que o governo que vier será certamente muito diferente deste e talvez mais facilmente moldável pela influência do Presidente. Marcelo joga para um futuro próximo, que ele adivinha e ajudará a construir quando o momento chegar. O Governo tem na ideia gerir os sucessos orçamentais para concorrer a uma nova maioria em que não sabe com quem terá de negociar, posto que dificilmente haverá maioria absoluta. Os partidos à esquerda não querem forçar os limites do (im)possível porque receiam eleições antecipadas que os penalizem. O PSD, vai tentar reconstruir uma liderança antes das próximas eleições, como puder, sabendo que nunca lhe faltarão apoios junto dos elementos mais conservadores da sociedade. Todos esperam mas Marcelo é o que tem mais tempo e por isso, está em vantagem.
Não sei porque certa esquerda ataca tanto o Marcelo.
Provavelmente é o melhor presidente que já tivemos.
É um homem de direita que não hesitou em aceitar e viabilizar uma solução governativa apoiada pela esquerda
Foi mais do que um Eanes, Sampaio ou Soares fizeram.
Acho que é de respeitar.
Ou preferiam o Cavaco ?
A esta hora já tinha tentado 500 truques para derrubar o governo....
Marcelo viabilizaria qualquer governo, de esquerda ou direita, desde que isso o viabilizasse a ele próprio. Quanto à comparação com Cavaco...bom,nisso até o Tino se arriscava a ser melhor.
Reconfortante sabê-lo minimizado pelos pastores dos povos a haver.
Pedro ( das 23:57 ) :
Pessoalmente, não "preferia Cavaco"! Mas numa coisa teremos de fazer justiça a Cavaco: ele nunca escondeu o seu ódio a tudo quanto lhe cheirasse a esquerda apenas por ser esquerda. Já Marcelo faz hipocritamente de conta que não se alimenta desse anti-esquerdismo primário. E continuará nesse registo enquanto isso servir os seus devaneios "peronistas". Dizer que Marcelo "viabilizou" a solução governativa é uma formula curiosa para branquear o facto de não ter tido outra alternativa. E dizer que ele é o "melhor presidente" só revela como a malta gosta de andar em rebanhos e de ser endrominada por palhaçadas de ilusionista.
MRocha
Pedro, Sugiro-lhe que releia a História recente.
Designadamente
a parte da moção de censura apresentada pelo PRD ao primeiro Governo de Cavaco e da reacção de Soares.
E também
a saída de Durão Barroso para Bruxelas e o fim da amizade de Ferro Rodrigues e Sampaio.
Revisionismos e hermenêuticas coxas não.
"Reconfortante sabê-lo minimizado pelos pastores dos povos a haver"
Há qualquer coisa de definitivamente seminarista leste linguarejar serôdio e repetitivo.
Qualquer dia sairá em salmos, como os oferecidos outrora aos terratenentes caídos agora em desgraça.
Marcelo agradecerá e declamará uma rábula à altura. Assim rasteira e medíocre como a aqui exposta por João Ramos de Almeida
Bem, as pessoas podem mudar.
O Pacheco Pereira, por exemplo, descobriu com a terceira idade, que o seu partido se chama social-democrata. Investigou, gostou e agora deve ser o primeiro e ultimo social-democrata que alguma vez passará pelo PSD.
Já a Zita Seabra passou de controleira do PC a super-beata neoliberal - e nada indica que não seja uma mudança genuína, embora de gosto duvidoso.
Pode ser que o Marcelo se tenha tornado um direitista moderado. Não esqueçamos que o estado social europeu foi construído com o contributo da democracia-cristã.
Enfim, já é óptimo que perante a geringonça, arranjo escandaloso para os valores do regime, mantenha a calma e o espirito de cooperação.
O futuro não sei, mas até agora tem-se portado muito bem, sejam quais forem as razões. E é importante haver cooperação institucional e uma ponte entre a esquerda, centro e direita moderada.
Se não houver uma plataforma alargada de apoio não há projeto político que se aguente e o Marcelo pode ser uma ajuda nesse sentido.
Não gostava que se estivessem a comprar guerras gratuitas que gerem instabilidade. A geringonça é o melhor que nos podia ter acontecido e era uma pena deitar tudo a perder.
O Marcelo ajuda ajuda ajuda ajuda a juda a judas...
Tem pai que é cego
Mesmo que o gajo fizesse tudo por puro maquivelismo isso significaria que um pouco de estratégia da nossa parte também seria aconselhável.
