Muitas das transformações a que o ensino público tem sido sujeito, e que pervertem as funções mais nobres de que o mesmo está constitucionalmente investido - garantir, a todos, a igualdade de oportunidades e o acesso a uma educação de qualidade - têm como pano de fundo uma ideia que se foi insidiosamente instalando na sociedade portuguesa. A ideia de que o fomento da competição entre escolas, da concorrência entre estabelecimentos de ensino (e entre o público e o privado) melhoram os resultados em educação.
Um dos estímulos mais fortes à impregnação desta «narrativa» consistiu sem dúvida na publicação anual dos rankings de escolas, elaborados a partir dos resultados dos exames do ensino básico e secundário. Desde então, assistiu-se a uma crescente focalização das questões educativas no desempenho das escolas, como se tudo dependesse delas e dos seus professores, desprezando-se a importância dos contextos em que estas se inserem e, por essa via, as origens socio-económicas dos alunos que as frequentam (e que são, justamente, dos factores mais relevantes para explicar o «sucesso» e «insucesso» dos diferentes estabelecimentos de ensino). E foi também a partir daqui que começou a ganhar maior expressão o falso mito da suposta supremacia das escolas privadas (cuja ocupação de lugares cimeiros nos rankings se explica, fundamentalmente, pela faculdade de que dispõem em seleccionar os seus alunos).
Mas as coisas não se resumem a isto. Em termos práticos, é nesta tese sobre a necessidade de estimular a concorrência entre escolas, aparentemente para melhorar resultados, que radica a maior parte das medidas já adoptadas por Nuno Crato (e as que o ministro pretenderá ainda adoptar). Como é o caso, por exemplo, da eliminação do princípio de área de influência (que permite flexibilizar a escolha do estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias) e da supressão formal do princípio de constituição de turmas heterogéneas. Ou a possibilidade de as escolas poderem vir a ter autonomia para recrutar professores e dispor de reforços orçamentais em função dos resultados obtidos, passando ainda pela degradação deliberada da escola pública (com a diminuição do número de professores e de auxiliares de educação, o aumento do número de alunos por turma, a constituição de mega-agrupamentos de escolas e a supressão de ofertas extra-curriculares, entre outras medidas), tendo em vista facilitar as condições de concorrência que assim são oferecidas, de bandeja, ao ensino privado.
Um dos resultados mais relevantes deste processo é a dualização crescente da rede pública de estabelecimentos de ensino: as melhores escolas tornam-se cada vez melhores e as escolas com mais dificuldades vêem a sua situação consecutivamente agravada. Incentivados a competir entre si, os estabelecimentos de ensino tendem a fechar-se sobre si mesmos e a ficar obcecados com o seu próprio sucesso. E a serem, desse modo, incentivados a deitar mão a tudo o que os possa beneficiar comparativamente (incluíndo a rejeição de alunos com maiores dificuldades de aprendizagem ou com necessidades educativas especiais, ou dificultando o acesso a exame de alunos que não garantam contribuir positivamente para a posição nos rankings, práticas que são adoptadas já há muito tempo pela generalidade dos colégios e demais escolas privadas).
Em todas estas transformações, há uma concepção essencial das responsabilidades do Estado em matéria educativa que fica irremediavelmente posta em causa: o sistema público de educação é, de facto, um sistema, composto por unidades que contribuem para uma missão comum: garantir a todos o acesso a um ensino de qualidade. O que requer políticas sensíveis às especificidades de cada contexto socio-espacial e a adopção de medidas que adequem, em cada caso, os recursos existentes aos desafios em presença. Ora, com as mudanças em curso - e as que se pretedem acrescentar e aprofundar - corre-se seriamente o risco de as escolas públicas deixarem de se encarar a si próprias como parte de um todo, para o qual contribuem, passando a assumir-se como participantes numa corrida desenfreada e que aprofunda o fosso das desigualdades. Não, um sistema público de educação não é uma pista de corridas. E é aliás justamente por isso que as escolas privadas nunca poderão, pela sua própria natureza, ser consideradas como parte integrante da rede pública de educação.
1 comentário:
Espera lá, pá, não me digam que não foi bom para o Ensino Público derrubar a Milú e o Sócrates, pá!
Não festejaram? Agora, aguentem-se...
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