Devido aos crónicos défices externos (não confundir com défices públicos) portugueses, que estão na origem da actual crise, e cujo peso no PIB se torna imperativo reduzir, tem havido alguma confusão sobre a forma como os debelar. Sem o instrumento da desvalorização cambial, a estratégia do Governo (e da troika) é clara: reduzem-se salários de forma a tornar as nossas exportações mais baratas e reduzir o consumo de importações. Abstraindo-me da formidável redistribuição regressiva que tal significa, os resultados são conhecidos: deflação, recessão, desemprego, destruição de capacidade produtiva e manutenção do défice externo em relação ao PIB (o défice diminui, mas o PIB também). Contudo, quiçá devido à forma como o debate económico tem sido enquadrado em Portugal, a discussão de uma desvalorização cambial, num cenário de saída do euro, é demasiadas vezes apresentada como uma forma diferente de se atingir a mesma coisa: cortar salários. Não é.
Vou abstrair-me de todas as implicações que uma política monetária autónoma, articulada com política orçamental e industrial, pode ter na promoção do crescimento económico social e ambientalmente progressista, amiúde convenientemente ignorada. Não pretendo aqui discutir as vantagens e desvantagens de uma saída do euro, mas apenas cingir-me ao estreito campo do debate cambial, que está longe de esgotar o debate monetário, onde uma desvalorização cambial é entendida como puro ataque ao salário.
1- Este ponto devia ser desnecessário, no entanto não o é... Se observamos uma desvalorização cambial de, por exemplo, 30%, as importações ficam 30% mais caras. Contudo, como é evidente, isso não significa um crescimento da inflação em 30%, porque felizmente não consumimos só importações. Um país fortemente dependente de importações como a Islândia, depois de a sua moeda desvalorizar quase 50%, registou uma inflação média anual de 12%. Fazer uma identidade entre a dimensão da desvalorização cambial e a desvalorização salarial não faz sentido. O debate sobre o salário deve portanto ser feito no campo da inflação e não na desvalorização (a não ser que se ganhe na moeda nacional e se viva no estrangeiro).
2- Muitas das empresas que produzem em Portugal estão fortemente dependentes de importações para a sua produção. No entanto, um aumento de 30% do preço destas não significa um aumento dos seus custos em 30%, a ser transferidos para o preço final. Existem outros custos: trabalho e capital. Imaginemos que o custo do trabalho está indexado à inflação (como acontece em vários países europeus) e que, portanto, não existe qualquer perda de poder de compra. A inflação cresceria e os custos de trabalho aumentariam na mesma proporção. Contudo, como já expliquei, este aumento será sempre consideravelmente inferior ao da desvalorização cambial. Finalmente, qualquer empresa tem um stock de capital (máquinas, computadores, etc.) que não precisa de ser imediatamente renovado e que, portanto, não tem nenhum custo acrescido. A empresa terá assim custos maiores, mas a sua ponderação, mesmo sem qualquer perda salarial para os seus trabalhadores, permite-lhe ter uma estrutura de custos sempre inferior ao ganho de preço que consegue nos mercados internacionais (30%).
3- Ainda que os salários possam estar indexados à inflação, muitos bens importados tornar-se-iam mais caros em relação à média. Aqui há que distinguir dois tipos de bens importados: bens que podemos ou não produzir na mesma zona cambial. Por exemplo, como muito do que comemos é importado, o preço da alimentação aumentaria imediatamente, com impactos de classe assimétricos que não devem ser negligenciados. No entanto, o incentivo à produção agrícola local seria maior, procedendo-se assim a substituição de importações (com impactos evidentes no PIB e no emprego). Outros bens (por exemplo, automóveis ou papaias) dificilmente podem ser substituídos por produção nacional. O seu preço seria assim sempre muito mais alto do que o anterior à desvalorização. É o custo de uma desvalorização cambial com impactos não tanto no poder de compra do salário como um todo, mas sim no acesso mais custoso a determinados bens. Resta saber quais são os seus impactos redistributivos de forma a corrigi-los.
Conclusão: ao contrário do ataque directo aos salários, uma desvalorização cambial tem efeitos redistributivos indeterminados. Tudo depende sempre da correlação das forças sociais na determinação salarial. Com a desvalorização cambial diminui a tentação para se mexer naquilo que determina a prazo a correlação de forças: a legislação laboral, o nível de emprego, o Estado social, etc. É aqui que tudo se joga.