Estar a provocar o gajo arriscando estar a criar uma profecia autorealizável numa questão que não nos interessa provocar não será o mais avisado...
Qual avisado qual quê. Qual "gajo" qual carapuça. Qual profecia da treta em auto ou a pé
Isto não tem nada a ver com tacticismos ou com oportunismos.
Tem a ver com o respeito pela verdade dos factos e pela coerência das ideias e das atitudes. Com o abrir os olhos e abordar o tema de forma séria e frontal
A verdade dos factos é que até agora o gajo, ou se prefere, sua excelência o senhor doutor presidente da república, tem-se portado impecavelmente com um governo inimigo do partido dele.
E algum pessoal da esquerda provoca-o ainda não percebi porquê.
Que pessoal da direita o faça percebo. Uma guerra institucional que enfraqueça o governo seria optimo para a direita.
Já pessoal da esquerda parecer que anda a pedir essa guerra parece mesmo muito pouco inteligente.
Um presidente de direita não tem ideias (que seriam necessariamente de direita) e deixa andar um governo apoiado pela esquerda ?
E a esquerda queixa-se ?
O que o episódio dos incêndios demontra é que ao mínimo sinal de fraqueza Marcelo não hesitará em mandar umas "bicadas". Costa que se cuide, porque se Marcelo pressentir pelas sondagens ou por um conjunto de circunstâncias que Costa está fragilizado não hesitará em abrir caminho para o seu dilecto partido.
Como é possível não gostar do "presidente que já tivemos", na óptica, claro, do Pedro?
Que em seguida o trata assim por "gajo".
Pois é Pedro. Nem o "melhor", nem "gajo", nem o senhor doutor ou toda a idiotice aposta.
Nem o "deixa andar" serve para o fazer vender. Quanto mais o "portado impecavelmente" saído lá sabe-se de que congeminações.
Agora vá lá pedir uma Vichyssoise ao Portas
Tudo o que têm a queixar-se é de umas "bicadas" quando o governo meteu os pés pelas mãos na questão dos incêndios - depois de inicialmente ter saltado a apoiar a versão do governo ?
O que o gajo vai fazer não sei, também não meto as mãos no fogo por nenhum político.
Mas até agora tem sido impecável.
Caro anónimo das 17.44
Sim, o gajo até agora tem sido o melhor presidente da terceira república. Tem tentado unir o país de uma forma que nenhum outro cobseguiu ou se calhar tentou.
E sim, um presidente de direita não tentar impor as suaa ideias (de direita) e deixar andar um governo apoiado pela esquerda que toda a diteita está desesperada para derrubar, para a esquerda está a ser impecável.
Não sei o que queria mais. Que o ex-líder do PSD adoptasse oficialmente a política do bloco ou do PC ?
Já agora diga lá o que poderia o gajo fazer mais.
"Impecável é um adjectivo que descreve alguém que não é passível de pecar. É sinonimo de imaculado, irrepreensível e perfeito."
Tem o dito pedro a noção que Marcelo é "impecável".
É um seu direito e ninguém o contesta.
Mas que ele queira vender a sua opinião ( estreita, limitada, apologética e emotiva, para utilizar outros qualificativos como contraponto ao dito pelo mesmo pedro) e impor tal opinião aos demais, é mesmo demais.
Santa paciência ao pedro mas não engolimos ( pelo menos há alguns que não engolem) nem o seu discurso quase amoroso face ao presidente nem a Vichyssoise do mesmo.
Não é de todo impecável. Uma opinião para contrariar a do pedro. Nem que servido na bandeja de afirmações gratuitas como a do "melhor presidente da III república" (?). Nem que à boleia da idiotice da "união do país" ( como se se pudessem unir interesses contraditórios e antagónicos nesta massa paroquial incómoda e pseudo-sentimental; como se os interesses de um Mexia fossem compatíveis com os de um sujeito que se vê aflito para pagar o aquecimento em casa). Nem pegado com cuspo na pesporrência intelectual de pensar que o que o PC e o Bloco querem de Marcelo é que adopte a sua política.
Pedro pode com toda a legitimidade continuar a fazer odes a Marcelo. Nem o seu "gajo" disfarça este tom pegajoso e apologético
Mas que quer o pedro? Há quem não queira ir pelo caminho do Pedro.
E agora é ir ao Cântico Negro de José Régio
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